Desde 2008, que grande parte dos casos de disforia de género do Norte de Portugal passam pelo gabinete de Zélia Figueiredo. Já avaliou mais de 300 casos em dez anos.

De acordo com a sexóloga e psiquiatra, os números aumentaram significativamente após a entrada em vigor da Lei nº 38/2018, publicada em agosto, e que prevê o direito à autodeterminação da identidade e expressão de género.

Mudar o nome e o sexo no registo civil passou a ser possível para maiores de 16 anos (ou mesmo menores, no caso das crianças intersexo).

O diagnóstico, até então obrigatório para iniciar o processo, foi substituído por um relatório, assinado por um médico ou psicólogo registado na respetiva ordem profissional, que ateste que a pessoa tem capacidade de decisão.

Meses depois da aprovação, a lei ainda gera alguma controvérsia junto dos profissionais de saúde e da especialidade. Uns defendem a necessidade de um relatório médico, outros dizem que não se justifica a existência de um relatório que prove que as pessoas são quem dizem ser. Zélia Figueiredo encaixa no segundo grupo.

Uma resposta liminar

A psiquiatra ainda se recorda do primeiro caso que acompanhou no Magalhães Lemos: “Percebi que era preciso ter alguma formação nesta área, ou seja, que eu ainda não sabia o suficiente, nessa altura, para conversar com uma pessoa trans”, conta em entrevista ao JPN.

Bastou uma resposta para alterar toda uma perspetiva sobre o tema.

Para a especialista, foi “muito importante passar por essa dificuldade de aprendizagem”. E foi importante também perceber que os colegas, “às vezes, podem falhar na maneira como tratam as pessoas: masculino em vez do feminino, usando pronomes que não devem”.

Zélia considera que a família é essencial nestes processos e que “as situações mais complicadas são aquelas em que não há uma retaguarda familiar”. “As pessoas aparecem cada vez mais novas para fazer a transição e, se não tiverem retaguarda familiar, é muito complicado, porque a pessoa vem sozinha”, observa.

Ao cabo de dez anos passados sobre o primeiro caso, a sexóloga crê que há uma maior abertura social sobre o tema e que isso se nota “nos media em geral, na ida às escolas, no cinema, em todas as áreas”. Tudo isso tem contribuído “para que as pessoas se sintam mais à vontade”, conclui.

A importância do ativismo trans

Zélia Figueiredo considera que era “muito importante” que houvessem associações de e para pessoas “trans”.

“Aos ativistas preocupam-nos as coisas relativamente à liberdade, à expressão, à lei”, mas aos transexuais, para além de tudo isso, “preocupa-lhes aspetos mais práticos ligados à saúde e, por isso, elas são diferentes de outras minorias que não têm este factor”, explica.

A psiquiatra sublinha, assim, que seria positiva a criação de “uma associação de pessoas trans, que possam falar e sejam ouvidas”, pois considera que “elas não são, de todo, ouvidas”.

As desculpas que se dão para o atraso das cirurgias tem que ver com o preconceito.

Sobre a Lei nº 38/2018, considera que “tem coisas muito boas, porque já fala das crianças e delas poderem ter uma trasição social” mas, “por outro lado, 16 anos para começar uma transição pode ser tarde para determinadas pessoas”, diz.

Zélia Figueiredo já se deparou com casos de jovens que “enquanto não começarem o tratamento hormonal ou, no caso dos rapazes, não fizerem uma mastectomia, não saem de casa e estão a tomar anti-depressivos em doses muito altas”.

É por isso que, na sua opinião, “a autodeterminação é essencial. Cada um sabe quem é”, reforça, para a seguir acrescentar: “passar-se um papel a alguém para ir a seguir a uma conservatória, é passar um atestado de imbecilidade à pessoa, acho eu”.

O que fica a faltar na lei, refere, é a vertente ligada à saúde: “há algumas coisas que deviam ser prevenidas na lei, mas uma coisa é autodeterminação e despatologização e outra são os cuidados de saúde. Esta passagem da despatologização e de assegurar cuidados de saúde é muito difícil de fazer, porque os cuidados de saúde nem sequer estão bem assegurados com uma patologização”, afirma.

Assim, para a Psiquiatria deviam apenas seguir aqueles que tivessem problemas psiquiátricos “derivados destas dificuldades todas”. Esta opinião é, contudo, divergente das de outros profissionais “que têm um modelo mais médico e que defendem a necessidade do diagnóstico”.

Passar-se um papel a alguém para ir a seguir a uma conservatória, é passar um atestado de imbecilidade à pessoa.

Uma das razões para as coisas não evoluírem como deveriam é o preconceito, “que é das coisas piores do ser humano” e Zélia afirma que “as desculpas que se dão para o atraso das cirurgias tem que ver com o preconceito. Porque as pessoas não entendem e acham que é uma escolha. O preconceito não ajuda à evolução e as pessoas não se libertam de certas coisas que são falsas e, no fundo, não melhora o sofrimento de muita gente.”

No Norte do país, há atualmente três locais onde se faz o acompanhamento de pessoas “trans”: o Hospital de Magalhães Lemos e o Hospital São João, no Porto, e o Centro GIS, em Matosinhos.

Artigo editado por Filipa Silva