Desde 2017, que os Caretos de Podence integram a lista do Património Nacional Imaterial. Mas a tradição, que é já uma imagem de marca da região, quer galgar fronteiras: os Caretos de Podence querem ser Património Cultural Imaterial da UNESCO.

Patrícia Cordeiro coordena a equipa técnica responsável pela candidatura. Na Casa do Careto, a socióloga, licenciada pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, recebeu o JPN.

A jovem, natural de Lagoa e residente em Macedo de Cavaleiros, explica a forma como a visão sobre os caretos mudou com o tempo e a relevância que a tradição tem hoje para quem vive ou já viveu em Podence e na região que circunda a aldeia.

Até há pouco tempo, os Caretos de Podence eram vistos como a encarnação do diabo. Há, ainda, algumas pessoas que continuam a ter medo deles. O que acha que aconteceu para o Careto ter deixado de ser apenas uma máscara assustadora para passar a ser uma figura tão prestigiada, um símbolo?

De uma forma muito curta, é exatamente a mudança dos tempos. O careto, enquanto personagem, naquilo que nos é permitido conhecer até ao momento (porque depois há um limite de documentação histórica que nos leva até uma certa época e não nos leva mais longe do que isso), existe no contexto de uma comunidade fechada, que eram as comunidades rurais pré-industrialização, pré-globalização.

As comunidades rurais viviam em torno de si próprias. Tudo o que era produzido aqui era consumido aqui ou muito perto daqui. Então há, até certo ponto, um isolamento/fechamento sobre si próprias. As pessoas não saíam para ir estudar ou para ir trabalhar, como acontece hoje em dia.

A partir do momento em que, com a mudança dos tempos, se dá uma abertura para o exterior, uma dependência maior do fluxo económico que vem de fora, claro que há uma mudança na perceção da própria cultura por parte da comunidade e, gradualmente, uma mudança da imagem do careto.

Um dos primeiros etnógrafos que veio registar em fotografia a nossa festa, nos anos 70, Benjamim Pereira (que escreveu um livro fantástico chamado “Máscaras portuguesas” e que é uma marca da nossa etnografia), diz, a certa altura, que naquela época existia um lendário de histórias que as pessoas atribuíam ao fato dos caretos.

O Entrudo Chocalheiro

Durante o Carnaval, Podence, aldeia serena e pacata durante o resto do ano, transforma-se num átrio de cores, correrias e sons.  Quando chega a hora, os caretos começam a correr pelo declive da aldeia, do adro da igreja até ao terreiro à saída, chocalhando todos os que se atravessam pelo caminho. Abraçando as pessoas, movem as ancas ritmadamente, fazendo com que os chocalhos que trazem à cintura batam no corpo daqueles que mais tentam fugir. E quanto mais fogem, maior o desafio.

O traje é feito de colchas franjadas, tingidas de amarelo, verde e vermelho. As máscaras têm um nariz pontiagudo e são feitas de latão ou couro. À cintura trazem campainhas e uma rodada de chocalhos e apoiam-se em paus ou bengalas que os ajudam nos pulos e correrias.

Quem por lá passa, vai embora feliz, pois com a queimada do Entrudo (um careto gigante), todas as tristezas se transformam em cinzas, dando-se início a um novo ciclo que convida a chegada da Primavera.

Era a força do fato que fazia com que eles saltassem das janelas e não partissem pernas nem braços. Havia uma crença de que aquele fato atribuía ao careto poder, uma força sobrenatural, tornando-o, até certo ponto, assustador. Claro que essa crença não desapareceu completamente, mas hoje as pessoas sabem que não há esse poder sobrenatural.

Não deixa, no entanto, de haver uma perda de timidez, levada por todo o êxtase daqueles dias de festa, pela possibilidade de se esconder, através da máscara, a identidade… Isso leva a comportamentos exagerados e que não seriam habituais para a pessoa se não estivesse com o fato de Careto. Contudo, penso que já há uma certa permissividade. E isso, hoje, acaba por ter uma função social muito importante para a coesão das pessoas desta comunidade que ainda cá pertence e que no período do Carnaval se reencontra.

