Em “Os Dez Espelhos de Benjamin Zarco” (Porto Editora) aprendemos com Benni e Shelly que existem diferentes maneiras de superar as tragédias. Com Richard Zimler, o autor, compreendemos que é preciso saber perdoar e aprender a canalizar as emoções.

O novo romance do escritor de origem norte-americana, há duas décadas e meia a residir no Porto, transmite a mensagem de que é preciso largar o passado, sem nunca esquecer o seu papel no presente e os ensinamentos que dele podem emanar para o futuro.

O JPN entrevistou o escritor na Livraria Lello, no Porto, no dia da apresentação da sua 17ª obra. Um livro de paixão e solidariedade, com personagens imperfeitas e tumultuosas que se transformaram em portas a partir das quais olhamos o mundo onde vivemos.

Queríamos começar por falar um pouco da maneira como encara a arte de escrever. Descreve sempre o seu processo criativo como algo de muita liberdade. É o momento que o inspira? Como é que se chega a esse nível de criatividade?

Bom, em parte, é um treino. Um violinista não vai ser um excelente músico sem treinar quatro, cinco horas por dia, em casa, durante quinze anos, vinte anos. Não se pode pegar no violino, tocar e ter a expetativa de tocar Paganini ou Mozart ou Beethoven… isso não vai acontecer.

A escrita é a mesma coisa: temos que trabalhar, começar a ler excelentes escritores e, depois, pouco a pouco, começar a escrever. Um parágrafo por dia, uma página por dia. Contos narrativos, crónicas. Quer dizer, é todo um processo de aprendizagem.

É isso que eu fiz. Já tenho 62 anos, então, estou a escrever romances desde, provavelmente, 1992. Em 26 anos, eu aprendi a trabalhar com as ferramentas da escrita, com palavras, parágrafos, o som de uma palavra, o ritmo de uma frase, a poesia de uma frase. São poucos os escritores que aos 20 anos vão escrever alguma coisa de qualidade; leva muito tempo. Agora, o meu processo é: quando eu escrevo um romance histórico como este, o enredo e as personagens surgem diretamente da pesquisa.

Ao pesquisar o Gueto de Varsóvia nos anos 40, ou Montreal nos anos 60, ou Nova Iorque no pós-guerra [pesquiso] como é que era a vida quotidiana das pessoas? Ao pesquisar aquilo tudo, as personagens surgem – e das personagens surge a história. Eu não tenho uma ideia da história do livro antes de conhecer as pessoas. Então o meu processo, se calhar, é um bocado diferente do de outros escritores, que começam com uma história, querem contar esta história, depois inventam as personagens – eu não consigo fazer isso.

Numa TED Talk que deu em 2013, na Universidade Nova, disse que, após ter escrito “O Último Cabalista de Lisboa” se apercebeu de que, de certa maneira, gostava muito de escrever por aqueles que não tinham voz. Nesta sua última obra, “Os Dez Espelhos de Benjamin Zarco”, Benjamin e Shelly fazem parte desses silenciados – são vítimas do Holocausto. Como é que se dá voz àqueles que não estão habituados a tê-la?

Com muita honestidade. É uma grande responsabilidade falar por pessoas que não têm voz, porque eu não quero distorcer a vida deles. Quem sou eu para roubar a vida de uma pessoa, distorcê-la e ganhar a vida vendendo livros? Não. Eu tenho que fazer muita pesquisa, para contar essas vidas, da perspetiva dessas pessoas, de uma forma honesta e verdadeira.

No caso das vítimas do Holocausto, eu leio tudo que eu posso sobre esse crime contra a Humanidade: leio os grandes escritores, como Primo Levi; leio diários, manuscritos, pesquiso na internet fotografias, mapas do Gueto de Varsóvia ou da Polónia durante a ocupação Nazi. É uma enorme responsabilidade – e eu sinto isso. Eu teria uma enorme sensação de culpa se mentisse sobre um assunto tão importante como este.

