O Campeonato do Mundo de 2006 foi pródigo no capítulo da indisciplina. Em 64 jogos foram mostrados 345 cartões amarelos e 28 vermelhos. De longe, a partida mais acidentada correspondeu ao encontro entre Portugal e Holanda nos oitavos de final. Ao todo, o árbitro russo Valentin Valentinovich Ivanov distribuiu 16 cartolinas amarelas, nove delas às quinas, e quatro vermelhos, que resultaram em duas expulsões para cada lado.

Numa partida recheada de discussões verbais e peleias físicas, o somatório de 20 admoestações definiu o pior registo disciplinar na história dos Mundiais. Nunca um juiz havia mostrado tanto cartão naquela competição. A marca anterior remontava a 2002, num Camarões-Alemanha (0-2). O espanhol Antonio López Nieto também mostrou 16 cartões amarelos, mas ficou-se por dois vermelhos. Justamente por isso, o duelo entre portugueses e holandeses adquiriu na imprensa a denominação de “Batalha de Nuremberga”.

Cerca de 41 mil espectadores assistiram, no Frankenstadion, ao desfile de algumas das principais coqueluches do futebol mundial. Luís Figo, Deco e Cristiano Ronaldo eram figuras de proa no ataque das quinas, que tinham chegado aos oitavos após passar sem dificuldades um grupo com México, Angola e Irão. Já a “laranja mecânica” de Robben, Sneijder e Van Persie atingiu as eliminatórias depois de alcançar o segundo lugar num grupo com Argentina, Costa do Marfim e Sérvia e Montenegro.

A Holanda entrou disposta a fazer esquecer a derrota sofrida frente a Portugal nas meias-finais do Campeonato da Europa de 2004. Desde cedo assumiu domínio territorial, ao pressionar alto os primeiros momentos de construção do então vice-campeão europeu. No entanto, a maioria dos ataques lusos era travada com recurso à falta. Foi o pecado mortal de uma partida tão ansiada.

Logo no princípio do jogo, Cristiano Ronaldo, na altura com 21 anos, recebeu duas entradas duras, primeiro de Mark van Bommel e depois de Boulahrouz. Os dois jogadores foram amarelados e o extremo pediu três vezes assistência médica. Ronaldo não aguentou as dores na coxa direita e acabou substituído em lágrimas por Simão Sabrosa à meia hora. Estavam ditadas as rédeas de uma batalha campal que teve polémicas de toda a ordem e muito pouco futebol.

Pelo caminho Maniche e Costinha ripostaram, com o segundo a constituir a primeira baixa do encontro por indisciplina. Em cima do intervalo (45+1’), o dono da camisola seis portuguesa viu o segundo amarelo por mão na bola. A agressividade viria a estourar na etapa complementar, sem que alguém tivesse capacidade para travá-la.

Petit, Giovanni van Bronckhorst e Luís Figo receberam cartões amarelos, sendo que o capitão das quinas escapou à saída precoce depois de ter tentado dar uma cabeçada em van Bommel. Pouco depois (63’), Boulahrouz viu o segundo amarelo e consequente vermelho, por uma cotovelada em Figo. Durante um quarto de hora os dois países atuaram com dez unidades, mas não foi por isso que a virilidade parou.

À entrada para os vinte minutos finais, Portugal colocou a bola fora das quatro linhas para permitir que um jogador fosse assistido. Só que os holandeses acabaram por não devolver a bola ao adversário. Duplicou a dose de confusão no relvado, com Wesley Sneijder e Rafael van der Vaart a serem punidos, à semelhança de Ricardo e Nuno Valente. Aos 78 minutos, Deco retardou a reinício da partida na conversão de um livre direto. O médio luso-brasileiro, que minutos antes tinha empurrado John Heitinga, recebeu duplo amarelo, deixando Portugal com nove jogadores a tentar aguentar a curta vantagem até final.

Ainda assim, a Holanda acabou por não conseguir capitalizar a vantagem numérica e viria a também a sofrer nova expulsão, de van Bronckhorst, já no quinto minuto de descontos. Os jogadores acalmaram-se com o apito final, como se nada tivesse acontecido. Quem não se recorda da célebre imagem de Deco e Gio, na altura colegas de equipa no Barcelona, depois de terem sido expulsos, sentados lado a lado à porta dos balneários a verem aquilo que se passava no relvado?

Portugal saiu vitorioso (1-0) do Frankenstadion, graças a um golo de Maniche, marcado aos 23 minutos. Deco cruzou rasteiro para a grande área e Pauleta amorteceu o esférico para o remate certeiro do camisola 18, que voltou a destroçar a baliza de Van der Sar. O centrocampista emprestado pelo Dínamo de Moscovo ao Chelsea foi eleito o melhor em campo.

“Foi um jogo intenso, disputado, difícil. Um jogo típico da [Taça dos] Libertadores, que é uma guerra”, analisou o técnico Luiz Felipe Scolari. “No segundo tempo não jogamos futebol, foi apenas caos”, lamentou o seu homónimo Marco Van Basten. Até Joseph Blatter, no momento o presidente da FIFA, criticou a prestação do árbitro, ao apontar que Ivanov deveria ter mostrado um amarelo a si próprio pela fraca exibição durante a partida.

O juiz russo estava à beira da reforma quando foi escalado para a partida entre Portugal e Holanda. Teoricamente, seria o derradeiro encontro da sua carreira internacional, iniciada em 1997. Holandeses e portugueses ajudaram-no a fazer com que esse jogo se tornasse inesquecível. Mesmo que só tenham sido cometidas 25 faltas. “Foi o jogo mais difícil da minha carreira. Tinha arbitrado muitos jogos na Rússia e no cenário internacional e lidado com várias situações diferentes. Estava preparado para um jogo de extrema pressão, mas o ambiente que encontrei ali era diferente de qualquer outro que já tivesse experimentado”, assumiu em entrevista à página oficial da FIFA.

No fim de contas, as quinas já não atingiam os quartos de final do Mundial desde a geração de Eusébio, em 1966. Quarenta anos depois repetiram o marco em Nuremberga. Seguiu-se a Inglaterra, derrotada através do desempate por grandes penalidades. Portugal acabou a prova na quarta posição, depois de cair nas meias-finais perante a França e perder a atribuição do terceiro posto para a anfitriã Alemanha. Foi o segundo melhor registo em sete presenças mundialistas.

“Almanaque Mundial” é um rubrica diária do JPN que mergulha em curiosidades da principal competição futebolística de seleções.