Os laços são renovados no Carnaval com os caretos. Isso vê-se, particularmente, com esta nova geração de emigrantes que nunca, sequer, viveu ou passou muito tempo em Podence, mas sabe perfeitamente o que é o Careto e o Carnaval de Podence e que mantém todos os anos o compromisso de retornar para se vir vestir de Careto. Isto, claro está, faz dele uma figura muito acarinhada.

Qual a importância dos caretos para a aldeia de Podence?

Esta exportação da imagem do Careto a nível nacional e, eventualmente, internacional. aumenta muito a autoestima da comunidade. As pessoas sentem-se valorizadas. Quem vem cá, vem propositadamente para vir à Casa do Careto, ver o que é o Careto, como é que é o Entrudo Chocalheiro.

É, também, uma oportunidade de dinamização económica, através das máscaras artesanais e outras pequenas recordações, seja do Carnaval como de produtos locais.

É um incentivo económico muito grande para a restauração, para o alojamento. Podence é umas das aldeias do concelho de Macedo [de Cavaleiros], senão a aldeia, com mais alojamento turístico disponível. Aliás, eu tenho um amigo que já me chegou a dizer “se não fosse pelos caretos, eu já tinha emigrado”. Os caretos são, claramente, os porta-vozes da aldeia de Podence e do Norte, até.

Os laços são renovados no Carnaval com os caretos.

Abordando essa questão… Os caretos são, para muitos, um símbolo da vida rural experienciada no nordeste transmontano. De que maneira é que acha que os Caretos de Podence representam os costumes transmontanos?

No fato do careto estão intrinsecamente associados outros “patrimónios” que remetem para uma certa cultura tradicional portuguesa. Para contarmos a história do fato, das mantas de casinha feitas em lã, temos que contar a história do ciclo da lã e da importância da agropecuária na região, que hoje não é inexistente, mas que claramente perdeu centralidade no modo de vida das nossas aldeias.

O mesmo acontece com as máscaras, que, feitas de lata ou de couro, nos reportam aos ofícios tradicionais do latoeiro e do sapateiro.

Mas não é só nesta ligação ao passado que os caretos nos representam culturalmente. Existe, sobretudo, uma certa gastronomia que é marcadamente transmontana e de inverno, quer para consumir na região, quer para adquirir e consumir em casa. Falo de todos os produtos do fumeiro, os grelos (há até um festival que coincide com o período do Carnaval), as casulas e todo este universo de práticas que estão associadas ao modo de vida tradicional das aldeias e que vão atraindo visitantes ou criando essa marca de identificação da região.

Vemos este efeito também, como já tinha dito antes, num novo movimento de reconversão de casas vazias para alojamento turístico, em que se opta quase sempre pela manutenção de uma estética associada à construção típica das aldeias transmontanas.

A 3 de fevereiro de 2017, a “Festa de Carnaval dos Caretos de Podence” passou a fazer parte do Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial. Quais considera terem sidos os maiores benefícios desta conquista?

A inscrição no Inventário tem, desde logo, a capacidade de legitimar o esforço que a população, ao longo de décadas, faz pela manutenção de uma tradição como a dos caretos, mesmo perante todas as mudanças demográficas e sociais que as zonas rurais sofreram.

É um orgulho e uma espécie de garantia, por falta de melhor termo, de que este compromisso que anualmente as pessoas assumem é reconhecido pelas entidades responsáveis. Por outro lado, penso que se gerou um discurso mais unificador da população, uma reaproximação de alguns, até, em relação à festa.

Acho que, nos últimos anos, fruto destes processos, se criou um diálogo mais constante sobre o significado da tradição hoje em dia, sobre as mudanças e as permanências, sobre os conflitos que sempre existem. Esses são, para mim, benefícios muito significativos.

