Há fumo preto e denso a sair das traseiras do parlamento norte-americano. Um jornalista está nas imediações, capta a imagem com o telemóvel e envia-a para a redação.
O que fazer com ela? Publica-se?
Um segundo jornalista está na área, noutra localização, e manda outra fotografia sobre o mesmo caso, acompanhada do relato de barulho de sirenes. Alguma coisa se passa.
E agora, publica-se? Mas dizendo o quê?
A concorrência antecipou-se e já publicou fotos semelhantes.
Então, se já saiu, publica-se? Ok, publica-se!
Entretanto, a redação pesquisa na internet à procura de pistas que ajudem a compreender o que se passa. Et voilá: não há fumo sem fogo, mas como mostram imagens captadas de um outro ponto da envolvente, o fogo estava, afinal, muito longe do Capitólio.
“Bem-vindos ao mundo do jornalismo online”, introduziu Walter Dean, jornalista e professor universitário norte-americano, que esteve quinta-feira na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP) a mostrar ao público presente, maioritariamente formado por estudantes de Ciências da Comunicação, como é que “a tirania” dos números, servida por métricas potencialmente enganadoras, está a mudar o jornalismo.
À audiência, Dean mostrou, entre exemplos práticos, estudos que põem à prova o que no jornalismo se presume sobre o público; e explorou três vetores essenciais no exercício jornalísitico: “purpose”, “methods”, “metrics”. Dito de outro modo: o que queremos fazer, como e quais as métricas adequadas para avaliar o que está a ser feito e o seu impacto.
A fechar sublinhou a relevância do que apelidou de “disciplina da verificação” dos factos, apoiada em três princípios: transparência, humildade e originalidade.
O professor universitário [também dá aulas na Nova de Lisboa] e diretor pedagógico do Committee of Concerned Journalists, uma organização sem fins lucrativos fundada há quase 20 anos em Harvard com o propósito de estudar o que está a acontecer às notícias num mundo em acelerada mudança, dissertou sobre estes e outros assuntos numa entrevista ao JPN concedida à margem do Congresso Internacional de Ciberjornalismo, que decorreu nos dias 22 e 23 de novembro, na FLUP.
Faz parte de um consórcio de jornalistas chamado Committee of Concerned Journalists. O que é que o preocupa mais no jornalismo atual?
Três coisas. De algum modo a parte emocional, porque as redações não são mais o lugar seguro que eram. E com isso quero dizer que a rede de segurança desapareceu. Há muito menos edição. As pessoas estão a publicar na hora e em vez de terem um editor ou um colega a reverem o seu trabalho, providenciando um segundo par de olhos, agora publica-se diretamente para o público. Isso é perigoso. No passado podia cometer um erro, aprender com ele e não voltar a fazê-lo. Agora, pode cometer um erro e acabar com a sua carreira. [Há também] O problema com os salários e questões ligadas ao modelo de negócio das empresas de comunicação social, que foi rompido; a questão de as pessoas poderem alguma vez sustentar-se, ter uma carreira, é realmente difícil. A terceira coisa que me preocupa… A internet é uma confusão. E parece estar a tornar-se cada vez mais confusa, porque perdemos o controlo sobre a distribuição do nosso trabalho.
Disse-o na conferência. O jornalismo perdeu o controlo do processo no seu todo…
Sim, continuamos a ter a primeira parte dele, mas o trabalho está a ser avaliado com instrumentos que eles [empresas tecnológicas] podem controlar ou em aplicações que nós não controlamos. Isso significa que eles podem manipular o nosso produto através dos números. E têm objetivos diferentes dos nossos. Isso é um problema.
Falou da internet ser uma confusão. Dá a sensação de que estamos cercados por barulho, mas a maneira como estamos a lidar com esse barulho é fazendo ainda mais barulho. Pode o negócio da atenção “matar a estrela de media”?
Sim, absolutamente. Há um estudo feito há alguns anos nos EUA no qual foram observadadas 400 pessoas durante 18 horas por dia durante um mês para tentarem perceber como é que as pessoas usam equipamentos eletrónicos. O que descobriram é que durante um terço do tempo – eles usavam os equipamentos por nove horas ou mais – e durante um terço do tempo, eles tinham mais do que um dispositivo ligado. Assim, nós estamos a receber inputs de todos estes equipamentos e estamos a consumir publicidade, propaganda, spin, quer dizer, nós vivemos num tempo em que somos bombardeados por publicidade. Não nos podemos sentar a uma mesa sem ter marcas associadas!
Devíamos abrandar.
Eu desejava que sim, que fosse possível. Por isso, como é que devemos reagir a isso? Demasiadas vezes parece-me que reagimos tentando gritar mais alto, ou um bocadinho mais direto com os nossos “alertas”. As pessoas ainda querem confiar nas notícias de uma maneira diferente da que creem em publicidade, mas arriscamos destruir isso quando tentamos gritar por cima dos outros.
Uma das coisas que também referiu na conferência é que não é assim que se constrói um público. Porquê?
