Em 1982, o Brasil despontava como favorito ao título mundial. Depois de anos sem o brilhantismo que tinha gerado três títulos, o “escrete” chegou ao torneio realizado em Espanha com a melhor equipa desde 1970 e um espírito focado em ganhar com nota artística. Para muitos estudiosos esta foi a mais sedutora seleção brasileira de todos os tempos. Telê Santana, dogmático da arte como forma de jogar, fez da zona intermediária um poema com bola que arrastava multidões.

Chamaram-lhe o quadrado mágico: Toninho Cerezo e Paulo Roberto Falcão apareciam mais recuados, com Sócrates em missões de condução e Zico a definir o último passe. Geometricamente eram versáteis, já que podiam variar os espaços ocupados e as missões desempenhadas durante uma partida.

O quadrado mágico do Brasil, potenciado por laterais ofensivos (Leandro e Júnior) e centrais nada viris (Óscar e Luisinho), jogava e fazia jogar. Dançava com a bola ao ritmo do samba e fazia as delícias dos adeptos. Foi assim em toda a primeira fase, com mais dificuldades frente à União Soviética (2-1), mas seguido de goleadas frente a Escócia (4-1) e Nova Zelândia (4-0), num total de dez golos concretizados e dois sofridos.

No primeiro Campeonato do Mundo disputado a 24 seleções, o acesso às meias-finais era determinado por uma construção bizarra em grupos de três equipas. França e Polónia venceram as suas séries com naturalidade. Já a Alemanha Ocidental assegurou a qualificação a partir do empate a zero entre ingleses e espanhóis na derradeira jornada.

No entanto, a animação vinha toda do grupo C. O Brasil arrancou com um triunfo por 3-1 diante da Argentina, campeã do mundo em 1978 com um jovem Maradona. Ou seja, quando encontrou a Itália no desafio seguinte, o Brasil só precisava do empate para seguir em frente. Perder frente a uma equipa mais pragmática, que se tinha classificado com três empates e um golo de diferença sobre os Camarões, parecia um absurdo. Só que a cultura tática transalpina foi o melhor antídoto para suplantar um futebol recheado de verticalidade.

Depois de uma vitória sobre os argentinos (3-1), a Itália derrotou o Brasil por 3-2. Mascarando toda a crise vivida com os jornalistas italianos à volta das opções do selecionador Enzo Bearzot, a “Squadra Azzurra” fez uma exibição personalizada e soltou o instinto matador de Paolo Rossi. O avançado da Juventus assinou três golos, menorizando os tentos de Sócrates e Falcão. A Itália festejava com cânticos de “Il Brasile siamo noi!”, a formação de Telê deixava inconsolável uma legião de fiéis e chorava uma das maiores desilusões, talvez só comparável ao “Maracanazo” de 1950 e ao “Mineirazo” de 2014. O público nem ousara pestanejar, tão bem se jogou de parte a parte.

A queda da formação canarinha foi a pedra de toque na campanha italiana rumo ao tricampeonato. Serviu, igualmente, como despertador de um avançado proscrito. Dois meses antes do Mundial de Espanha, Rossi regressou aos relvados após ter estado suspenso dois anos por alegado envolvimento no “Totonero”, escândalo de apostas clandestinas e falseamento de resultados que rebentara no futebol italiano. Daí para a frente só somou quatro jogos discretos pela Juventus, mas foi aposta firme de Bearzot. A imprensa não perdoou a ousadia e o avançado também não ajudou, ao ficar em branco nos primeiros quatro encontros. O camisola vinte era cada vez mais o bode expiatório de tudo o que havia de errado com a seleção italiana.

Mas a vingança chegaria a seguir: três golos ao Brasil, mais dois golos à Polónia, na meia-final (2-0), e mais um, decisivo, abrindo o marcador na final com a Alemanha Ocidental (3-1). Estava encontrado o novo campeão mundial e o goleador do torneio. Em menos de uma semana, o “Bambino d’Oro” tinha aquecido os motores rumo à ressurreição.

Por aquela altura, o Brasil já recuperava do trauma em casa. “Valeu, Brasil! Nem sempre ganha o melhor”, lia-se numa faixa à porta do hotel. Para a história ficou uma tarde perpetuada na história como a “Tragédia do Sarriá”. Sarriá, localizado nos confins de Barcelona, tinha capacidade para 44 mil espectadores, mas conseguiu um lugar privilegiado no imaginário de 208 milhões de brasileiros.

Esse desastre, somado à frouxa campanha de 1986, mudou os horizontes do futebol brasileiro. As manchetes do dia seguinte à eliminação do Mundial espanhol eram paradigmáticas: “O dia em que o futebol morreu”. Aquele estilo refinado, de toque subtil e movimentação desconcertante, era bonito, mas não rendeu resultados práticos dentro das quatro linhas. A melhor equipa que terá disputado um Mundial não consegui vencê-lo, muito menos quedar-se nos lugares de honra.

Ora, a partir daí nunca nada seria como antes. A técnica da força passou a ser valorizada face à força da técnica, expressando um pensamento global no fenómeno futebolístico. Ironicamente, foi assim que o “escrete” atingiu o tetracampeonato no Mundial norte-americano, em 1994. Contudo, era o futebol arte que continuava a despertar o triplo do prazer. Mesmo com a lição de Sarriá ainda bastante palpável na memória.

“Almanaque Mundial” é um rubrica diária do JPN que mergulha em curiosidades da principal competição futebolística de seleções.

Artigo editado por Filipa Silva