O Brasil vive a semana que antecede a segunda volta das eleições Presidenciais, que vão ser discutidas nas urnas, no próximo domingo, entre Jair Bolsonaro (PSL), claro vencedor da primeira volta, e Fernando Haddad (PT).

Nesta entrevista, o Cônsul-Geral do Brasil no Porto, Valter Pecly Moreira, aborda o clima de polarização crescente que se vive entre o povo brasileiro, com o diplomata, que leva quase 50 anos de carreira, a dar a sua opinião sobre vários temas que dividem o país e os candidatos que estão na corrida ao Palácio do Planalto.

Sobre Bolsonaro e Haddad, Valter Pecly Moreira não se quis pronunciar, por razões inerentes à posição diplomática que ocupa, mas não se escusou a olhar para o passado recente da política do Brasil.

A relação com Portugal, onde há cada vez mais imigrantes brasileiros, também não foi esquecida.

Já trabalhou em diversos países, foi embaixador em Washington junto da Organização dos Estados Americanos (OEA). Está agora no Porto. Que balanço faz?

Eu comecei muito cedo no Itamaraty, em fevereiro de 1970. Vai fazer 49 anos. Em julho do próximo ano, eu me aposento. Minha perspectiva é que esse é o meu último posto, como nós chamamos.

Não posso reclamar da minha carreira. Acho que correu bem. Estou bem feliz com ela. Morei em Buenos Aires (foi meu primeiro posto, bem jovem), Genebra, Brasília, Bona (na Alemanha, que ainda era capital) e Paraguai. No Paraguai, fui conselheiro, um nível intermediário da carreira. Brasília, de novo, e fui embaixador em Washington, junto à OEA, especificamente. Fiquei quatro anos, depois, como embaixador no Paraguai, em Assunção. Fui Cônsul-Geral em Londres. Voltei para o Brasil. Fui para o Rio de Janeiro, porque lá nós temos o escritório do Ministério das Relações Exteriores, a antiga sede de quando o Rio era capital. Chefiei por dois anos e meio e depois fui embaixador em Budapeste, na Hungria, e finalmente aqui. É meu último posto.

 A imigração dos brasileiros para Portugal tem crescido muito, principalmente nos últimos anos. A que é que está ligado este facto?

Há vários, posso dizer o que eu leio, o que eu ouço. Talvez em primeiro lugar esteja a questão da violência. Tenho muitos amigos do Rio de Janeiro que se mudaram para cá, para Portugal. O que eles dizem fundamentalmente é isso, que fugiram da violência.

Além disso, há uma quantidade razoável de pessoas que vem aqui buscar os serviços do consulado que são empresários, de empresas pequenas ou médias, que trazem família e vem aqui tentar estabelecer um negócio.

Há também profissionais liberais. Eu tenho visto muitos advogados vindo para cá trabalhar. No outro dia, soube que tem vindo muitos dentistas também, novamente. Já houve isso no passado. Então, há um pouco de tudo, mas eu acho que a violência está sempre presente na decisão que essas pessoas tomam de vir aqui.

A crise de 2008 afetou principalmente os Estados Unidos, onde começou, afetou Portugal e, mais tarde, o Brasil. Acredita que os últimos presidentes têm contribuído para uma melhoria da situação do país?

Olha, esse é o tipo de pergunta que para um diplomata fica complicado responder. Mas eu digo uma coisa, sobre os últimos presidentes, incluindo o ex-presidente Lula, depois Dilma e depois Temer, e Fernando Henrique [Cardoso] se você quiser: Fernando e Lula tiveram ações extremamente positivas. No governo de Fernando Henrique Cardoso entrou em vigor, um pouco antes, mas por obra dele em grande parte, o plano Real, que resolveu a questão económica.

O presidente Lula fez um trabalho intensíssimo na área social, incluindo 30 milhões de pessoas [que introduziu] no consumo, enfim, na vida económica do país. Até na época, recordando um pouco, eles diziam: “crise internacional de 2008 foi apenas uma marolinha [uma onda leve]”, lembra?

Até certo ponto foi, a nossa economia depende muito dos produtos agrícolas, das matérias-primas e naquela época também subiram muito os preços destes produtos. Então, ela não foi tão afetada assim. A outra crise, em seguida, quando o preço das matérias-primas caiu, se não me engano lá para 2012/13, aí sim, nós sentimos mais. Esse processo nós mais ou menos vivemos até hoje.

Tenho muitos amigos do Rio de Janeiro que se mudaram para cá, para Portugal. O que eles dizem fundamentalmente é isso, que fugiram da violência.

Foi Chefe do Cerimonial da Presidência da República durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC). Que mudança sentiu na forma como os governos atuaram externamente, comparando o de FHC com o subsequente do presidente Lula?

Acho que em muitos pontos houve uma certa continuidade. Quando o presidente Fernando Henrique entrou, isso eu pude testemunhar porque vivia muito com ele, por ser minha atribuição como Chefe Cerimonial participar da organização das viagens internacionais, foi um prestígio do Brasil.

