Depois da aprovação da redução da propina máxima para 856 euros em outubro, a discussão em torno da gratuitidade do ensino superior volta a estar em cima da mesa, no seguimento da proposta defendida esta segunda-feira por Manuel Heitor, ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, na Convenção Nacional do Ensino Superior 2030, em Lisboa.
A intervenção motivou reações de vários partidos políticos e levou mesmo o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, a concordar com a medida, “um passo muito importante no domínio do financiamento do ensino superior”, disse à Agência Lusa. O aumento do número de alunos através de um ensino superior “menos elitista, massificado e aberto a todos” foi um objetivo defendido por Manuel Heitor para a próxima década.
A propina zero poderia ser uma solução para combater os últimos dados do “Education at a Glance 2018”, relatório anual sobre educação da OCDE, lançado em setembro. Este dava conta de que, em Portugal, 60% dos alunos que frequentam o ensino secundário não transitam para o ensino superior. João Pedro Videira, presidente da Federação Académica do Porto (FAP), vê com “muito bons olhos a redução”, mas afirma, em declarações ao JPN, que “a propina zero é difícil de atingir, porque limita a captação de receita das instituições”.
Mais camas e mais bolsas
O presidente da FAP defende que há fatores que podem fazer uma maior diferença para os alunos que querem ingressar na universidade: os custos do alojamento e as bolsas de ação social. “A propina corresponde a cerca de 25% do custo total [que um estudante tem] no ensino superior, enquanto o alojamento muitas vezes ascende aos 50%”, explica.
A “reabilitação e construção de residências” é uma necessidade que se impõe, diz João Pedro Videira, nomeadamente para os “cerca de 42% de estudantes deslocados do ensino superior”. A redução da propina máxima, que representa 50 milhões de euros de despesa orçamental, “daria para duplicar o número de camas [nas residências]”, nota. Atualmente, há dez mil camas disponíveis nas universidades portuguesas.
Para Luísa Cerdeira a proposta “não foi preparada com dados que pudessem explicar como é que se poderá concretizar”
Aos estudantes bolseiros que não conseguem ser integrados numa residência, é dado um complemento de cerca de 180 euros para pagar um quarto, valor que “no Porto pode dar para alguma coisa, mas muitas vezes pode não cobrir nem metade do custo do quarto”, sublinha.
O aumento do número e do valor das bolsas atribuídas também deve ser um objetivo, segundo o presidente da FAP. “Devemos investir numa maior base de apoio social”, refere. “Se calhar seria mais determinante que a poupança de 20 euros [da redução da propina] por mês”. Nos últimos anos, o Governo aumentou de 64 mil para quase 80 mil o número de bolsas atribuídas.
Luísa Cerdeira, especialista em economia da educação, mostra-se surpreendida pela apresentação de uma proposta “que não foi preparada com dados que pudessem explicar como é que se poderá concretizar”. A professora Universidade de Lisboa, autora da tese “O Financiamento do Ensino Superior Português: A partilha de custos”, não nega que a propina zero aumentaria a acessibilidade ao ensino superior, mas alerta para a “necessidade realista de ver que este montante não é facilmente respondido pelo OE”.
Os “mais de 300 milhões [de receita das propinas] vão ter que vir de algum lado”, alerta a investigadora. As receitas das instituições de ensino superior terão de ser “cobertas pelo OE através daquilo que é cobrado aos contribuintes”, problematiza. Por outro lado, Luísa Cerdeira diz que é preciso “alocar mais recursos para o ensino superior e maior apoio para a ação social”.
Elitização de mestrados
O défice de receita poderá significar um aumento das propinas de mestrados e doutoramentos, diz João Pedro Videira, já que “estes ciclos de estudos que não são de continuidade e não fixam um valor máximo de propina”. “Democratizamos as licenciaturas, mas elitizamos mestrados e doutoramentos”, atira o presidente da FAP. Em declarações ao Fórum TSF, Manuel Heitor afirmou querer financiar o ensino superior com a formação pós-graduada, nomeadamente através dos mestrados, já que muitas vezes, argumenta o ministro, os estudantes contam com o apoio dos empregadores nos custos.
Presidente do CRUP acha que “é preciso apoiar os esforços das famílias com jovens a estudar”.
O peso do valor das propinas no orçamento das universidades é de 25%, diz Fontainhas Fernandes, presidente do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP) ao JPN. “Se formos ver o valor total de financiamento do ensino superior, isto representa apenas 250 milhões”, refere o também reitor da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), não descartando a viabilidade da proposta.
Fontainhas Fernandes afirma que, no decorrer da convenção, ficou estabelecido que “é preciso apoiar os esforços das famílias com jovens a estudar”. “Dentro dessa área caem as propinas, o alojamento e as bolsas de estudo”. O reitor da UTAD refere que a eliminação das propinas ajudaria a reduzir as despesas das famílias, mas deixa problemas como “a dependência que as bolsas têm de fundos comunitários ou a inexistência de dinheiro do OE para o alojamento”.
O presidente do CRUP sublinha que a decisão tem de ser pensada pelos vários agentes políticos, mas lembra que “estas devem ser medidas estratégicas com alguma sustentabilidade para as receitas das universidades”. Em 2017, as propinas renderam à universidades e aos politécnicos cerca de 330,1 milhões de euros, o valor mais alto de sempre.