Depois há os benefícios económicos e que têm um impacto direto sobre a vida das pessoas. O trabalho em prol destes reconhecimentos tem como função a manutenção da vida dos habitantes de Podence e, se possível, fomentar o seu rejuvenescimento e potenciar também o desenvolvimento local do concelho de Macedo de Cavaleiros, globalmente. É claro que esta inscrição e a candidatura à UNESCO provocam uma exposição mediática maior, atraindo mais visitantes. Esperamos, assim, que, com isso, haja aqui uma espécie de círculo virtuoso que contribua e beneficie a vida destas localidades.

Agora que está conquistado o país, os caretos ambicionam mais. A 26 de março de 2018, foi formalizada a candidatura dos Caretos de Podence a Património Cultural Imaterial da Humanidade da UNESCO. No entanto, desde 2014 que a candidatura está a ser preparada e, no ano passado, a tentativa de candidatura foi adiada pela UNESCO. Que aspetos dificultaram, até então, a candidatura?

Vejamos… A UNESCO só avalia uma proposta de candidatura por ano, por país. A partir do momento em que existem mais de quatro inscrições aceites, há uma lista de prioridades. Obviamente, aqueles que não têm nenhuma inscrição, têm prioridade durante um certo tempo. No caso português, quando fizemos a proposta no ano passado, mesmo que ela tivesse sido aceite pela comissão nacional da UNESCO, nós dificilmente teríamos sido integrados na lista de avaliações daquele ano, porque Portugal não tinha prioridade, por já ter conseguido, em anos consecutivos, várias inscrições. O que não é o caso deste ano.

De qualquer forma, isso também serviu para aperfeiçoar alguns aspetos técnicos – melhorar algumas questões que tinham sido apontadas em formulários feitos à população, melhorar os vídeos e os documentos escolhidos para submeter.

Atualmente, nós temos raparigas também herdeiras do orgulho em ser careto, dessas memórias e dessa herança cultural.

Dentro dos critérios rígidos da UNESCO, podemos falar da questão da representatividade de todos os grupos. Uma vez que os Caretos de Podence são, maioritariamente, homens, considera que isso poderá prejudicar a candidatura? Acha que a tradição é suficientemente integradora?

Sim, é. Hoje em dia, é. Para abordar este assunto, temos de falar das questões de género no passado e com a evolução dos tempos. A função do careto, na tal comunidade rural mais fechada, era, também, de cortejar as raparigas. Num período em que os costumes eram arcaicos, era uma forma de aproximação às jovens da aldeia e uma espécie de ritual de iniciação à idade adulta.

Quando, lá para o final dos anos 60, fruto da ditadura, se dá um êxodo rural para o litoral ou para fora do país numa tentativa de fugir das más condições de trabalho e da guerra do Ultramar, Podence (como outras aldeias) fica sem rapazes e, consequentemente, sem caretos. Há um filme, feito pela Noémia Delgado, onde aparecem apenas três rapazes novos que ainda não tinham idade para ir trabalhar para fora ou para ir para a guerra, mascarados de caretos.

Portanto, a festa em si perde aquele sentido e, com as mudanças dos tempos, eles já não precisam do traje para se aproximarem das raparigas, pois começam a aparecer outras formas de entretenimento – bailes, outras festas… Com a calma dos tempos do pós-ditadura, com a entrada de Portugal na União Europeia e com a melhoria das condições de vida, há uma mudança rápida e muito radical nos costumes da época.

Atualmente, nós temos raparigas também herdeiras do orgulho em ser careto, dessas memórias e dessa herança cultural. Quando elas vêm a Podence, têm exatamente o mesmo sentimento de pertença (numas famílias mais do que noutras, claro) que os seus companheiros do sexo oposto.

Na maioria dos casos, para elas, é igualmente um orgulho vestir o fato do avô, do pai, do tio ou aquele que já foi feito especialmente para elas e virem participar nesta festa de Carnaval da mesma forma que eles.