Eu me lembro depois que eu saí do governo, fui para Washington, e os meus colegas diziam assim: “puxa, você tem um presidente de primeira”. Era assim que ele era percebido e era assim que o Brasil, na época, era percebido. Tinha uma crise económica de uma inflação incrível, o plano Real veio e resolveu. A projeção do Brasil foi enorme.

Com o Lula, não foi diferente. Ele entrou em 2003 e eu posso dizer da minha experiência pessoal como embaixador do Paraguai entre 2004 e 2008, portanto, o primeiro governo do presidente Lula, a imagem do Brasil, do ponto de vista de sua política externa, também foi muito boa, muito positiva.

Ele foi várias vezes a Assunção, para aquelas reuniões com os presidentes do Mercosul, semestrais. Eu pude constatar, primeiro, o grande interesse que ele tinha por esse tema e, segundo, o respeito que ele inspirava.

Acho que houve diferenças no perfil das pessoas, mas também um ‘boom’ inegável na economia brasileira, pelo menos no primeiro governo do presidente Lula. Tudo isso ajuda. Aliado ao interesse que ele tinha a esse tema de política externa, ele se sentia muito à vontade junto a outros presidentes. É uma mesma linha de ascensão em termos de prestígio do Brasil.

Desde a redemocratização do país em 1985, com o fim da ditadura militar, até 2003 o governo se posicionava de uma forma mais centro-direita, mas com o governo Lula, o país virou à esquerda. Que responsabilidade teve essa governação na polarização que hoje se vive?

É uma pergunta difícil de responder, sobretudo em poucas palavras. O país entrou em certas dificuldades, pelo que eu vejo, a questão da corrupção atuou muito fortemente para isso. Eu acho que essas eleições estão mostrando que há uma rejeição ao partido do ex-presidente Lula, ao PT (Partido dos Trabalhadores), no sentido de que quase alguma coisa de novo tem que acontecer. É um pouco por aí que eu responderia sua pergunta, mas eu não posso.

Durante a campanha eleitoral, alguns temas mostram posições diametralmente opostas entre os candidatos. Um desses temas que é a legalização ou descriminalização da maconha. Em Portugal é descriminalizada, agora também no Canadá foi legalizada para uso recreativo. Acha que o Brasil está sendo encaminhado para esse lado também?

Mais uma vez já que falamos no presidente Fernando Henrique, ele é um partidário dessa posição de que se deve descriminalizar. Eu não vejo ao longo desses anos, em que o tema vem sendo debatido, que tenha havido alguma evolução nessa questão. Eu não acho que possa ser algo para já. Pode ser que, à medida que outros países o façam e que os estudos demonstrem que é algo benéfico do ponto de vista de atenuar a criminalidade ou o que existe de negativo em volta do tráfico, inclusivé, com os cuidados que eu vi pela imprensa que o Canadá tomou para não deixar que isso chegue nos jovens e crianças, pode ser que evolua. Eu não percebo isso como algo que esteja em ascensão assim. Pode ser que haja uma parcela da sociedade que acha que deva, mas tudo isso tem que passar pelo Congresso.

Outro tema um pouco polémico atualmente também é o caso do aborto, se deve ou não ser legalizado. Acha que é uma escolha que cabe ao governo fazer?

Aí de novo você tem uma questão muito complexa, porque essa questão envolve a oposição, não só da Igreja Católica, mas também de todas as outras religiões. Mais uma vez, pelo Congresso não passa, eu acho. Eu já ouvi comentaristas e articulistas dizendo que é melhor não forçar porque pode até regredir, porque alguma coisa a gente já tem nesse sentido.

O Supremo Tribunal já tomou decisões na impossibilidade do Congresso tomar em relação a fetos que tem problemas cerebrais graves. Nós temos, se não me engano, a possibilidade de a mulher abortar em casos de risco. Então, o que eu vejo, neste dado conservadorismo que tem prevalecido no Congresso brasileiro, que algumas pessoas que defendem acham melhor não arriscar para não retroceder. Mas é tudo que eu posso dizer, não é um tema do meu dia a dia.

O Brasil já presenciou a destruição de diversos ecossistemas, como por exemplo da Mata Atlântica e de Araucárias. Na atualidade é muito discutida a abertura da Amazônia para exploração, tanto por brasileiros como por estrangeiros. Qual é a sua posição sobre este assunto?

Minha posição tem que ser a posição do governo brasileiro. Eu não posso ter outra enquanto não me aposentar, de maneira que eu acho que há um esforço do governo.

Tivemos uma certa liderança nas negociações que levaram ao Acordo de Paris, nos comprometemos a reduzir as emissões, a atenuar a devastação sobretudo da Amazónia, mas também de outras áreas. Agora, a grande dificuldade que nós temos é a imensidão do território, é continental. É muito difícil controlar aquilo tudo, mas é evidente que o governo tem um papel fundamental em afirmar sempre que essa é a sua posição, se realmente quer contribuir de uma maneira efetiva para que haja uma diminuição do aquecimento global ou que ele não tenha um alcance maior que o suportável.