A Livraria Lello acolheu a apresentação de "Os dez mandamentos de Benjamin Zarco".

A Livraria Lello acolheu a apresentação de “Os dez mandamentos de Benjamin Zarco”. Foto: Sofia Matos Silva

Para muitas pessoas, o Holocausto continua a exercer um certo fascínio. Porque é que sente a necessidade de mergulhar tantas vezes neste tema?

Talvez seja, em parte, para tentar compreender o incompreensível. Mas, também, porque sou um ser humano e quero saber o leque das possibilidades da nossa espécie.

O que há de melhor: solidariedade, empatia. Então, eu quero saber de Mahatma Gandhi e Nelson Mandela. Mas também acho que temos a obrigação de saber o pior: crueldade, mentira, propaganda. E não devemos negar os aspetos negativos; eu acho que isso não vai levar a lado nenhum. Basta olhar para o Brasil neste momento [n.d.r. a entrevista foi realizada antes de terminado o processo eleitoral para a Presidência do Brasil, do qual saiu vencedor Jair Bolsonaro]. Provavelmente vão eleger um fascista, racista, misógino, homofóbico, um homem profundamente violento, em parte porque, provavelmente, a grande maioria dos brasileiros não sabe nada sobre a sua própria história. Não sabe nada da ditadura fascista brasileira, em que milhares de pessoas desapareceram, ou muitos milhares foram  torturadas. A economia foi pelo cano abaixo. Mas eles não sabem nada disso. Acho que, de certa forma, ler sobre os crimes contra a Humanidade, quer seja o Holocausto, a Guerra do Vietname ou a Guerra Colonial de Portugal, é uma proteção.

A minha mãe nunca comprava produtos da Alemanha. Uma criança absorve isso tudo, não é necessário falar

É a nossa maneira de nos vacinarmos contra os demagogos e os ditadores do nosso mundo. Alguém que conhece a história do Holocausto não vai cair na conversa de um Bolsonaro, não vai acreditar.

Já existe muita literatura relacionada com o sofrimento dos judeus. O que torna a história dos Zarco especial?

Bom, há uma coisa muito importante para mim: na minha família somos judeus asquenazim. Há uma divisão geográfica no mundo judaico: os judeus da Polónia, Alemanha, Europa de Leste, são judeus asquenazim; os judeus de Espanha e Portugal, são judeus sefarditas.

Mais tarde, depois da Inquisição começar, talvez até um pouco antes, os judeus sefarditas emigraram para Istambul, Constantinopla, Salonica, Norte de África, Itália. Mais tarde, para Amsterdão também. Então, para mim, falar dos Zarco é uma oportunidade de descobrir um mundo desconhecido: o mundo dos sefarditas.

Mesmo os judeus asquenazim não sabem nada sobre como era a vida dos sefarditas, porque é que eles fugiram de Portugal, quando é que eles foram corridos de Espanha, para onde é que eles foram. É um mundo que me provoca muita curiosidade e muito fascínio.

Voltando um bocadinho à sua pesquisa, no seu processo para começar a escrever esta obra, entrou em contacto com sobreviventes do holocausto? Como é que foi, enquanto judeu, estar a remexer nestas memórias?

Para escrever este romance, eu vi muitos vídeos, mas não fiz entrevistas pessoais. Não sei porquê, mas não me senti confortável a abordar esses assuntos com pessoas que não me conhecem. Mas não é necessário, porque há muitas informações, muitos vídeos, muitos diários.

Eu cresci num bairro meio judaico, em Nova Iorque, em que, por exemplo, na família que vivia do outro lado da rua, o pai e a mãe tinham a tatuagem dos números – tiveram nos campos de concentração. E isso era bem comum onde eu cresci. Qualquer pessoa que cresceu em Nova Iorque se deparava com isso, mais tarde ou mais cedo.

