No sábado, a mais bela livraria do mundo abriu portas a horas noturnas para acolher a sua autora do mês, Maria do Rosário Pedreira.
A conversa informal, moderada por Nuno Pacheco, jornalista do “Público”, arrancou debruçada sobre a mais recente faceta da autora: letrista de canções de fado, como o “Fado da Lello” que estrearia dali a nada naquele local.
Maria do Rosário Pedreira é considerada um dos grandes nomes da poesia contemporânea portuguesa. Editora da Leya, escritora, poetisa, letrista e cronista do “Diário de Notícias”, a autora tem também o blogue “Horas Extraordinárias”, onde escreve diariamente.
Aurora Pedro Pinto, presidente do Conselho de Administração da Livraria Lello, abriu o evento começando por mostrar a alegria com que recebeu a autora: “Maria do Rosário Pedreira é uma pessoa multidisciplinar, uma pessoa com múltiplas facetas, uma mulher que tem muito para explorar”, referiu.
Perante uma sala cheia, Maria do Rosário Pedreira começou por dizer que se considera uma ficcionista. Embora admita que todos os seus poemas estão relacionados com a sua vida, esclarece que “os contornos desses poemas, as histórias desses poemas, são ficção”.
Rosário entrou pelo mundo da escrita cedo, mas não se considera uma poetisa muito produtiva. Afirma que não decide escrever poesia, a poesia é que vem até ela por iniciativa própria, sob a forma de um verso que não lhe sai da cabeça e que, mais tarde, desencadeia a escrita do poema.
Esta aparição ocorre sobretudo nos momentos mais difíceis: “Eu entendo que a minha escrita corresponde sempre a tirar coisas que me estão a fazer mal e, portanto, quando as consigo passar ao papel, elas deixam de me magoar”. O mote da sua poesia é quase sempre a ideia do fim – esse pensamento fatalista está muito presente no modo como racionaliza as palavras.
Para o espetáculo “A Social Poesia”, no qual participou nas Quintas de Leitura, evento mensal que decorre no Teatro do Campo Alegre, a autora inspirou-se em manchetes de jornais perturbadoras. Essa foi uma exceção na medida em que escreveu sobre a dor do outro, e não sobre a dor pessoal: “Claro que me estão a fazer mal a mim, porque me impressiono com a dor alheia. A dor alheia é nossa também”, observou. Desse conjunto de textos, só alguns foram publicados em revistas.
Para Maria do Rosário Pedreira, a poesia aparece de assalto sem hora marcada, quando está à espera de um autocarro ou mesmo enquanto lê originais de outras pessoas. Muitas vezes, por associação, ao ler livros, lembra-se de algo que daria um bom poema.
Na sua visão, os editores escritores são perseguidos pela incerteza de nunca saberem se o que escreveram terá ou não sido roubado a alguém acidentalmente. “Nós [editores escritores] temos todos sempre um bocadinho a ideia de que surripiamos coisas sem querer”, diz, provocando alguns risos na plateia.
O “Fado da Lello”
Desde criança que a autora tem uma forte ligação ao fado, uma vez que o pai também escrevia para este género musical. Porém, foi Carlos do Carmo, amigo de longa data da família, quem a desafiou pela primeira vez a fazer uma ou mais letras para o fado tradicional, em 2006.
Maria do Rosário Pedreira pensou que seria uma experiência única, mas uns fadistas levaram a outros e acabou por escrever poemas interpretados por grandes nomes da música portuguesa, como Aldina Duarte, Salvador Sobral, Ricardo Ribeiro, António Zambujo, Carminho ou Ana Moura.
Ao contrário da poesia, escrever para fado trata-se mais de uma encomenda. “Quando nós escrevemos para um fadista, temos de perceber se aquilo encaixa naquela pessoa: a idade, o sexo, a experiência, o reportório”, explica.
Para além disso, as letras para fado exigem simplicidade e objetividade. Isto porque o público tem que entender a mensagem enquanto ouve a canção e não há lugar a segundas hipóteses, em oposição ao que acontece na poesia, em que o leitor pode reler várias vezes.
A métrica pedida pelo intérprete acaba por guiar o letrista na organização dos pensamentos por verso e por estrofe. “O espartilho ajuda. Não considero que seja limitador, considero que ele ajuda muito a arrumar as ideias”, afirma Rosário.
No entanto, esta disciplina que a escritora foi aprendendo, não influenciou em nada a sua escrita poética. “Vejo muito o escrever letras como um trabalho, não vejo como uma coisa especialmente criativa ou artística. Vejo muito como uma resposta a um pedido”. E é por esse motivo que “as histórias do fado são, se calhar, menos sentidas e mais premeditadas”, diz.
Maria do Rosário Pedreira já aprendeu muito a escrever letras, como por exemplo as palavras que não podem ser cantadas e onde se colocam as tónicas nos versos. Sendo das pessoas mais velhas a trabalhar na Editora Leya, a autora considera que já não tem muito para aprender neste ramo. “É muito bom estar numa outra área em que eu tenha muita coisa ainda para aprender”, remata.
Para a letrista, deve haver alguma simpatia entre quem escreve e quem canta. Já aconteceu rejeitar convites por não gostar da música ou do artista. “Eu faço isto um bocadinho por hobby portanto gosto depois de me ouvir na voz de quem também gosto”, explica.
Depois de uma série de perguntas do público, a conversa terminou com uma questão da parte da administração da Lello acerca da sua reação inicial ao convite de escrever o fado para a livraria centenária. A autora confessa que achou logo uma excelente ideia mas, a princípio, duvidou da sua capacidade de escrever sobre “tamanho marco cultural do Porto e do país”.
Um fado multiplicado por cinco
Patrícia Costa e os seus músicos (Pedro Martins na guitarra portuguesa, João Moutinho na viola de fado e Luís Lumini no baixo) descem lentamente a inconfundível escadaria vermelha para interpretar o tão aguardado momento: a estreia do “Fado da Lello”, com sete estrofes de cinco versos.
Após a reação profundamente entusiasta do público, uma canção dá lugar a outra e a fadista acaba por cantar mais cinco fados, entre eles o “Erros meus”, também escrito por Maria do Rosário Pedreira e também ouvido pela primeira vez na voz de Patrícia Costa.
Terminado o momento musical, as pessoas dirigem-se à autora e à fadista para as felicitar e elogiar o seu trabalho de ambas. Todos caracterizam a noite de partilha como “mágica” ou “perfeita”, numa atmosfera tão especial que alia a sede da cultura às emoções fortes . Segue-se uma pequena sessão de autógrafos que encerra o encontro noturno por volta das 23h45.
O evento contou ainda com a inauguração da exposição dedicada à escritora, que irá permanecer até ao dia 27 de Novembro, dia Mundial do Fado e dia em que Rosário deixará de ser a autora do mês para dar lugar a um outro grande nome da literatura, que irá ser revelado mais tarde.
No dia seguinte, a autora também marcou presença na Livraria Lello, mas desta vez no bosque literário e com a atenção reservada aos mais pequenos. Pelas 11h30, Maria do Rosário Pedreira partilhou o conto infantil “A minha primeira Amália” – uma biografia de sua autoria dedicada à ilustre fadista Amália Rodrigues.
Artigo editado por Filipa Silva