Rita Colaço é uma das vozes que fazem companhia a milhares de portugueses através da rádio. Repórter da Antena 1, a jornalista nascida em Mação é, atualmente, a coordenadora da grande reportagem da rádio pública portuguesa.
Na sua terra natal, em Abrantes, viu nascer uma rádio local, pela mão do seu pai. “Eu nasci na rádio”, recorda na entrevista que deu ao JPN, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, à margem da conferência que a SOPCOM dedicou ao Dia Mundial da Rádio.
A falta de umas décimas para ingressar no curso de Jornalismo, desviou-a da sua primeira paixão. Acabou licenciada em Geografia e Planeamento Regional pela Universidade Nova de Lisboa e trabalhou na área durante alguns anos, mas quando a oportunidade de voltar à rádio apareceu, agarrou-a “com unhas e dentes.”
Em 2002, terminou uma especialização em jornalismo no CENJOR e voltou à rádio. Com passagens pela Rádio Clube de Pombal, TSF e Antena 1 cedo percebeu que este era mesmo o seu meio de eleição.
JPN: Em 2002, estagiou na Direcção Geral de Turismo, como geógrafa. Acabou por abandonar o projeto. Foi o jornalismo que chamou por si?
RC: Pois. Eu na altura ainda andava com a geografia aqui entalada e andava claramente ao engano. Acabei por fazer um estágio, que já não me lembro se era curricular, ou não, mas de facto o apelo da rádio foi sempre mais forte. Cresci com a rádio e, portanto, quando soube que havia uma oportunidade de regresso à rádio, agarrei-a com unhas e dentes.
A paixão pela rádio, surge pela mão do seu pai?
Sim, eu nasci na rádio. O meu pai ajudou a fundar a rádio Antena Livre de Abrantes e foi lá que eu cresci. O meu pai andava sempre com um gravador ligado. Eu tenho sons meus a falar com dois anos de idade, a chamar a prima e a tia e a cantar. Tenho esses registos sonoros de mim própria, desde muito cedo.
Assisti ao nascimento da rádio com o meu pai. Assisti a um estúdio a nascer e a ser forrado com uma parede de cortiça. Cheguei a fazer um programa que era a “Loja da Pequenada” e portanto aprendi muito a fazer rádio e a ver o meu pai a fazer rádio na rua, a chamar as pessoas da terra. A rádio servia para passar recados, dar conselhos, arrecadar ajuda ou comprar uma cadeira de rodas, por exemplo. Era uma rádio muito comunitária, muito local, que ouvia as pessoas que normalmente não têm hipóteses noutros lugares. Foi essa a rádio a que eu me habituei e que até hoje tento transportar.
Esse crescimento com uma rádio local e essa experiência como ouvinte, contribuiu para que, atualmente, faça reportagens sobre temas sensíveis e que muitas vezes não são abordados pelos restantes meios de comunicação social?
Sim. Eu gosto muito de trabalhar temas, que do ponto de vista social e humano, são temas difíceis, sobre os quais temos de andar, às vezes, em pés de lã. Temas que estão na franja da sociedade e não chegam muitas das vezes aos alinhamentos, ou se chegam, já são a fechar ou pelas piores razões. Gosto de perceber as razões daquilo que é mediático, ou daquilo que não é mediático de todo. Daquilo que está a acontecer e também é atualidade, embora não tenha esse espaço na antena.
Na grande reportagem “O Pior Dia” empresta o seu telemóvel a uma senhora para ligar para o irmão, porque ela não conseguia estabelecer contacto com ele há alguns dias depois dos incêndios que afetaram aquela região. Um jornalista tem de ser sensível a estes problemas?
Sim. Eu tive muitas dúvidas em colocar esse som no ar, porque, efetivamente, eu ali despi por momentos o papel de repórter e estava a ajudar a senhora. A conversa que ela tem com o irmão ao telefone aparece dois ou três minutos, mas ela dura muito mais tempo. Só coloquei aquele pedaço de som, porque quando regressei à redação me pus no papel de ouvinte. A senhora estava-me a contar que estava muito triste, porque já não conseguia falar com o irmão há uma semana. E eu coloquei-me no papel de ouvinte e do que eles esperariam que a jornalista fizesse ao ouvir aquela história. Senti que os ouvintes iam querer isso. Iriam pensar: então que jornalista é esta que ouve a senhora com esta queixa e não lhe empresta o telemóvel. Eu gosto muito de ser honesta com os meus ouvintes e foi isso que aconteceu. Um momento de honestidade e das pessoas perceberem que o repórter também é ouvinte e também é um ser humano.
Fez voluntariado no Uganda em 2009. O desejo de ajudar o próximo, que se manifestou cedo, e de estar ligada a causas humanitárias foi transportado para o jornalismo?
Sim. Quando sei que há uma situação de urgência social e existe a possibilidade de a retratar, abordo essas situações. São os temas que eu acho necessário trabalhar e que gosto, porque acho que é preciso alguma sensibilidade para ouvir histórias difíceis. Eu consigo sentar-me no sofá, durante horas, e ser um bocadinho a ouvinte que aquela pessoa precisa para contar a sua história. Obviamente que depois tenho de fazer o balanço, mas estes são os temas que eu gosto. Não gosto do Portugal sentado, das conferências de imprensa, dos ministros. Nesse sentido eu até digo que não sou uma jornalista, sou uma contadora de histórias. Mais do que aquele jornalismo puro e duro.
É preciso viver a realidade das pessoas que estão em situações complicadas e encarnar esse sofrimento, para melhor contar a história? Ou é necessário algum distanciamento?
