Não é novidade que as relações diplomáticas entre os Estados Unidos da América e o Irão andam deterioradas. O rastilho intensificou-se desde o final dos anos setenta com a Revolução Islâmica. Em Teerão, o descontentamento provocou uma insurreição popular que levou ao poder os xiitas. Com o fim da monarquia autocrática comandada pelo Xá Mohammad Reza Pahlevi, acentuou-se o afastamento do Irão em relação ao mundo ocidental. Ou seja, os norte-americanos passaram a ser odiados pelas fações radicais daquele país asiático.

Por ironia, o sorteio do Mundial 1998 ditou o encontro entre inimigos políticos num relvado de futebol. Num ápice soaram os alarmes entre adeptos, jornalistas e autoridades. O presidente da federação norte-americana designou-o de “mãe de todos os jogos”. Já o governo iraniano tratava aquela partida como uma verdadeira guerra, muito embora tivesse firme oposição dos seus atletas. Afinal, em 1984, o regime imposto no país do Médio Oriente matou o então capitão da seleção iraniana, Habib Khabiri, que foi acusado de ter ligações com os Estados Unidos.

Dada toda esta conjuntura, a FIFA preparou com minúcia o encontro de Lyon. O iraniano Mehrdad Masoudi era o oficial escalado para a partida e teve de lidar com responsabilidades bem mais amplas em relação aos trâmites habituais. “Um dos primeiros problemas foi que o Irão era a equipa B e os EUA eram a equipa A”, começa por confidenciar ao jornal britânico “Independent”. “De acordo com os regulamentos da FIFA, a equipa B deve caminhar em direção à equipa A para os cumprimentos pré-jogo. Mas o líder supremo do Irão, Ali Khamenei, deu ordens expressas para que a seleção iraniana não caminhasse em direção aos norte-americanos”, explica Masoudi, que terá negociado com a Federação de Futebol dos Estados Unidos uma inversão de papéis.

Sem margem para dúvidas, esta seria a preocupação mais fácil de debelar. Fora do campo, uma organização terrorista comprou sete mil bilhetes e prometia fazer estragos durante a partida. Falamos do Mujahedin Khalq, movimento de resistência ao governo iraniano que era financiado por Saddam Hussein. A FIFA teve de recorrer aos serviços de inteligência gauleses para identificar os suspeitos entre cerca de 42 mil espetadores. “A partida estava a ser transmitida para todo o mundo e a última coisa que queríamos era que esse grupo sabotasse a ocasião e a usasse para seu próprio propósito político”, salienta o oficial da FIFA.

Se a tensão política já estava nos píncaros, era de prever que os ânimos incendiados fossem transportados para o Stade de Gerland. Pura ilusão. Todos os diferendos ficaram à porta do estádio e a seleção asiática até pretendeu mostrar uma imagem renovada. Antes do pontapé de saída, jogadores iranianos ofereceram flores aos norte-americanos. Eram molhos de rosas brancas, símbolo de paz em Teerão. De seguida as duas equipas posaram em conjunto para as câmaras, num ato solidário de contestação a toda e qualquer forma de ódio no desporto. Nas bancadas não foram raros os adeptos a exibir lado a lado as bandeiras de Irão e Estados Unidos. De facto, estava muito mais em jogo do que uma possível qualificação para os oitavos.

Para compor o ramalhete, os prognósticos desportivos também saíram frustrados. Num grupo onde também figuravam Alemanha e Jugoslávia, a “Team Melli” acreditava que podia somar pontos justamente no encontro diante dos “Stars & Stripes”. E assim foi. Hamid Estili e Mehdi Mahdavikia tornaram-se heróis persas e confirmaram a primeira vitória (2-1) iraniana em Campeonatos do Mundo – feito que só seria repetido vinte anos depois, no recente triunfo sobre Marrocos em São Petersburgo. O tento de Brian McBride ao cair do pano pouco mais serviu do que consolação para os EUA.

Nenhuma das seleções conseguiu a passagem à fase seguinte, mas os asiáticos comemoraram bastante a vitória sobre os americanos. Em Teerão, Ali Khamenei falou num “forte e arrogante oponente” que sentiu o “sabor amargo da derrota nas suas mãos”. Por outro lado, os jogadores souberam reconhecer a importância daquela noite vivida na terceira maior cidade francesa. “Não temos nenhum problema com os jogadores dos Estados Unidos”, admitiu o médio iraniano Alireza Mansourian. “Fizemos mais em 90 minutos do que os políticos em 20 anos”, atirou o defesa norte-americano Jeff Agoos.

Prova disso é que, dezoito meses depois, as duas nações enfrentaram-se novamente num amigável em Pasadena, na Califórnia. “Em muitos aspetos este jogo foi muito mais significativo, porque foi amigável e precisava da cooperação de ambos. Mas isso só poderia ter acontecido se a partida no Mundial de França tivesse sido um sucesso”, anota Masoudi. Dentro e fora das quatro linhas, esta foi a melhor hora do futebol iraniano.

“Almanaque Mundial” é um rubrica diária do JPN que mergulha em curiosidades da principal competição futebolística de seleções.