A Alemanha voltou a receber um Mundial no novo século e confiava em fazer a festa entre os seus. Simplesmente os papéis inverteram-se. Dezasseis anos depois de os alemães terem conquistado o título em Itália, era a vez de os transalpinos repetirem a façanha em solo germânico. A “Squadra Azzurra” calhou no grupo do Gana, Estados Unidos e República Checa. Após o empate contra os norte-americanos (1-1) na primeira fase, intercalado com triunfos sobre africanos e checos (ambos por 2-0), os italianos tiveram inesperadas dificuldades para bater a Austrália (1-0), nos oitavos de final.

Seguiu-se uma confortável vitória sobre a Ucrânia (3-0), antes do encontro com os anfitriões na meia-final. Em Dortmund, o clássico do futebol europeu parecia destinado aos penáltis. Fabio Grosso e Alessandro Del Piero mostraram-se, contudo, inconformados e faturaram nos últimos dois minutos do prolongamento, deixando a Alemanha, em campo e fora dele, a chorar convulsivamente.

Na outra meia-final, quem chorou foram os portugueses por culpa de um penálti concretizado por Zinédine Zidane, a castigar falta de Ricardo Carvalho sobre Thierry Henry. Repetia-se o fado do Europeu 2000, naquele que foi o adeus definitivo de Figo ao futebol internacional. Portugal acabaria na quarta posição.

Zidane ganhava a oportunidade de se despedir dos “Bleus” com chave de ouro frente à Itália. Além de Portugal, a França tinha já afastado Espanha (3-1) e Brasil (1-0) nas rondas anteriores. Para mais, ao minuto sete da final de Berlim, o médio francês colocou a sua seleção em vantagem. Marco Materazzi derrubou Florent Malouda na área e o camisola dez francês assinou um Panenka perante Gianluigi Buffon. Sem apelo nem agravo.

Zidane, que capitaneou os gauleses na final de 1998 e, entretanto, abandonara a seleção, foi reintegrado meses antes do Mundial 2006. No Olímpico de Berlim tornou-se o quarto jogador na história a marcar em duas finais de Campeonatos do Mundo. Mas havia ainda que contar com Materazzi. O central, que entrara para o lugar do lesionado Alessandro Nesta, assinou o empate de cabeça aos 19 minutos, após um canto de Andrea Pirlo. O resultado ficou por ali e o jogo seguiu para prolongamento.

A dez minutos do fim, Zinédine Zidane, que tinha sido agraciado pela FIFA como melhor jogador da competição antes da final, optou por uma despedida inglória dos relvados. Ao ceder às provocações de Materazzi, o francês virou-se para trás e acertou no peito do italiano com uma cabeçada à vista de todo o mundo. É o quarto árbitro Luis Medina Cantalejo quem informa o juiz principal Horacio Elizondo do incidente, depois de ter aparentemente olhado à distância para a repetição televisiva. Sem qualquer palavra, “Zizou” é expulso e passa ao lado da taça a caminho dos balneários. No Mundial com mais expulsos da história (28 em 64 encontros), era justamente um cartão vermelho a colorir o final da competição.

A agressão proporcionou semanas de especulação sobre o que Materazzi teria dito para despertar a fúria do adversário. Ao fim de dez anos de conjeturas, que variavam entre possíveis ofensas à mãe de Zidane e insultos racistas, pelo facto de o ex-internacional gaulês ser natural da Argélia, o defesa desvendou um dos grandes mistérios do futebol moderno. De acordo com a versão do italiano, contada ao jornal espanhol “Marca”, tudo começou quando Materazzi agarrou a camisola de Zidane, ao que este retaliou verbalmente com a provocação típica destas situações: “Se queres mesmo a minha camisola, dou-ta no fim do jogo!”.

A resposta surgiu pronta: “Prefiro a p*** da tua irmã. Falei da irmã dele e não da mãe, como li em alguns jornais. A minha mãe morreu era eu adolescente e nunca o ofenderia com tal coisa”, sublinhou o central, que garantiu já ter pedido desculpa a Zidane e admite que o episódio lhe mudou a vida: “Desde esse dia que recebo pedidos de entrevistas do mundo inteiro”.

Para responder a toda esta pressão mediática, o futebolista que na altura representava o Inter de Milão resolveu detalhar e satirizar entre capítulos o incidente da final de Berlim. Na obra “O que eu realmente disse a Zidane” estão listadas 249 possíveis frases que poderiam ter sido proferidas ao ex-jogador de Real Madrid e Juventus. As expressões variam de “Ainda não perdeste o jogo e já arrancaste todo o teu cabelo” até “Desde que Foucault morreu, a filosofia francesa ficou muito chata”. Pelo meio está o que Materazzi disse de facto na Alemanha.

“Decidi publicar um livro sobre o assunto porque todas as pessoas me perguntam o que é que eu disse para Zidane reagir daquela maneira. As minhas palavras foram estúpidas, mas não merecia aquela reação”, lamentou ao jornal “Marca”. Por sua vez, Zidane também condenou a agressão. “Não estou orgulhoso do que fiz, mas faz parte da minha carreira, da minha vida. É uma daquelas coisas que não são agradáveis, mas que devemos aceitar e digerir”, recordou num documentário exibido pela estação francesa “Telefoot”.

A decisão seguiu para os penáltis, matéria que os transalpinos não dominavam de jeito nenhum – somavam três derrotas consecutivas em desempates a partir dos 11 metros, incluindo a final de 1994 frente ao Brasil. De um total de nove conversões só claudicou David Trezeguet, um francês a jogar na Serie A que tinha decidido a final perdida pela “Squadra Azzurra” no Europeu 2000. Os transalpinos acertam os cinco a que têm direito e sagram-se tetracampeões mundiais.

Depois de um verão de incerteza, por culpa do escândalo de corrupção “Calciopoli”, o quarto título de campeão do mundo foi compensação mais do que suficiente. Louros para Marcello Lippi, que revelou estrutura e argumentos consensuais para voltar ao título que escapava desde 1982.

“Almanaque Mundial” é um rubrica diária do JPN que mergulha em curiosidades da principal competição futebolística de seleções.

Artigo editado por Filipa Silva