No Brasil, o voto é direto, o sufrágio é universal e é obrigatório para todos os cidadãos. Isso infringe a democracia brasileira?

Não, eu acho que é uma opção. Não vejo mal nenhum em que seja obrigatório, o importante que as eleições sejam corretas, feitas com lisura. Acho que isso acontece. Pessoalmente, até acho que não precisava de ser obrigatório, mas eu entendo que seja por razões de tradição de várias décadas. Não acho que ser obrigatório é uma negação de melhor democracia. É importante que o maior número possível de brasileiros participe nas eleições.

Você perguntou se a democracia está ameaçada? Eu espero que não, porque temos demonstrado, nestes últimos 30 anos, que ela tem funcionado bem.

A violência no nosso país é muito grande, em diversas regiões pessoas têm imigrado para fugir deste problema, como já mencionou. Há alguma solução imediata para o problema?

Claro que não. Eu acho que é muito, mas não só, pela economia. Ou seja, ela agrava, as pessoas estão desempregadas, não têm onde recorrer, o tráfico e a criminalidade atrai jovens. As famílias não têm meios… essa é uma das razões, não é a única.

No Rio de Janeiro se tentou fazer com as UPP [Unidade de Polícia Pacificadora, instaladas em algumas favelas]. Correu bem, até um certo ponto, mas eu acho que a situação económica do país piorou, as UPP também começaram a não ter aquele efeito benéfico que tiveram no início. Então, está muito vinculado com a questão económica.

Ao lado disso, é o Estado estar ali presente, dar educação, cultura, lazer, esporte, isso é fundamental. E, já que estamos diante de um diplomata, é fundamental que haja uma cooperação entre os países vizinhos, porque tem aí armas e drogas que você não pode combater sozinho hoje em dia, porque exige uma cooperação internacional. Quando se tem dez vizinhos como o Brasil, é fundamental que isso ocorra. Se tenta, mas, na minha avaliação, ainda falta algo.

Sobre a política de acesso a armas. Vê como solução, para o problema da violência, o armamento da população?

Eu, pessoalmente, sou contra. Não acho que isso resolva. Acho que ao contrário, pode piorar. Se todo mundo pudesse ter arma em casa ou consigo, o aumento dos crimes em função disso seria grande. Mas não acho que tenha clima no Brasil para que se libere o uso e o porte de armas.

Ainda no tópico da violência, diversas pessoas estão sendo agredidas por demonstrarem suas posições políticas. Há o exemplo de uma mulher homossexual de 19 anos, na qual foi desenhado o símbolo nazi da suástica com um canivete por se posicionar contra um candidato destas eleições [o caso sofreu entretanto uma reviravolta, com a Polícia a indiciar a jovem por falso testemunho, facto posterior à realização desta entrevista]. Também houve um estudante recém-formado que levou com garrafas após se posicionar politicamente. Além disso, tivemos um candidato à presidência que levou uma facada numa ação de campanha. O que espera que mude no âmbito social após esta eleição?

No âmbito social só há mudança se a economia for forte, ou seja, que você resolva uma série de questões que precisam ser resolvidas do défice público, por exemplo, para que sobre dinheiro para você investir no que realmente interessa. Só vai mudar se nós tivermos realmente um padrão de educação bem maior que o que existe hoje, bem mais eficiente.

Eu não vejo outra maneira. Educação é o número um, muita gente fala assim “prioridade: educação e saúde”, sem dúvida que são. Se você cuida da educação como tem que cuidar até grande parte da saúde se resolve. Pessoalmente, eu acho que o Brasil tem que dar uma importância fundamental à questão do meio ambiente. Educação e saúde sim, mas eu acho que a terceira seria meio ambiente. Até a segurança melhora se você melhora a educação. Eu sou totalmente adepto para que se tomem posições e atitudes mais fortes na área do meio ambiente.

Uma das mais importantes formas de divulgação dos acontecimentos para a população é a imprensa. Como pudemos perceber pelos casos referidos a liberdade de expressão e possivelmente a de imprensa podem estar ameaçadas. Acha que a democracia brasileira está em risco?

Eu acho que não, pelo menos até o ponto em que nós estamos. As eleições estão sendo livres, o debate é aberto, a imprensa se manifesta… tem seus defeitos, como a questão das fake news que parecem que tomaram uma dimensão enorme no Brasil, este ano, com as eleições.

Nós temos instituições fortes que funcionaram até agora e o que eu espero é que continue assim. Quem quer que seja o próximo presidente, eles não são todo-poderosos. Existe o poder legislativo e o poder judiciário que têm as suas funções e que podem redimensionar posições mais radicais. Você perguntou se a democracia está ameaçada? Eu espero que não, porque temos demonstrado, nestes últimos 30 anos, que ela tem funcionado bem. Às vezes, o governo não funciona tão bem, mas as instituições têm funcionado.

Artigo editado por Filipa Silva

Artigo atualizado às 17h24 de 24 de outubro de 2018