Curiosamente, o Holocausto, para os judeus, está quase sempre presente. Pelo menos para a minha geração. Se calhar, agora, para os jovens judeus, não está tanto. Mas, para a minha geração, era inevitável o Holocausto estar presente.

Da família da minha mãe, ninguém que permaneceu na Europa sobreviveu. Centenas de parentes mortos nos campos – exceto um primo da minha mãe que sobreviveu porque estava a trabalhar em Bruxelas quando os nazis ocuparam a Polónia, e ele casou, teve dois filhos, eu conheço os filhos. Mas o resto da família desapareceu. A minha mãe nunca comprava produtos da Alemanha. Uma criança absorve isso tudo, não é necessário falar, porque as crianças são quase esponjas para informações e noções.

É normal que as crianças sintam isso. É todo um lado da família que desapareceu, toda uma parte da história apagada.

Sim, eu sinto isso ainda hoje em dia. Se não tivesse havido o Holocausto, eu teria centenas de parentes na Polónia, e, agora, na Alemanha, na Itália, porque eles teriam emigrado. E qualquer judeu sefardita teria parentes na Grécia, na Turquia. É espetacular, ou seria espetacular. Mas quando eu olho esses países, eu vejo um grande vazio. Essa gente desapareceu, foi tornada em fumo nas chaminés dos campos da morte.

O que é que espera que este livro represente no contexto da sua obra?

Mais uma etapa. O que eu quero sempre de um livro é que seja apreciado, que os leitores gostem do livro e fiquem emocionados. Quer dizer, quando eu escrevo um romance, não é para ter uma relação só intelectual com o leitor. Não, eu quero o coração, a alma, o espírito do leitor. Eu quero que, sobretudo, desenvolva uma relação com as personagens do livro e, depois de acabar, pense “bom, eu conheço esta gente e foi giro passar 10, 20 ou 30 horas com eles”.

Diz que as personagens vivem dentro de si, que têm vontade própria e que o possuem até. De onde é que surgiram estas personagens?

Eu escrevi o primeiro capítulo, que é uma narrativa do filho de Benni, e, não sei bem porquê, mas eu podia visualizar muito bem o relacionamento, entre o filho e Benni. Era quase como se eu já conhecesse essas duas pessoas. E, ao falar de Benni, comecei a falar de outras personagens. Do primo Shelly, da sua esposa Teresa. Mas, no princípio, eu não sabia quem era Teresa, como era o feitio dela, a personalidade dela, o percurso de vida. Que é outra caraterística da minha escrita.

Quando eu acabo um romance, eu conheço as personagens muito melhor do que quando comecei. Daí a necessidade, sempre, de voltar para o início do livro e reescrever muitas cenas. No fim do livro, eu já sei quem é George, quem é Shelly, como é a relação entre George e Shelly. Eu tenho que voltar para o início, para criar uma narrativa mais coerente, em que o leitor acredite – porque se houvessem muitos erros, muitas peças que não se encaixassem, o leitor não acreditaria.

E, em termos de sentimentos, como é que se sentiu ao viver estas diferentes personagens? O livro tem diferentes peças. Como é que foi viver cada personagem, em cada circunstância?

É um desafio muito grande. Cada narrativa é escrita na primeira pessoa. Neste livro, eu estava na pele de um artista de 45 anos, o Eti; estava na pele da mãe dele, Teresa, etnomusicóloga e flautista; estava na pele de George, meio índio, meio judeu; estava na pele da esposa de Shelley, Julie; e estava na pele de uma pianista polaca de 60 e tal anos, Ewa. Então, tenho a oportunidade – tal como um ator – de entrar na pele de pessoas diferentes e de ver o mundo da perspetiva deles.