Não, não é assim que se constrói um público. Um público constrói-se fazendo bom trabalho sobre coisas importantes. Quer dizer, a TV passou de querer construir uma audiência para ter como objetivo não perder audiência. Perde-se menos audiência quando se fazem bons trabalhos. Acho que com o tempo vamos perceber, acho que estamos em certa medida a descobrir já com a internet, que as pessoas tendem a ir a locais com qualidade.
Sobre a falta de confiança do público nos media e o desafio que ela impõe: qual é a responsabilidade dos media nessa perda e o que é que pode ser feito para a restituir?
Acho que temos de ser claros em relação aos nossos desígnios. Entre numa redação hoje e pergunte a um jornalista ou a um responsável pela empresa “qual é o seu desígnio?” e ele vai ter problemas a articular uma resposta. Nós não sabemos o quê. Eu não fiz uma investigação, mas é importante perceber algumas coisas sobre a história. Nos EUA, e penso que noutros locais também, as coisas que eram boas para o negócio, eram coisas que também eram boas para a democracia e para o jornalismo. Exemplo: a razão pela qual os proprietários dos media adotaram a ideia da neutralidade e da objetividade foi porque essa foi a forma que encontraram de ter uma audiência mais vasta. O que era bom para o jornalismo, também era bom para o negócio. E isso funcionou por 200 anos. Depois veio a internet e fragmentou o grande público. É o “efeito Google”: as pessoas pesquisam pelo que lhes interessa ou pelo que precisam de saber e vão diretas à história, o que signifca que hoje temos pessoas que fazem o que chamamos de jornalismo de afirmação: elas vão a uma história ou a um site de notícias que afirma o que eles já acreditam. Quando antes um editor podia pôr, por exemplo, na página de entrada de um website ou na primeira página de um jornal podia pôr uma história sobre a qual você não sabia nada, mas o editor pensou que deveria saber [durante a conferência, Walter Dean mencionou que 75% dos leitores dos grandes jornais norte-americanos vão diretamente para um artigo, sem passarem pela página de abertura].
Estamos a alimentar a ideia préconcebida, o confirmation bias?
Sim, e o que é melhor para esse modelo de negócio baseado no confirmation bias não é a objetividade. É a opinião, às vezes menos verificação. E não sei como é que contornamos isso. Além do que referi: diga claramente e demonstre quais são os seus desígnios. E depois há outra coisa: pessoas que se querem chamar organizaçãoes noticiosas, porque se querem colocar debaixo desse guarda-chuva, querem ver emprestada a credibilidade das organizações noticiosas. Não acho que se devessem chamar assim. Deviam chamar-se a si próprias uma organização política, comercial ou desportiva, mas não noticiosa, porque não são noticiosos. O ativismo não é imprensa, é outra coisa. Uma organização online dedicada a uma causa ou desígnio específicos, provavelmente, não vai ser objetiva.
Cada jornalista tem não só o direito, mas o dever de levantar o dedo e dizer: “tenho um problema com esta história”
Parece também advogar uma espécie de auto-determinação do jornalista nas redações. Qual é o papel do jornalista, individualmente, no processo de melhoramento das notícias.
Nós estudamos três dos grandes [casos de] erros cometidos no jornalismo nos EUA. O que descobrimos foi que, em cada um desses casos, pessoas com poder na redação confiaram em certos repórteres que adoravam para fazer um trabalho importante e que esses repóteres fizeram batota. O que descobrimos é que alguns jornalistas nessa redação acharam que algo estava errado, mas tiveram receio de levantar o dedo. Essa é uma questão. É preciso independência de pensamento nas redações. Cada jornalista tem não só o direito, mas o dever de levantar o dedo e dizer: “tenho um problema com esta história” ou “precisamos de verificar mais isto”. E isso está a acontecer cada vez menos. E isto é os jornalistas a salvarem-se a si próprios e aos chefes, porque esses, em todos estes casos, acabaram despedidos. É uma parte. A responsabilidade do jornalista pela qualidade global do produto dizendo: “nós temos de fazer melhor aqui”. E nas redações, se as lideranças forem inteligentes vão aceitar isso porque, de novo, salva o chefe de si próprio.
É por isso que acho que os jornalistas precisam hoje de desenvolver quase a sua própria noção de ética, porque a rede de segurança foi-se e as redações não parecem estar a pensar em ética e métodos. Eles estão demasiado ocupados a aumentar o volume.
E a terceira coisa é: não contei esta história hoje, mas há cerca de um ano uma aluna de mestrado – não minha, mas ouvi a história – fez um estágio num respeitado meio de informação online. Voltou três meses depois e entregou o relatório de estágio e reportava que tinha feito 200 peças em três meses. Entre 10 a 12 por dia, cinco dias por semana. Vocês sabem o que ela estava a fazer. Ela não estava a fazer jornalismo, estava só a repassar coisas feitas por outros. Primeiro: isso é jornalismo? E número dois: não sei se ela colocou lá uma assinatura, muita gente faz isso, e não é por falsidade, porque dizem onde foram buscar a informação, mas não acrescentaram qualquer valor à história. Agrega, mas não acrescenta. E isso é uma daquelas coisas que as pessoas têm de pensar se querem fazer. A minha experiência diz-me que as pessoas fazem isso um ano ou dois e saem. E isso é triste.
