Fundada em 2008, a República Kosovar é o estado independente mais jovem do continente europeu. Com uma área que corresponde a metade do Norte de Portugal, o Kosovo conta com quase dois milhões de habitantes. Apesar do governo e demais instituições consolidados, o país ainda não é reconhecido por quase metade dos membros que integram a Organização das Nações Unidas (ONU) – mais concretamente, 84 Estados. A Sérvia encabeça a lista ao não validar a declaração de independência do Kosovo e a consequente desanexação da região sul do país.

Contudo, a capital, Pristina, é a morada de um evento mais antigo do que o próprio país. O Dokufest é um festival de cinema kosovar que se realiza desde 2002 e projeta curtas e longas-metragens de todo o mundo. Na mais recente edição, em agosto, a principal cidade do Kosovo recebeu dez filmes portugueses, ou que pelo menos contaram com uma “mãozinha” lusitana na co-produção.

Em troca, o Porto/Post/Doc anunciou uma secção especial na edição deste ano, que decorre até domingo no Porto: “We’ve only just begun: Kosovo stories” (“Ainda agora começámos: histórias do Kosovo”, em português). Este programa do festival portuense inclui também dez produções do país dos Balcãs (ou, no mínimo, co-produções com o Kosovo), entre elas uma curta vencedora de um BAFTA: “Home“, de Daniel Mulloy, britânico de ascendência kosovar.

Veton Nurkollari espera que “a presença de filmes kosovares em Portugal aumente o interesse do público português”. O diretor artístico do Dukofest sabe que a “qualidade não é tão boa”, quando comparados com produções portuguesas ou estrangeiras, mas pretende que oportunidades como esta possam “abrir portas” para que o cinema do Kosovo, “que ainda é bastante novo”, seja apresentado noutros locais, disse em entrevista ao JPN.

Já em casa, o objetivo é outro. Em Pristina, o Dokufest é “uma janela para o mundo”, afirma Veton. O diretor confirma que no evento kosovar os filmes do país são “apenas uma pequena parte do festival” e que a principal tarefa é “trazer cinema de fora”. “A liberdade de circulação no nosso país é significativamente restrita. Para estes problemas, este tipo de festivais acaba por ser importante”, sublinha.

A acompanhar Veton Nurkollari está Ilir Hasanaj. O jovem cineasta visita o Porto e Portugal pela primeira vez para apresentar o filme “To Want, To Need, To Love“. O realizador fala de uma história “acerca de um casal que nasceu no Kosovo, cresceu no Kosovo e faz arte no Kosovo”. A peripécia, baseada num “amor disfuncional” que se transforma “numa obra de arte”, liga-se à história pessoal de Ilir: o irmão do artista nasceu na Suíça, cresceu na Suíça, mas é kosovar. “[As histórias] juntam-se”, conclui o realizador.

Ilir acredita que o cinema é uma das formas do povo kosovar finalmente se expressar. Foto: Diogo A. Lopes

O cineasta kosovar reforça a ideia de que o realizador deixa uma parte de si nas suas produções. “Depois de realizar um filme, eu sinto-me sempre vazio, porque tu [te] entregas imenso”, revelou Ilir Hasanaj ao JPN. A convergência da história do irmão e da narrativa contada no filme foi “capturar um momento de juventude”.

Projetar a identidade na tela

Antes de falar do filme que criou, Ilir não esconde a admiração pelo cinema francês. O realizador admite que a “onda francesa” é uma inspiração, porque, “de certa maneira, [o filme] flui, vem até ti de vários ângulos diferentes”. Com preferência pelos trabalhos de Jean-Luc Godard, em especial pelo título “Pierrot le Fou“, Ilir Hasanaj explica que este tipo de filmes acaba por ser “bastante crítico”.

Do mesmo modo que “Pierrot le Fou” aborda a Guerra do Vietname, o cinema do Kosovo também bebe dos conflitos pelos quais o país passou. O cineasta considera que essa conjuntura acaba por tornar a arte especial e “bastante inspiradora”. “Procura encontrar novas maneiras de se expressar. É bastante brilhante, arde como fogo”, realça o realizador. Contudo, Ilir preferiu rumar numa direção diferente e mostrar “a geração depois da guerra”.

Em contexto de Guerra Fria, os Estados Unidos e a União Soviética revelaram uma grande aposta na mensagem audiovisual. Para o realizador kosovar, apesar de se tratar de propaganda, os filmes da época eram preponderantes no reflexo da sociedade, tal como acontece com o cinema do país atualmente. “Captura a imagem das pessoas lá: como falam, como discutem, como vivem”, explicou o cineasta.

