Foi a propósito do Digital Media Summer Institute 2018, a decorrer entre junho e julho deste ano nas instalações do Media Innovation Labs, que o JPN esteve à conversa com o professor Joe Straubhaar, da Universidade do Texas em Austin. Investigador na área da globalização da televisão e dos novos media, o professor foi o primeiro de cinco convidados a orientar formações de verão e abriu o périplo com o tema “A Televisão na era da Netflix”.

O professor veio ao Porto para dar um workshop sobre “A Televisão na era da Netflix”. O que se falou na formação?
Falou-se, sobretudo, no facto da televisão ter começado por ser mais nacional – como no Brasil, na América Latina, ou até mesmo como aqui, [em Portugal] – e depois como ela começou a flutuar entre países. E de como, a partir de um certo tempo, essa flutuação entre países se espalhou através do cabo e dos satélites, com conteúdos, sobretudo, americanos – mas não na sua totalidade. E depois questionámo-nos: o que será que vai acontecer com o [surgimento do] Youtube, da Netflix ou da Amazon?

Na maior parte dos casos acontece o que se passa no Brasil, onde eles têm um canal de streaming próprio, como a TVGlobo. Mas nós concentrámo-nos no que irá acontecer com o Youtube, a Netflix e a Amazon, porque o que está a acontecer é que a maior parte dos jovens veem mais conteúdos no Youtube do que noutro sítio qualquer. E eu estava a discutir que com a Netflix iremos ter muito mais televisão americana no mundo.

Mas a Netflix não tem apenas conteúdos oriundos dos Estados Unidos…
Muita gente nos Estados Unidos está, neste momento, a dizer que estamos na “era dourada” da televisão, com muita produção – com muito boa produção. E uma coisa que a Netflix faz é trazer isso para o resto do mundo. Mas a Netflix também me permite ver televisão de Espanha, da Dinamarca, do Brasil e de todos esses países. E já há quem chame [este fenómeno] de transnational and transverse, algo que se atravessa os padrões antigos. Depois, [a Netflix] também faz muitas produções locais, como no México, no Brasil… Não sei se fizeram alguma em Portugal, mas provavelmente farão. Mas estou certo que o que eles fizeram no Brasil será bem recebido em Portugal.

Uma das coisas mais interessantes é este novo modo de conseguir ver conteúdos dinamarqueses, espanhóis ou da América Latina, que raramente veria [se não tivesse Netflix]. Mas uma das coisas que eles fazem bem é apoiar as produções locais. Nos Estados Unidos, por exemplo, a Netflix dá aos produtores independentes uma oportunidade: vai a grandes festivais, como o Sundance ou o SXSW, e compra os direitos a grandes produtores independentes de televisão, de filmes e de documentários – e, de facto, uma coisa interessante sobre a Netflix é que tem muitos documentários. De um certo ponto de vista, esta poderá ser a melhor oportunidade que os produtores terão de ver um conteúdo seu licenciado.

A Netflix está muito centrada na televisão e uma coisa que acho que está a acontecer é que se não forem eles a produzir ou a co-produzir, o que vemos em Portugal será diferente do que vemos em Espanha, porque as licenças e direitos [de determinado conteúdo] são diferentes de país para país – porque é um negócio complicado, ter os direitos na sua totalidade, de forma a exibir algo à volta do mundo. E daí nasce o esforço da Netflix em querer criar os seus programas por si mesma.

Muita gente nos Estados Unidos está, neste momento, a dizer que estamos na “era dourada” da televisão, com muita produção – com muito boa produção.

Mas há alguma possibilidade da televisão, agora, conseguir alcançar os feitos da Netflix, por exemplo?
Eu acho que sim. O caminho que a Netflix está a percorrer é excelente, porque há aquilo a que algumas pessoas chamam de “vantagem do primeiro passo”: que se dá quando uma empresa pensa num serviço novo e o transmite às massas de forma correta. Aí há logo uma tendência para que esta cresça e continue a ser a número um. Mas com os media digitais já aprendemos que isso é muito dinâmico: só por seres a primeira empresa a ter a ideia e a concebê-la não quer dizer que o sucesso durará para sempre. Por isso depende bastante do quão inteligentes eles serão e no quão bem saberão gerir o serviço.

A Netflix continua na liderança, em parte, porque a Amazon e a Hulu, que são outras duas peças na corrida, estão a ter problemas de administração: estão constantemente a mudar de administração nestes últimos anos e não parecem ter uma ideia tão clara como a Netflix tem.

Mas pode uma indústria como a televisão criar infra-estruturas flexíveis para se transformar a si mesma e conviver com estes canais de streaming?
Sim. Podemos ver como a Netflix se está a transformar, por exemplo, enviando DVD’s às pessoas pelo correio e licenciando vários conteúdos da Disney – e agora a Disney voltou atrás e disse que quer ter o seu próprio serviço de streaming. E aqui vai entrar um competidor a sério – não tenho sombra de dúvida –, que será a Disney, devido ao facto dos seus conteúdos serem tão conhecidos por todo o mundo.

