O JPN acompanhou o concerto de Linn da Quebrada que agitou o Maus Hábitos na noite de sexta-feira. Sala cheia para ver a transexual brasileira, figura de proa do movimento LGBTQ do Brasil.

Quando os ponteiros do relógio marcam as 21h00, já o Maus Hábitos borbulha expectante. Pelas salas e corredores, há pessoas à espera do concerto de Linn da Quebrada.

É no “aquário” que Sandra Pinheiro aguarda o início do concerto. “Vejo nesta performance da Linn uma oportunidade para retirar ideias e material para exercer o meu ativismo de uma forma mais consistente”, refere a jovem de 19 anos. “Mais do que ouvir as músicas, é saber ouvir aquilo que as letras representam”, conclui, enquanto bebe um café.

Entre as mesmas paredes caiadas de um azul tépido, Júpiter Miklos, 20 anos, faz a sua espera. Discreta e descontraída, a estudante de Biologia considera que “infelizmente ainda há muito preconceito na sociedade portuguesa”. A jovem encara a presença de Linn da Quebrada no Porto como um “desafio aos rótulos” estabelecidos.

Nem só de público nacional é feita a plateia, que se avoluma nos corredores. João Alcântara, oriundo do Nordeste brasileiro, confessa o seu interesse pelo concerto a “nível observatório”. O aluno de doutoramento em Comunicação debruça-se sobre a relação entre estilos musicais e a constituição de géneros identitários. Identifica o o estilo de Linn como um dos vários “nichos musicais” existentes no Brasil, com um “público muito específico”. De cigarro embutido entre os dedos completa: “a performance terá impacto nesse público específico, mas não sei se será tão grande como mereceria”.

Com o aproximar das 21h30, a corrente de pessoas flui para o interior da sala de concertos. O cheiro a tabaco paira lânguido no ar. As colunas de som exalam uma toada efervescente.

As seis figuras em palco sorvem a atenção de quem entra.São as Decibélicas. A banda experimental é o prenúncio do que virá. As luzes tingem os rostos do público de um verde metálico. A audiência começa a dançar, bamboleante. O estilo punk da banda contagia e alvoroça os ânimos.

O fim da primeira atuação traz um momento de pausa. Uma mescla sonora de vozes flutua. O público fervilha em entusiasmo. Alguns olhares concentrados perdem-se no palco, onde a percussão se encontra em repouso.

A primeira batida do tambor solta um alerta e a banda de Linn da Quebrada entra em cena. Uma sonoridade eletrónica começa a soar e o entusiasmo empurra o público para mais perto. Desta exiguidade é exalado o calor dos corpos que se pressionam uns contra os outros.

Linn da Quebrada Foto: Raju Oliveira

Por entre gritos, Linn da Quebrada abre caminho até ao local central do pequeno palco dos Maus Hábitos. Vem acompanhada da também performer transformista Jup do Bairro. Irreverente, provocadora e cheia de erotismo, de pele morena banhada pelas luzes laranja, Linn veste uma jardineira amarela que deixa a nu as tatuagens inscritas pelo corpo. Tem gorro e luvas negros. O olhar escuro como breu e o sorriso terno.

“Bora fazer o que a gente faz de melhor?”, desafia Linn, que desperta uma nova onda de movimento com o primeiro tema, “Enviadescer”.

Com um gesto rápido, tira o gorro da cabeça, deixando a nuca rapada despida. As congas soltam um ritmo tropical e as ondas sonoras transvasam do palco para os corpos presentes na sala. A plateia reage com euforia.

Direta e sem tabus, é assim que a sua performance comunica. O objetivo fica claro desde o início. Desconstruir “armários” erigidos pelo status quo.

“Bicha travesti de um peito só”, canta Linn com a mão no ar. Os seus dedos desenham a metade de um coração. Jup do Bairro repete o movimento. As mãos unem-se e juntas delineiam o símbolo do amor. As vozes materializam no éter o coração que sangra na letra da música.

Da força que o gesto emana, o tremor nos braços torna-se visível. União, espírito de combate, força, partilha. Assim é a luta social preconizada por Linn da Quebrada, uma luta contra os arquétipos sociais, travada na base do afeto comungado pelas minorias marginalizadas que sofrem.

Quem é Linn da Quebrada

A 18 de julho de 1990 nascia, em São Paulo, Linna Pereira, mais conhecida pelo nome artístico, Linn da Quebrada. Cantora, compositora e ativista social transexual brasileira, define-se como “bicha, trans, preta e periférica. Nem ator, nem atriz, atroz. Performer e terrorista de género”. Situa-se entre o funk carioca e o estilo pop. Em março de 2016, lançou a sua carreira musical através do Youtube, com a música “Enviadescer”. Atualmente, é uma das figuras mais ativas e relevantes no panorama LGBTQ brasileiro.