No entanto, o mais recente trabalho de Ilir Hasanaj procura fugir não só à temática do conflito, como também à ideia do Kosovo como um país “bastante perigoso”. O foco passa por mostrar “o outro lado da moeda” e apontar a objetiva para a juventude kosovar, de maneira a dar uma perspetiva acerca do que “a juventude enfrenta, o que eles pensam acerca da lei e como eles reagem a estas questões”.

A sétima arte no Kosovo ganha contornos distintos quando permite “dizer algo acerca de uma geração que foi oprimida durante mais de 500 anos”. Após cinco séculos, é a primeira vez que “podem ter alguma liberdade para dizer algo”, constata Ilir.

Já Veton Nurkollari coloca o cinema kosovar num plano de consolidação da identidade do país. Para o diretor artístico do Dokufest, apesar de se tratar de uma “nação antiga” e com uma “longa história de povoações na região”, o país ainda é recente e está à procura da sua essência. Através da arte, e em específico do cinema, o pequeno Estado dos Balcãs poderá ir em busca de numa “nova identidade”.

Apesar da principal tendência do cinema kosovar estar no “grande trauma” da guerra, Nurkollari destaca os novos géneros em que os realizadores do país estão a investir. Pela primeira vez, foi produzido um filme acerca da comunidade LGBT, para surpresa de Veton. O produtor considera ser “bastante raro”, numa sociedade tradicional, haver um filme de uma história de amor homossexual com grande sucesso. “Estou bastante feliz e orgulhoso por um jovem realizador ter feito um filme, no Kosovo, acerca desta questão”, acrescentou.

Mais filmes do que ecrãs

Neste momento, o financiamento da indústria cinematográfica kosovar ronda o milhão de euros. “Com um milhão não consegues sequer fazer um filme”, lamenta Ilir Hasanaj. O realizador soma ao baixo financiamento, a elevada fasquia estabelecida pelo centro de cinematografia do país para a candidatura a este tipo de fundos: “na realidade é quase impossível fazer um filme exclusivamente no Kosovo”, disse. Logo, o cineasta indica que a solução passa pelo financiamento externo, ou seja, as co-produções com produtores estrangeiros.

Ainda assim, o fundo tem aumentado em relação aos anos anteriores. Segundo Veton Nurkollari, o financiamento “não é o ideal”, mas o investimento no setor do cinema está “a resultar bastante bem”. Para ilustrar esse mesmo sucesso, o diretor artístico do Dokufest falou de vários exemplos. “Martesa” (“O Casamento”), longa-metragem neste momento em exibição em Los Angeles, apresentou uma candidatura formal ao Oscar de Melhor Filme de Língua Estrangeira de 2018. Já a produção “Home”, de Daniel Mulloy, descendente de kosovares, conquistou um BAFTA para Melhor Curta-Metragem de 2017.

“Para um país pequeno, que mal tem uma escola de cinema, com uma indústria de cinema e financiamento de filmes muito recentes, devo dizer que está a sair-se bem”, acrescenta Veton, com entusiasmo. O diretor não deixou de frisar, também, a relevância das co-produções, abordando as atuais negociações entre os cinemas do Kosovo e outros países, especialmente a Turquia, para futuras colaborações.

Apesar do otimismo, Veton Nurkollari não consegue esconder a preocupação com a atual disposição das salas de cinema no país: existem poucos locais para exibição das produções. Com a guerra, muitos dos espaços específicos para a projeção de filmes foram destruídos e nos dez anos seguintes, o Kosovo dispunha apenas de um espaço. “Uma sala de cinema, uma tela”, realçou Veton.

Veton Nurkollari acredita que o cinema kosovar está bem encaminhado, apesar dos vários problemas. Foto: Diogo A. Lopes

Nos últimos tempos, o país assistiu à inauguração de novos lares para o jovem cinema kosovar. Na capital abriu recentemente um multiplex – complexo de cinemas -, embora Veton não seja grande fã. “Mas é melhor ter um do que não ter nenhum cinema”, contrapôs o diretor do Dokufest. Espera-se ainda a criação de mais dez salas de cinema na cidade nos próximos tempos. Enquanto promotor do setor no país, o festival Dokufest também apoiou a abertura de uma sala de cinema.

Deste modo, Veton Nurkollari sintetiza a situação atual da indústria cinematográfica. Para o produtor, o cinema kosovar está em águas de bacalhau: “queremos fazer filmes, fazemos alguns filmes, têm, até certa medida, sucesso”, mas faltam sítios para os projetar. Contudo, o diretor não perde o otimismo e acredita que o problema “seja resolvido muito em breve”.

Até sexta-feira, o Pequeno Auditório do Rivoli vai exibir ainda mais quatro curtas kosovares, com destaque para “Home”. A história contrasta o conforto das famílias britânicas com a vida atribulada de vários homens, mulheres e crianças migrantes.

Artigo editado por Filipa Silva