Desde o pontapé de saída do Mundial 1990 que não se falava de outra coisa: a possibilidade do campeão mundial Diego Armando Maradona cruzar-se com a anfitriã Itália. Afinal, era no país da bota que o futebolista argentino brilhava há seis temporadas consecutivas com a camisola do Nápoles, tendo acabado de conquistar o segundo “scudetto”. O cenário tornou-se iminente depois de a seleção liderada por Carlos Bilardo, que ultrapassou a primeira fase atrás de Camarões e Roménia, ter eliminado o invicto Brasil nos oitavos de final. Por seu turno, a Itália foi ganhando jogos de enfiada sem sofrer golos. Foi preciso esperar pelas meias-finais, mas o sonho tornou-se real.

Um pouco à semelhança do próprio torneio, o confronto entre Itália e Argentina não expôs argumentos credíveis para entrar em concursos de espetacularidade. No entanto, a partida foi carregada de significados jamais sentidos noutras latitudes transalpinas ao longo daquele Mundial. Justamente porque foi agendado para o San Paolo, o estádio do Nápoles, onde Maradona era elevado a “D10s” semana após semana.

De facto, o alinhamento não poderia ter sido mais cruel para o coração dos napolitanos. Se a paixão da cidade por Maradona transcendia, em larga medida, os campos de futebol, a verdade é que o seu maior motivo de orgulho retornava a casa para defrontar os italianos. O dilema dominou as conversas preliminares e dividiu as preferências citadinas. Havia fortes razões para isso, quanto mais não fosse por estar em discussão um lugar na final do Campeonato do Mundo.

Na geopolítica italiana, Nápoles compõe uma região subdesenvolvida e sem grande fama nas zonas mais prósperas do país. No futebol era tudo semelhante, até Maradona mostrar que era possível ao clube dos subúrbios de Fuorigrotta conquistar títulos que pareciam destinados aos colossos do norte (AC Milan, Inter e Juventus) e da capital (Lazio e Roma). A aversão da imprensa do país inteiro ao médio argentino prolongou-se por toda a Copa italiana.

Pelo facto de ser venerado em Nápoles e tratado como um vilão no resto da península, o camisola dez queria vingar-se naquela noite frente à “Squadra Azzurra”. Mais ainda: apelou mesmo ao seu público napolitano que torcesse pela Argentina. “Durante 364 dias vocês [napolitanos] são considerados estrangeiros no vosso próprio país e agora vão apoiar a seleção nacional. Em vez disso, eu sou um napolitano 365 dias por ano”, atirou na conferência de antevisão.

No fim de contas, Nápoles recebeu o duelo que não queria. Entre apoiar a pátria ou o homem que tinha dado tudo ao clube do San Paolo, a cidade tendeu ligeiramente para a primeira opção. Antes do jogo desfraldou pelas bancadas uma gigantesca faixa: “Maradona: Nápoles ama-te, mas Itália é a nossa pátria”. E mais outra: “Diego nos nossos corações, Itália nas nossas canções”. O respeito do povo pelo seu ídolo voltou a intensificar-se durante a execução do hino argentino. Simplesmente foi aplaudido do início ao fim.

Só a mera presença de Maradona fazia com que Itália duvidasse das suas hipóteses. Ainda assim, os transalpinos saíram na frente (17’) pelo pé direito de Salvatore Schillaci, na recarga ao remate bloqueado de Vialli. Reagiram os sul-americanos na segunda parte e chegaram à igualdade aos 67 minutos: Claudio Cannigia ganhou o duelo aéreo com Zenga e quebrou uma série de 518 minutos sem golos sofridos pelo guarda-redes transalpino. Os anfitriões multiplicaram ataques no tempo que restava, até por terem enfrentado um adversário reduzido a dez unidades durante metade do prolongamento.

Mas o empate persistiu. Sergio Goycochea, que já tinha salvado a Argentina na eliminatória anterior frente à Jugoslávia, voltou a fazer a diferença no desempate por grandes penalidades (3-4). Desta vez travou as conversões de Donadoni e Serena. Pelo meio, Maradona marcou o último penálti da “albiceleste”. No fim, depois do choque, Nápoles festejou com o seu ídolo.

Alguns dias mais tarde, os argentinos, desfalcados de quatro titulares suspensos, repetiram a final de 1986 com a Alemanha Ocidental. Diego foi vaiado do início ao fim e os germânicos ganharam com um penálti a cinco minutos do fim. O número dez deixou a competição sem o troféu, mas com metade do plano cumprido. “Por todos os significados que teve, e embora tenha me custado um montão de coisas depois, não imaginam o prazer de eliminar a Itália em casa”.

“Almanaque Mundial” é um rubrica diária do JPN que mergulha em curiosidades da principal competição futebolística de seleções.

Artigo editado por Filipa Silva