A artista começa a dançar, porque a performance de Linn não se esgota na música. O seu corpo rasga o ar com movimentos convulsos, mas precisos. Energia e intensidade transbordam da sua agilidade. Linn coloca o corpo ao serviço do seu espetáculo audiovisual. Há uma simbiose entre as palavras proferidas, a musicalidade emanada e a dança.

“Eu sou uma legião”

A intermitência das luzes quebra fugazmente a negrura. Da massa homogénea de vultos, novas identidades são reveladas. Diversidade é a palavra de ordem na pequena sala de concertos. Adolescentes e adultos. Indumentárias de padrões extravagantes e vestuários lisos e discretos. Corpos que se movimentam com destreza e corpos que balançam com timidez. Braços que cortam o ar ao som da música e braços que apenas empunham copos de cerveja.

Com os joelhos no chão, a cantora proclama: “Eu sou uma legião”. O público escuta atentamente. Na verdade, Linn é mais do que uma artista. A sua figura é a voz e a imagem de milhares de mulheres transgénero. De milhares de mulheres negras. De milhares de vítimas de homofobia. As suas palavras esculpem os desejos e os afetos reprimidos da imensidão de seres humanos asfixiados entre grilhões sociais.

Enquanto a artista interpreta “Coytada”, o público vai ao rubro. O mais recente trabalho de Linn faz a audiência saltar e acompanhar a letra com as suas próprias vozes. Desafiadora, Linn transforma a sala dos Maus Hábitos na sua própria realidade. O público molda-se com energia à rebeldia da cantora e às suas letras impregnadas de conotação sexual.

Finda a música, o ambiente festivo retrai-se. As primeiras notas soturnas anunciam o início de “Mulher”. Fragmento do projeto multimédia “BlasFêmea”, dirigido pela própria Linn da Quebrada, “Mulher” é um grito. Um grito de dor excruciante que nos fere a alma e perturba o corpo. É o protesto de uma dor silenciosa que ganha voz pela boca da performer. Violência, discriminação, prostituição. Nas palavras duras e cruas, é relatada a vida agreste das mulheres que estão “sempre em desconstrução”. Sem pudor, Linn levanta o véu que esconde esta luta diária no jogo da sobrevivência.

O silêncio é sepulcral. Mãos espontâneas levam cigarros aos lábios. No escuro, brilham acesos e incandescentes. As centelhas morrem antes de se esbaterem no chão. A mudez cessa quando a admiração do público os faz aplaudir e congratular a artista.

A intervenção social musicada prossegue caminho. De megafone na mão, Linn encara a brutalidade da discriminação causadora de vítimas: “Baseado em carne viva e factos reais, é o sangue dos meus que escorre pelas marginais”.

“Bicha estranha, louca, preta, da favela”. É deste modo que a ativista LGBTQ+ dá início a mais uma crítica aguçada de uma sociedade criadora de abismos. O seu papel enquanto voz das minorias subleva-se. Cada palavra tem a pujança de um rugido. O timbre é gutural, vem do âmago da revolta.

“Nós estamos construindo um movimento histórico. Ninguém está aqui distraído, achando que só está participando num momento de entretenimento?”, questiona de forma retórica, iniciando o fim do concerto. O apelo à consciencialização faz-se ouvir. Porém, o show não acaba sem uma última música.

“Não me leve a mal, quem descobriu o Brasil não foi Cabral”, canta enquanto interpreta a música de MC Carol. O público não tarda a responder com repetidos “Ele não!”. Com argúcia e talento, Linn encerra o espetáculo e retira-se do palco. Observador, o público permanece na sala na esperança de que Linn volte a atuar.

Marta Bateira Foto: Raju Oliveira

Nos corredores do Maus Hábitos, a vitalidade do concerto ainda paira no ar. Marta Bateira, mais conhecida como Beatriz Gosta, considera que “estamos a evoluir a passo largo”. “Achei desafiadora, gosta de chocar no bom sentido para abalar a estrutura social e fazer pensar. As pessoas sentiram-se livres, sem preconceito”, refere.

Alexandre Marques, de 18 anos, descansa sentado, no fim do concerto. Nas orelhas pendem dois alfinetes como brincos. No peito, que o casaco abotoado deixa a descoberto, brilham vários colares. De olhos penetrantes e sorriso amistoso diz: “graças a ela, pessoas como eu vivem mais um dia”. “Eu acho que precisamos de pessoas como ela para criar um espaço novo para toda a gente se sentir seguro”, diz ao JPN.

Como canta Linn da Quebrada: “Hoje, meu corpo, minhas regras, meus roteiros”. E por ações como as dela, a atualidade pinta-se em trilhos mais livres e mais inclusivos.

Artigo editado por Filipa Silva