Para mim, é uma grande vantagem. Eu adoro a experiência de entrar na pele de uma pianista polaca que adora Beethoven e Bach. E, de um dia para o outro, um rapaz judeu aparece na porta, e ela tem que decidir, “vou esconder este jovem e arriscar a minha própria vida?” ou “vou abandoná-lo e ficar segura, mas trair os meus próprios valores e princípios?” É uma decisão difícil. É preciso coragem para decidir, “não, eu vou esconder e arriscar a vida”. E muita gente fez isso durante a Guerra. E muita gente não fez isso.

O livro está escrito em forma de peças de um mosaico. Porque é que sentiu necessidade de criar essas peças separadas?

Cada projeto é diferente e não era a minha intenção quando comecei. Eu escrevi o primeiro capítulo, gostei muito do primeiro capítulo, mas achei que tinha um princípio, meio e fim.

O narrador, Eti, filho de Benni, já tinha dito o que ele queria dizer, ele não queria dizer mais. Então, o que é que eu vou fazer? Felizmente, ele no primeiro capítulo fala de muitas pessoas que me despertaram interesse. Falou de Shelly, primo de Benni, falou da esposa, da sua mãe Teresa, falou da esposa do Shelly, Julie, falou de George, o pintor amigo de Shelly e eu queria saber mais deles. Pensei “bom, mas como é que eu vou fazer isso? Como é que eu vou falar do passado do Benni, por exemplo?” Então eu tinha que pensar… Mas, curiosamente, essa parte do livro não foi difícil. Eu pensei, “o leitor vai querer saber como é que o Benni foi salvo, como é que ele sobreviveu ao Holocausto… Eu tenho que explicar isso”.

Então, bom, deve ter havido alguém que escondeu o Benni em casa, não havia outra maneira, porque ele era jovem, tinha 11/12 anos, não podia fugir como um adulto e tinha que ser escondido. Então, foi fácil: Ewa. Agora, porque é que Ewa é professora de piano? Não sei. Essas coisas vão surgindo… Mas sabia que teria de ser a pessoa que salvou o Benni. E depois, cada capítulo determinava o outro… Okay, Benni foi salvo, está a viver na Polónia logo a seguir à Segunda Guerra. Mas como é que ele vai aos Estados Unidos? Como é que ele acaba em Nova Iorque? O Shelly vai ter de encontrar o Benni.

Já passei por fases da minha vida em que eu não queria pensar. Queria ler um livro, entrar noutro universo em que a doença do meu irmão não existisse.

Depois da Guerra, muitos judeus procuravam as pistas da família, queriam saber o que aconteceu com os pais, os tios, os primos. Voltavam para a Polónia, para a Checoslováquia ou para a Alemanha para tentar descobrir. Eu sabia que Shelly ia tentar saber o que aconteceu com a sua irmã, com Ester e com Benni. Então, pensei “bom, ele vai com um amigo…”. E, quer dizer, cada capítulo, eu nem sei como, é magia… Não foi difícil estruturar este livro. Foi muito mais difícil – porque são pessoas muito complexas – entrar na psicologia de cada pessoa e ser fiel a essa pessoa.

Daí a necessidade que teve de contar a narrativa através da perspetiva de várias pessoas…

Sim, e cada pessoa tinha de ter uma “voz” diferente. A narrativa não podia ser sempre igual, porque Ewa não é igual a George e George não é igual a Eti e eles têm que ter uma maneira diferente de contar as coisas. Então, se se olhar para o primeiro capítulo, Eti tem uma narrativa um pouco caótica; ele fala do passado, fala do futuro, fala do presente. Ewa, por exemplo, não. Ela é muito mais linear, muito mais direta. Cada pessoa tem a sua maneira de contar uma história e foi muito importante eu tentar fazer isso.

Então, enquanto escritor, teve mesmo de adotar um estilo de escrita diferente para cada personagem.

Sim, para cada capítulo. Não sei se o leitor nota, mas cada capítulo tem um estilo de escrita diferente. Ligeiramente diferente numas vezes e muito diferente noutras.