Mas depois, também, temos os diferentes nichos: o nicho da Disney será completamente diferente do da Netflix – será mais específico. Mas a Disney detém a ESPN, uma rede gigante de desporto. Por isso, eles estão a planear ter um grande canal de desporto e um grande canal de desenhos animados para crianças. E estes dois poderão correr bastante bem.

Mas eu acho que a estratégia da Netflix continua a evoluir. Acho que há uma estratégia global baseada nos Estados Unidos: uma estratégia em que, por exemplo, se fores americano e gostares de ficação científica, eles colocam-te a ver o Ministério del Tiempo, que é uma série excelente sobre viajar no tempo. E, então, se fores fã de ficção científica – e o algoritmo souber que és fã de ficção científica -, ele dir-te-á “deverias ver isto”.

Por uma outra coisa a pensar é que as companhias estão, de certo modo, a desenvolver a forma como o algoritmo funciona na cultura. A Amazon, o Facebook e o Youtube, por exemplo, estão a fazê-lo também: estão a sugerir o que deveríamos ver baseado num resultado de um algoritmo.

Atualmente, diria que a Netflix chega a cerca de 30% da população mundial. Sobretudo a pessoas de classe média e alta.

E esses canais de streaming são o futuro?
Eu acho que sim. Mas há grandes impedimentos, como não teres dinheiro, não teres acesso à Internet e não teres tido uma educação correcta, de forma a perceber o que é engraçado naquele programa (e, para mim, esta é sempre uma questão chave: saberá a audiência o suficiente sobre a cultura que o programa representa de forma a entender as piadas? Porque, se não souber, não vai rir e, por isso, não o vai ver).

Atualmente, diria que a Netflix chega a cerca de 30% da população mundial. Sobretudo a pessoas de classe média e alta. E, por isso, uma das questões que tentei abordar antes do workshop terminar foi: “será isto neutral ou criará divisões sociais, como, por exemplo, ‘eu tenho Netflix e tu não’” – tenho algo que me distingue de ti. E eu não sei quais serão os efeitos disso, mas o que me preocupa é que em sítios como o Brasil e Portugal se sinta uma maior estratificação [social].

E a forma de consumo muda a forma de produzir conteúdo?
Eu acho que vai dar muitas oportunidades a novos produtores. A Netflix está a fazer isso: a procurar desenfreadamente por novos produtores. Não sei se viu a série “3%”?

Não, ainda não.
Mas devia [risos]. É uma espécie de distopia de ficção científica, onde 97% da população vive na Favela e os restantes três vivem num ambiente moderno.

A série proveio de um episódio piloto, que foi subsidiado pelo Governo Brasileiro, e a Netflix viu esse episódio e disse: “oh, isto é bom, vamos dar-lhes o dinheiro para realmente produzirem [a série]”. Por isso sim. Houve uma atriz e alguns produtores independentes, da TVGlobo, que fizeram um enorme sucesso, até.

Claro que há coisas boas e coisas más; dá para veres conteúdos de muitos outros países e conheceres muitos novos produtores – esses são os dois grandes lados positivos.

…para uma grande parte da camada jovem dos Estados Unidos, sobretudo, a televisão é, acima de tudo, o Youtube – esta é a televisão que se vê.

E os negativos?
Os negativos é que vivemos numa espécie de Imperialismo de cultura americana, com todo este conteúdo americano a ser irradiado. E também há  estratificação [social]. Resumindo: acho que há um potencial par de pontos negativos e um par de pontos positivos.

Quanto aos millenials. Têm eles algum papel a desempenhar no meio desta conjetura?
Uma coisa que falámos [no workshop] é que é bastante claro que para algumas pessoas (para uma grande parte da camada jovem dos Estados Unidos, sobretudo) a televisão é, acima de tudo, o Youtube – esta é a televisão que se vê. Mas penso que a Netflix também seja.

Alguns dados de pesquisas na América Latina indicam mesmo que quanto mais novo se é, quanto mais saudável se é, quanto melhor educado se é, maior a probabilidade de se ver Netflix.

Mas, tomando o caso da Netflix, este canal está a produzir para toda a gente ou tem um target definido?
Se quiser um canal para millenials apenas tens o Youtube – esse é o canal de excelência para essa faixa etária. A Netflix eu acho que está a tentar ser uma televisão para toda a gente – é esse o seu objetivo. E eu acho que o que a Netflix está a fazer é bem inteligente, porque não está a dividir o público por nação: não interessa se estás em Portugal, na Noruega ou nos Estado Unidos, não interessa mesmo onde vives, porque ver, podes ver tudo.

Artigo editado por Filipa Silva