É curioso que, por exemplo, na reportagem sobre o Bairro da Jamaica, eu vi na breve de um jornal a queixa de uma moradora, que dizia e lançava o desafio ao presidente da Câmara do Seixal para ir lá viver uma semana, para ver o que é viver no Bairro da Jamaica. Assim que li aquilo, pensei: o presidente da câmara não vai aceitar, mas vou eu. Eu quero dormir no bairro. Eu só não dormi lá, mas estive lá de manhã à noite, para perceber o que é viver naquele lugar. Para conseguir entrar de forma epidérmica nas histórias. Conseguir perceber a razão do sofrimento, a razão das queixas daquelas pessoas. Obviamente, que depois quando regresso à redação, tenho de ter o distanciamento necessário para fazer um trabalho equilibrado, do ponto de vista jornalístico, mas usando os sons e as palavras certas para retratar aquela realidade. É por isso que, às vezes, é importante vivê-la e perceber bem, para melhor contar depois.
Enquanto repórter qual foi a situação mais difícil que viveu e que mais a chocou?
Uma situação tensa foi quando estive na Coreia do Norte. Sabia que iria [depois] para a China, para depois ir para a Coreia do Sul. Portanto, eu tinha comigo um bilhete, que dizia que iria visitar a Coreia do Sul. E, de repente, um dos guias que estava no meu grupo, diz que queria ver os bilhetes de volta para os nossos países. Eu tinha o bilhete escondido num lugar bastante secreto e estive ali uma hora ou duas apavorada, a pensar que eles iam descobrir que eu ia para a Coreia do Sul. Entretanto, chegamos ao hotel e eles lá se esqueceram de pedir o bilhete novamente e safei-me dessa. Também na Coreia do Norte, junto à fronteira com a Coreia do Sul, tive outra situação. Tinham-me dito que não podia fotografar militares e então eu fotografava para o lado contrário onde eles estavam. Mas eles acharam que eu estava a fotografá-los e chamaram-me ao pé de um militar armado e entretanto os guias fugiram para o autocarro. Fiquei sozinha com o militar. Percebi, por gestos, que eles queriam ver as minhas fotografias. Só descansou quando viu a primeira fotografia de todas, que era no aeroporto com a minha família e a minha cara metade. Só nessa altura é que me deixaram em paz.
Do ponto de vista do choque humano já tive inúmeras situações, quer quando estive no Líbano ou na Jordânia, com crianças sírias refugiadas, que em pleno inverno calçavam chinelos sem meias. Mães durante horas e horas a tentarem dar um novo lugar aquelas crianças. Mães que chegam grávidas a outro país, com filhos que vão nascer num sítio, que não é o deles. Isso tudo, sobretudo depois de ter sido mãe, são situações que me custam mais tratar. Custa-me distanciar mais disso. Às vezes, quase que fujo um bocadinho desses temas que são mais sensíveis para mim.
Na era da emergência do online, a rádio é um dos meios tradicionais que melhor tem resistido ao crescimento do digital. Porque é que isto acontece?
Eu acho que o digital tem sido um ampliador. A televisão ameaçou a rádio e agora está a pagar as favas. Eu ainda sou do tempo em que a rádio só se ouvia uma vez e portanto quem ouviu, ouviu, quem não ouviu paciência. Agora temos a vantagem de podermos ser ouvidos a qualquer hora, em qualquer lugar, várias vezes e de voltar atrás se não percebermos bem.
Depois também temos cada vez mais pessoas a criar conteúdo, como os podcast, que estão entranhados no dia a dia de muita gente. Eu própria tenho um, que se chama “O som da minha vida”. Ali tenho um espaço independente e criativo, onde vou brincando com a plasticidade do som. Não há coisa melhor do que podermos estar a fazer várias coisas ao mesmo tempo e ainda assim aprender coisas. A televisão não nos dá essa possibilidade, porque temos de ter vários sentidos aplicados. Para a imprensa, tenho de ter o tato e a visão. Para a rádio, posso estar a lavar a louça ou a tomar banho. Só estão a falar para mim. Antigamente, a rádio ouvia-se em família e agora falam só para os meus ouvidos. É uma escuta intimista e apaixonante. Posso ouvir de noite, com os olhos abertos ou fechados e quando eu quiser. Não é por gostar muito de rádio, mas acho que de fato consegue sobrepor-se a todos os outros meios, apenas com recurso a um único sentido, que é a audição.
Há apenas duas jornalistas em Portugal que receberam o Prémio Gazeta duas vezes. Os prémios são uma motivação para o futuro?
Claro que os prémios acabam por ser o reconhecimento do nosso trabalho. Não podemos negar. Cada prémio que recebo deixa-me muito contente. Mas ter pessoas, que não são colegas e não são os nossos pares, a elogiar o nosso trabalho e a dizerem que o entenderam ou que ouvem um trabalho nosso e dizem que têm de parar o carro na berma da estrada porque queriam ouvir o resto com muita atenção é fantástico. Isso para mim, e não digo isto para ficar bonito, é o melhor prémio de todos. É a recompensa do trabalho que passa, do trabalho que fica, do trabalho que chega aos ouvidos e que dá a palmada no ombro e faz o ouvinte parar um bocadinho e estar atento às nossas histórias.
Artigo editado por Filipa Silva
Artigo modificado às 09h22 do dia 22 de fevereiro de 2019. A frase “A adrenalina da televisão e a monotonia da imprensa nunca a impressionaram.” foi retirada do texto introdutório da entrevista por extrapolar o sentido das declarações da entrevistada. A ideia teve por base dois exemplos particulares apontados pela entrevistada na conferência que antecedeu a entrevista, mas não respeitam o sentido dessas declarações, extrapolando-o. À visada e aos leitores, apresentamos as nossas desculpas.