Uma abordagem recorrente nas suas obras é a de pegar no assunto do trauma humano e como, em vez de canalizar essas emoções para causar mais trauma, noutras pessoas, se deve usá-las para causar o bem comum e para ajudar outros…

Eu acho que isso é um dos grandes desafios da vida. É não ficar “azedo”, não querer vingar-se do mundo estragando a vida dos outros. Todos nós conhecemos pessoas que sofreram e que usam esse sofrimento para destruir outras vidas. “Ah, eu tive uma vida horrível e vou estragar a tua vida!” Isso é muito comum. Um dos grandes desafios da vida é recusar fazer isso. Não é sempre fácil, porque todos nós temos momentos difíceis. Temos que tentar ultrapassar isso e ajudar os outros. É muito importante.

Poderão os leitores encontrar neste livro uma espécie de refúgio e ajuda para lidarem com os próprios problemas?

Eu acho que sim. Curiosamente, a literatura tem essa dupla função. É quase um paradoxo. Por um lado, é um refúgio onde podemos fugir dos nossos problemas. Eu já passei por fases da minha vida em que eu não queria pensar. Eu queria ler um livro, queria entrar noutro universo em que a doença do meu irmão não existisse. Mas por outro lado, ao ler sobre os outros, acabamos por pensar nos nossos problemas. Mas, de qualquer das formas, isto cria uma enorme solidariedade. Quando eu leio um escritor inteligente e sensível, que diz uma coisa maravilhosa, eu penso “bom, eu pensei que era a única pessoa que pensava assim”. Ao ler, criamos uma solidariedade com o autor ou com a autora. “Esta pessoa é exatamente como eu”. E pode ser uma pessoa do século XVII ou XVIII – isso faz parte da magia da literatura.

Ao ler Dostoiévski – ele era russo e de há muito tempo – eu penso, “bom, este homem percebeu o que eu percebo, eu pensava que estava sozinho, mas não estou sozinho”.  E, por isso, a literatura pode ter uma função de empatia, de solidariedade e de conforto.

Neste livro todas as personagens têm um trauma. Como é que teve a ideia para as suas reações tão opostas no presente em relação a esse trauma?

Não é difícil, porque, ao criar uma personagem, eu começo a perceber o seu feitio. Começo a perceber como é que vai reagir a um determinado evento, a um trauma, a uma alegria, a um problema. Julie, por exemplo, é uma pessoa muito paciente. Ela evidencia muita paciência pelas traições do seu marido, que tem casos com as outras pessoas. Outra mulher não teria tanta paciência, mas Julie tem.

O silêncio pode destruir uma pessoa.

O autor, ao conhecer cada personagem, consegue contar a história da perspetiva dessa pessoa. E temos de ter o objetivo de ser fiel a essa pessoa. Julie não é Teresa, é outra pessoa, e eu tenho que entrar na pele de Julie e contar tudo na perspetiva dela ou não lhe estou a ser fiel.

Uma citação muito interessante de Benni no livro: “assim que me começa a cheirar a final feliz, procuro logo uma porta para fugir.” Sendo Benni uma personagem cuja vida já foi marcada por tantos momentos dolorosos, qual é a razão que leva esta personagem, na mesma, a preferir tragédias?

Não é necessariamente que ele prefira tragédias, é que ele não acredita nos fins felizes de Hollywood – porque ele sabe que a vida não é assim. Pode haver fins felizes, mas só depois de muita luta e muito tormento.

Porque considera que Benni e Shelly sentem culpa por serem sobreviventes?

Isso é uma grande questão psicológica. Nós sabemos que os sobreviventes sentem culpa, porque eles não conseguiram controlar o seu próprio destino. Imaginem um rapaz cujos pais foram mortos nos campos de concentração, mas ele sobreviveu. Porque é que ele sobreviveu? Existe sempre essa questão. “Porque que é que eu sobrevivi e os meus pais não?” Talvez seja ainda pior no caso de irmãos. “Porque é que eu sobrevivi e o meu irmão mais pequeno não? Porque é que eu não consegui proteger o meu irmão?” A culpa é terrível naquela gente, tal como em Benni no livro.