Na conferência fez uma citação: “os media digitais envelheceram mal”. Por que é que acha que isto aconteceu?
Porque era demasiado democrático [risos]. Não havia regras, ou editores, e qualquer pessoa podia contribuir com qualquer coisa. Sem regras nem editores nem métodos nem ética. Envelheceu mal porque ficou fora de controle.
As pessoas sentiram-se empoderadas. De repente, posso dizer coisas e acho que esse empoderamento causou, porque não tinha muitas regras… em parte é a questão de não terem identidade. As pessoas podem dizer o que quiserem ser ser identificadas e, logo, responsabilizadas.
Mas acha que estamos a fazer um caminho para um mundo com regras?
Sim. Acho que os europeus vão, provavelmente, liderar esse processo. Estamos a vê-lo já, especialmente na Europa onde, face à Google e ao Facebook, os legisladores europeus disseram: “esperem lá!”. Até o Tim Cook, há uma ou duas semanas nos EUA, disse: “parece-me que vai haver regras”. Acho que as regras vão chegar e têm de existir.
Pense na Wikipédia no início. Eles disseram: não vamos editar nada. Vamos deixar que a população edite as entradas da Wikipédia. E depois publicam uma coisa sobre um homem chamado John Seigenthaler, não sei se conhecem o caso. Trata-se de um antigo diretor editorial e um dos fundadores do jornal “USA Today”. E ele foi procurador-geral adjunto de Robert Kennedy [um dos irmãos mais novos de John F. Kennedy, foi procurador-geral dos Estados Unidos e foi assassinado em 1968].
Alguém publicou alguma coisa na Wikipédia, na história de Seigenthaler, que dizia que ele tinha sido investigado e implicado no âmbito de uma conspiração para assassinar o Kennedy. O que era completamente falso. Fabricado. E Seigenthaler exigiu [que o conteúdo fosse editado] – ele estava furioso, porque foi amigo do Kennedy – e mais tarde conseguiu chegar ao autor e era um miúdo de Nashville, acho, que tinha feito isto. E ele perguntou-lhe: “porque é que fizeste isso?” E o miúdo respondeu: “só quis ver se conseguia fazê-lo”. E podia. Depois disso a Wikipédia lá entendeu que se calhar tinha de fazer alguma edição e verificação.
Uma das coisas de que também falou foi de métricas. Sugeriu, por exemplo, que cada redação devia encontrar as suas próprias métricas. Não basta saber se a história foi popular, devíamos saber porquê. Como é que podemos fazer isso?
Vejam os métodos da American Press Institute e veja como fizeram. Eu acho que é, de verdade, muito simples. Façam experiências. Digamos que numa semana lançam dez histórias. Ou 20. E dez delas têm uma perspetiva, um só lado. E depois temos dez histórias com mais de uma perspetiva. Vejam como resulta. E isto não é uma coisa para tirar conclusões numa semana ou duas, mas ao longo do tempo sim.
O restaurante dá um bom exemplo. Adoraria ver alguém fazer um conjunto de posts só com comida. E outro post com diferentes géneros de fotografias do restaurante e ver se há diferenças. Talvez não haja, mas podemos experimentar e se virmos que, de repente, este outro género era muito popular isso sugere que é preciso melhorar a prática. Não que se tornem regras, mas quando formos a uma entrevista num restaurante, vamos tentar fotografar o exterior, para que as pessoas o possam ver; ou uma fotografia da sala de jantar para que as pessoas possam ver como é.
Isso dá ferramentas aos jornalistas e não é ciência espacial! Depois podemos comparar isto com todas as métricas habituais e assim conseguir ir mais fundo, e conseguir melhores práticas.
E aos professores pode permitir identificar e ensinar melhores práticas aos alunos. E outra coisa que faz é: a análise de conteúdo permite-nos fazer melhores julgamentos sobre sites noticiosos. Isto é liberal, conservador… Não interessa o que eles dizem que são ou o que achamos que eles são. O que importa é o que o conteúdo diz deles.
A razão por que [a análise de conteúdo] é importante é porque torna a audiência mais sofisticada. Isto é literacia mediática. E também mostra ao jornalista o que é que a sua própria organização está a fazer.
Outro dos exercícios que gostamos de fazer com as organizações locais de media é, se tiverem um estagiário, nós dizemos-lhe: “arranja um mapa da área que estás a cobrir; cada história que fizeres, põe um pin no local de origem da história”. Bom, eles descobrem que as suas histórias têm origem em torno de edifícios governamentais. E depois veem que há parte das comunidade onde não há pins. E aí dizemos: “é melhor olharmos para isto”. O que é que podemos descobrir se formos a estes locais?
A questão I wonder que mencionou na apresentação…
Sim. De novo, isso não é cirurgia cerebral. São ótimos projetos para estagiários e estudantes: fazerem análise de conteúdo durante umas semanas. E pode ser uma forma de ajudar as organizações noticiosas, porque não tenho a certeza que tenham a noção no que é que o seu conteúdo se tornou ao longo do tempo.
Artigo editado por Filipa Silva