A 18 de fevereiro deste ano, foi comissária da exposição “Carnaval de Podence – Tradição que se perde no tempo”. Acha que a tradição, efetivamente, se perde no tempo? Qual é o futuro dos caretos?

Nesta questão da tradição, podemos dizer que aquilo que sobrevive, tem de se adaptar. O que não se adapta, não sobrevive. Aquele fato que o Careto veste e que está exposto no museu não é, meramente, um símbolo do passado. É um objeto que participa na construção do presente e do futuro. As pessoas que hoje se vestem de Careto estão a atribuir novas formas e novos sentimentos ao Carnaval de Podence, usando um objeto que traz do passado uma certa história. Contudo, não é essa história que é hoje vivida aqui. Todo o cenário da tal aldeia rural mudou por completo. Se nós quiséssemos manter a aldeia tal como era nos anos 50, ela seria uma aldeia museu e não vivia cá ninguém e ninguém mais se vestia de Careto, porque é impossível reproduzir e respeitar aquela tradição à risca (apenas num teatro).

Então, qual é o futuro? O futuro é dessas novas gerações que se vestem hoje de careto. São eles que vão determinar a tradição daqui a 40, 50 anos. Por esse motivo, a exposição “Carnaval de Podence – Tradição que se perde no tempo” servia, na verdade, para mostrar exatamente o contrário: que a tradição não se perde no tempo. Adapta-se.

Afirma que são as novas gerações que vão dar continuidade a esta tradição e, efetivamente, cada vez mais jovens vestem o fato de careto. O que fez com que os caretos se tornassem tão famosos entre as camadas mais jovens?

Eu penso que o que torna os caretos tão atrativos para os mais jovens é a ideia da exclusividade, o pertencer a um grupo que é só deles. Eles acabam por ser quase como um clube que se junta todos os anos e que lhes permite ter aquele sentimento de pertença. Muitas vezes, sendo filhos de imigrantes, vêm no Carnaval reunir-se com amigos que só veem uma vez por ano e encontram nos caretos o seu “lugar” reservado.

As pessoas que hoje se vestem de Careto estão a atribuir novas formas e novos sentimentos ao Carnaval de Podence.

De que maneira considera ser importante a preservação do Património Cultural Imaterial no nosso país e no mundo?

Quando nós olhamos para um monumento, mesmo que consigamos reconhecer a sua beleza estética, o que importa é toda a história por detrás dele (aquilo que sabemos ou imaginamos que se terá lá passado) e que faz com que ele tenha um valor cultural significativo para a Humanidade. E quando se perde, é uma perda muito grande. Como aconteceu com o Museu Nacional do Brasil que ardeu em setembro do ano passado. Não é o edifício… É uma série de conteúdos irreproduzíveis que se perdem para sempre.

Tal como o fato de um careto tem uma história: alguém o fez, alguém o veste mais do que uma vez e faz passar por várias gerações. Quando chega a vez da pessoa que o usa hoje, ela carrega consigo, mais do que um fato, toda uma herança cultural. Dessa forma, todas as experiências que essa pessoa possa vivenciar nesse fato serão ainda mais simbólicas. Isso é o Imaterial.

É, por isso, um perigo uniformizarmos toda a nossa cultura e modo de vida. Nós não podemos todos ser uma nação, todos temos um passado histórico diferente. Quem é intermediário pode e deve incentivar, criar condições para a preservação da cultura. Por isso é que nós queremos capacitar/requalificar o espaço da Casa do Careto: para que continue a representar a história das pessoas que já não estão cá hoje e para que as pessoas tenham a possibilidade de criar o seu fato cá em Podence.

A manutenção da diversidade cultural também nos ajuda, em muitos casos, a ser mais tolerantes com aquele que é diferente, a entender outras culturas. O respeito pelo outro, pela criatividade humana, pela expressão individual e coletiva, pela identidade cultural… São coisas que os caretos e outros projetos do nosso património representam e que devem ser estimadas e preservadas.

Artigo editado por Filipa Silva