De que forma a incapacidade de Benjamin de falar do passado afeta a sua relação com o filho?

Isso é outra grande realidade dos sobreviventes. Eles raramente querem falar das suas experiências durante a Segunda Guerra, nos campos, nos guetos. Era de tal maneira doloroso ver os irmãos falecer, ou os pais, ou os avós, que é quase uma estratégia de sobrevivência não falar disso.

Mas isso cria um silêncio nas famílias, e não é só palavras ou ações – o silêncio pode destruir uma pessoa. Daí um dos problemas no meu livro entre Benni e o filho, porque o filho quer saber mais da vida do pai. As crianças são curiosas. Os filhos crescem a pensar “o que é que aconteceu ao pai durante…?” Eles não sabem nada dos avós, por exemplo. Crescem com estes tabus, este silêncio forçado, e ficam magoados, porque para eles é um sinal de “o pai não confia em mim”. E isso cria uma tensão entre os pais e os filhos que pode persistir durante toda a vida. Eu não posso julgar essas pessoas, porque não vivi o que eles viveram.

E o sorriso do pai, o filho de Benni sabe que o sorriso do pai diz muita coisa.

Curiosamente, eu vi uma entrevista com um sobrevivente do Holocausto e ele sorria ao contar as coisas mais tristes. Era uma espécie de sorriso, mas, obviamente, era uma máscara, um sorriso que tapava outras emoções que ele queria revelar. Daí um sorriso… eu queira dizer falso, mas é mais do que isso, é uma máscara, um mecanismo de defesa. E, obviamente, isso vai criar confusões num filho, porque o pai está a sorrir e obviamente ele está a sofrer, então “porque é que ele está a sorrir?”

Richard Zimler Foto: Sofia Matos Silva

Os conflitos de identidade também são muito comuns nos seus livros. De que forma se manifesta neste?

Eu acho que isso é uma consequência da minha própria pessoa, porque eu tive que conquistar a minha identidade, tal como toda a gente, penso eu. Mas no meu caso foi difícil. Faltava-me a confiança. Nasci gay numa sociedade em que isso não foi visto como uma opção positiva, sou judeu… não foi fácil descobrir o que eu queria fazer na vida. Talvez, por isso, eu tenha tendência a falar de crises de identidade, pessoas que perdem a identidade e têm de reconquistar outra identidade, pessoas que têm que evoluir para conseguir serem o que eles querem ser.

Tal como Shelly neste livro. Ele tem que mudar, se não vai perder a esposa, vai perder as filhas. Ele tem que encontrar uma nova maneira de ser, uma nova identidade que não admite casos fora do casamento. E isso, a gente pode brincar, mas, para uma pessoa como ele, isso é muito difícil.

Desde que começou a escrever, escolhe quase sempre abordar temas que são tabus, que a sociedade prefere ignorar ou esconder. Porque é que escolhe fazê-lo?

Eu tenho uma personalidade muito subversiva. Quando as outras pessoas preferem branquear ou esquecer um assunto, um tema, um tabu, um crime, eu fico entusiasmado. Eu quero falar daquilo. Dá-me um prazer enorme, não sei porquê.

No caso de “O Último Cabalista de Lisboa” foram duas mil pessoas mortas e queimadas no Rossio, que foram esquecidas durante cinco séculos. Eu não achei isto justo. Então, não me dá só prazer, mas dá-me a sensação de conseguir alguma justiça. Obviamente, essas pessoas morreram há cinco séculos, não posso encontrar justiça para eles, mas, pelo menos, posso forçar as pessoas a lembrarem-se desse crime, obrigar as pessoas a reconhecerem que perdemos muito ao destruir a cultura judaica em Portugal.

