Foi no Porto que Gisberta morreu em 2006. Foi lá que ela “renasceu” na última terça-feira, na peça de Luís Lobianco, criador e protagonista do monólogo “Gisberta”, levada a cena no Teatro Sá da Bandeira.

Com um traje branco, que não haveria de mudar, e acompanhado de uma banda formada por três elementos – Lúcio Zandonadi (piano e voz), Danielly Sousa (flauta e voz) e Rafael Bezerra (clarinete e voz) -, Lobianco recriou os passos de Gisberta, da infância até ao assombroso momento da sua morte.

Gisberta Salce Junior é o fio condutor de um espetáculo que conta muito mais do que a história da transexual. O guião aborda os dilemas com que a comunidade LGBTQI+ se depara, desde o nascimento.

O início é marcado pelas experiências de uma criança que se descobre fora das “normas”. Esta criança simboliza todos os indivíduos, que desde os primeiros anos de vida se encaixam num perfil diferente daquele que a sociedade estipula como o “normal” ou “aceitável”.

Luis Lobianco, que sempre se apresentou como artista LGBT, compartilha com o público as próprias experiências enquanto uma “criança viada”, termo utilizado no Brasil como afirmação da identidade que não segue os preceitos de normatividade social. Pergunta à plateia: “Quem aqui foi uma criança viada?” e logo algumas mãos se levantam no ar.

Através de um texto que contempla os ícones do universo LGBTQI+, o artista dá vida às histórias através dos engenhosos acordes, das músicas que marcaram a carreira de Gisberta como transformista e que conduzem a narrativa de forma dinâmica.

A primeira música cantada por Lobianco foi “Coração do Agreste” de Fáfá de Belém, seguidas por “Swing da Cor” de Daniela Mercury, “Sonhos de um Palhaço” de Vanusa e “Ó Gente da Minha Terra” de Amália Rodrigues, todas aplaudidas por um público em êxtase.

O espectador viaja nas palavras de Lobianco. Olhos atentos, mãos apertadas e o silêncio, que por si só desvela a história de Gis, como também era conhecida a transexual que morreu num poço depois de dias de agressões às mãos de um grupo de rapazes.

O público, formado maioritariamente por pessoas de meia idade, não se mexe. A história envolve, o humor suaviza e relembra docilmente a “menina simpática, linda e super loira” que Gisberta era.

A figura evocada de Gisberta vai ganhando forma. O artista interpreta várias personagens: são pessoas que conviveram com a transexual e que concederam os seus depoimentos para a construção da peça. Engenhosamente, através da mudança de sotaques e trejeitos, torna-se claro para o espectador as diferentes pessoas (amigos e familiares) que fizeram parte da vida de Gis no Brasil e em Portugal.

O ritmo cronológico da peça cumpre o seu percurso. Tem início nas experiências da infância, a descoberta da sexualidade na adolescência, segue para a vida de Gisberta na Europa como transformista de sucesso e culmina nos seus últimos anos, já vivendo pelas ruas do Porto.

Foram muitos os que se deslocaram ao Sá da Bandeira para saber mais sobre a história de "Gisberta"

Foram muitos os que se deslocaram ao Sá da Bandeira para saber mais sobre a história de “Gisberta” Foto: Darcielle Costa

Sem trocas de figurino, mudanças de cenário e sem um ator vestido de mulher, o espectador é levado a imaginar e acaba por vislumbrar a figura de Gisberta, que vai sendo construída justamente pela sua ausência.

Uma história que marca

“Arrepiou-me”, afirmou Fernando, um dos espectadores, no fim de 1h40 de peça. “Este espetáculo traz à tona uma problemática que ainda vivemos em Portugal. Temos que quebrar estes tabus”, disse ainda ao JPN.

A morte de Gisberta marca a parte final da peça, com uma vívida descrição das violências que contribuíram para a sua morte. Os acordes agudos acompanham a narrativa dos últimos momentos de vida da transexual e tornam ainda mais intensa a história, ocorrida em fevereiro de 2006, num prédio abandonado próximo do Campo 24 de Agosto, no Porto.

É um momento em que a plateia se cala e os olhos marejados vislumbram o desfecho que Gisberta teria. A última música, cantada por Lobianco foi “Diamonds are the girls best friend” eternizada por Marilyn Monroe no filme “Os homens preferem as loiras” de 1953, uma das músicas que Gisberta interpretou nas inúmeras apresentações que fez durante a sua carreira.

“Que vontade de abraçar os transexuais e apoiá-los nesta luta”, afirmou Chedide, uma brasileira que já conhecia um pouco da história de Gisberta e que com a peça sentiu como o sucesso “fica próximo das drogas, da prostituição, do desamparo”. “Foi sensacional. Superou as minhas expectativas. Depois de assistir a essa peça, uma pessoa fica até com vontade de se envolver num projeto social”, concluiu.

“Este espetáculo é para que a gente faça com que a história de Gisberta seja conhecida, para que a gente crie empatia com as pessoas, para que assim como aconteceu aqui, ela se torne um ícone dessa luta. Não existe país seguro para LGBT’s, muito menos para pessoas trans, mas Portugal tem muito a inspirar o Brasil nesta questão”, afirmou no final para o público Luís Lobianco antes de chamar ao palco Pedro Abrunhosa para cantar a música “Balada de Gisberta”.

O tema, que Lobianco ouviu primeiro Maria Bethânia cantar, foi o mote para a idealização da peça e foi através dela que o ator conheceu a história de Gisberta.

Os calorosos aplausos encerraram a peça e logo o público se dispersou em busca da saída, “ainda em choque”, como declarou Fábia, uma portuense que já tinha ouvido falar de Gis, mas que foi ao Sá da Bandeira porque queria saber mais sobre a história da transexual.

Depois de duas sessões no Porto, a 27 e 28 de novembro, o monólogo “Gisberta”, de Luís Lobianco, conhecido ator do coletivo da série humurística brasileira “Porta dos Fundos”, segue viagem para Lisboa onde terá também duas apresentações, a 5 e 6 de dezembro, no Tetro Tivoli.

Artigo editado por Filipa Silva