Fico orgulhoso, porque penso que estou a contribuir para criar uma sociedade melhor, mais compreensiva, mais tolerante, de mais empatia e isso dá-me prazer.

Tive que conquistar a minha identidade. Foi difícil. Faltava-me a confiança.

Relativamente a duas expressões usadas por si. “Os fios invisíveis que tudo ligam”; porque é que usa essa frase?

É uma sensação que todos nós temos, penso eu. Quando vivemos uma coincidência quase impossível, por exemplo. Estamos em Tóquio, entramos num café e lá está o nosso vizinho de uma aldeia em Portugal. Como é possível? Se eu tivesse entrado noutro café não teria visto esta pessoa, mas entrei aqui. Porquê? Como? Eu não tenho uma resposta. Mas nesses momentos, tenho a sensação, verdade ou não, mas tenho a sensação de que têm de haver fios quase invisíveis que ligam as pessoas, que ligam o passado ao futuro… pelo menos é a teoria do Benni no livro e ele diz que duas vezes os viu; teve um glimpse, tinha entrevisto esses fios. Agora, ele não sabe se é verdade ou não, mas é a sensação com que ele vive.

A outra expressão que utiliza é “um judeu tem de viver sempre com uma mala pronta”.

Eu acho que isso é uma sensação que quase todos os judeus da minha geração e gerações anteriores têm. Houve muitos momentos em que tínhamos de fugir e fugíamos sem nada… então, é melhor ter uma mala já feita com a nossa roupa mais importante, jóias, documentos importantes. De um dia para o outro, tudo pode mudar. Não estamos a ser perseguidos neste momento, mas daqui a seis meses não sabemos.

Eu acho que o Brasil é a prova disso neste momento. Para a gente da esquerda no Brasil, para homossexuais, para negros e para muitos outros, é melhor ter uma mala já feita, porque não se sabe o que vai acontecer no Brasil neste momento.

Em entrevista à RTP, referiu que trazer todas estas memórias para o contexto em que estamos, em 2018, era pertinente devido a todas as tendências fascistas que se têm verificado – na Europa e também noutros pontos do mundo. Acha que os leitores devem encarar “Os Dez Espelhos de Benjamim Zarco”, não apenas, mas também, como um lembrete?

Sim. Eu acho que nós sem memória não somos nada. Temos a obrigação de sabermos a nossa história – e de sabermos a história mundial também.

Eu acho que o Holocausto, obviamente, pertence aos judeus porque foram eles os mais afetados. Mas pertence aos ciganos, pertence aos comunistas, pertence aos homossexuais, pertence a toda a gente. Quer dizer, faz parte da história do planeta.

O Holocausto é importante, tal como a colonização feita pelos portugueses é importante. A ignorância não tem nenhuma vantagem, a ignorância não dá opções às pessoas… O Alexandre [Quintanilha, marido de Richard Zimler] diz que “o conhecimento é caro, mas a ignorância custa muito mais”.

Pretende continuar a fazer da sua escrita uma arma contra a ignorância, uma arma para promover a educação, uma arma para expor as pessoas a temas sobre os quais elas não querem falar?

Não é propriamente uma decisão política minha. “Eu vou fazer isto porque é correto fazer.” Não. Eu faço isto porque é o meu feitio, não posso fugir da minha maneira de ser. Dá-me prazer contar uma história que os outros escritores não querem contar.

Também pretende continuar a explorar a história dos Zarco?

Quero muito. Adoro os Zarco. Dá-me um prazer enorme construir um projeto abrangente. Este livro não é só um livro, é uma porta. Quem entra nesta porta vai encontrar um universo paralelo com, neste momento, quatro outras portas. Pode entrar por este livro, por esta porta, ou pela porta de “O Último Cabalista de Lisboa”, ou pela porta do “Goa e o Guardião da Aurora”, “Meia-Noite ou o Princípio do Mundo” ou pela “Sétima Porta”. E vai encontrar este mundo diferente.

Artigo editado por Filipa Silva