Já lá vão quarenta e quatro anos desde que os espanhóis abandonaram o Sahara Ocidental, deixando a zona ao cuidado de Marrocos e da Mauritânia. Em 1977, os marroquinos ficaram responsáveis por todo o território, mas os sarauís, descendentes de povos nómadas colonizados por Espanha, consideraram, desde o início, aquela parte do Sahara sua por direito.

A guerra instalou-se na região, entre o Reino de Marrocos e a Frente Polisário, representante dos sarauís, e só acabou em 1991, com um cessar-fogo e promessas de um referendo que nunca chegou a passar do papel.

Mapa do Sahara Ocidental.

Mapa do Sahara Ocidental. Foto: Isabel Lourenço

Um muromais de cem mil militares marroquinos e um dos maiores campos minados do mundo separam a zona libertada pelos sarauís do território ainda controlado por Marrocos.

“Os traumas sofridos equivalem a um cenário de guerra”

Isabel Lourenço é ativista pelos direitos humanos e elaborou um relatório sobre a situação no Sahara Ocidental, apresentado esta quarta-feira na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP). Ao JPN, garante que a violência sobre os sarauís nos territórios ocupados é diária. 

A portuguesa, que está há cinco anos no Sahara Ocidental, Marrocos e nos campos de refugiados sarauís na Argélia para onde “metade da população fugiu” no início da guerra, apercebeu-se “do grau de trauma que as crianças e estudantes estão sujeitos” nestes territórios.

Para chegar a esta conclusão, a investigadora do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto (CEAUP) entrevistou 300 pessoas, das quais metade crianças e os restantes estudantes sarauís.

Conduzidas presencialmente, quando esteve nos territórios ocupados, bem como através de Skype ou redes sociais, as entrevistas revelaram histórias que muitas vezes os próprios pais não conheciam. Isabel Lourenço explica que os filhos “muitas vezes protegem os pais, não lhes contando o que se passa nas escolas, para que evitem represálias”, conta.

A conferência foi uma iniciativa do Centro de Estudos Africanos da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Foto: Ricardo Rodrigues

Das 150 crianças entrevistadas, mais de 80% dizem estar com medo constante, segundo o relatório divulgado. São frequentes os casos de agressões a menores como, por exemplo, o de uma criança de oito anos que foi espancada por cinco polícias, que o atiraram ao chão até lhe partirem um braço. Passado um ano e meio, a criança não sai de casa, sofre de incontinência urinária e começou a gaguejar.

À investigadora portuguesa, a mãe da vítima confessou que já não sabe o que fazer porque o seu filho (que aspirava ser futebolista) já se tentou suicidar. “Um sonho de uma criança de oito anos foi esmagado por um ato de violência completamente arbitrário”, reclama Isabel Lourenço.

A investigadora conta que as crianças sarauís não vão sozinhas para a escola devido ao risco de sequestro. Mas, mesmo dentro dos estabelecimentos de ensino, os maus tratos perduram. Segundo o relatório apresentado, 78% das crianças da amostra dizem ter sido agredidas por docentes marroquinos. Isabel Lourenço conta que “as crianças sarauís são constantemente insultadas” na sala de aula e que para elas é considerado “extraordinário” quando “um dos professores não lhes bate” ou até sorri.

As escolas em território ocupado são constantemente patrulhadas por polícias, mas a ativista alerta que há casos de agentes que apalpam e violam as raparigas sarauís.

Ter uma bandeira da República Árabe Sarauí Democrática é considerado um crime nos territórios ocupados, assim como não saber o hino de Marrocos.

Ter uma bandeira da República Árabe Sarauí Democrática é considerado um crime nos territórios ocupados, assim como não saber o hino de Marrocos. Foto: Nações Unidas/Yutaka Nagata

Detenções arbitrárias e tortura são recorrentes

Quando os jovens terminam o secundário têm de prosseguir os estudos para universidades em Marrocos, mas, ainda que oficialmente os sarauís sejam reconhecidos como “marroquinos que vivem no Sahara”, estes têm várias limitações quanto à escolha do curso, porque “não lhes é facilitado o acesso a diversas licenciaturas, como aviação, medicina [ou] química”.

Segundo o relatório, os alunos sarauís têm mais dificuldades na atribuição de alojamento estudantil. Daí que ninguém queira “alugar casas a sarauís para depois serem invadidas pela polícia em ataques”, na sequência dos raides noturnos que acontecem frequentemente nas zonas controladas por Marrocos.

A partir do inquérito feito aos outros 150 entrevistados, com idades entre os 16 e 24 anos, foi possível concluir que mais de 70% dos jovens participam em manifestações pacíficas, que acontecem todos os dias. Segundo a investigadora, “os jovens são mais criativos nos protestos”. “Há uns meses [os jovens] ocuparam durante oito horas um autocarro de uma empresa marroquina que explora fosfato e forçaram as autoridades marroquinas a destruir o autocarro para os retirar”, conta.

As gravações de protestos não são permitidas e são feitas clandestinamente com telemóveis. Fonte: Isabel Lourenço

As “detenções arbitrárias” já apanharam 42% dos jovens e quase metade admite ter sido espancado pelas autoridades marroquinas, de acordo com o documento. Mas, em casos mais extremos, um em cada dez diz ter sido torturado fisicamente. Para os entrevistados, choques elétricos, arrancar unhas e ficar de cabeça para baixo durante horas são práticas “habituais” de tortura, relata.

As situações mais graves já chegaram até ao Comité Contra a Tortura, como o caso de um prisioneiro que sofreu a “introdução de lâmpadas no ânus”. Segundo a investigadora, os torturadores colocaram e partiram lâmpadas no ânus da vítima durante 8 horas, o que levou à incontinência fecal. A ativista conta ainda que o prisioneiro foi forçado a “ingerir comida com vidros durante três meses”.

Contudo, mesmo perante risco de prisão e tortura, “os jovens sarauís estão em modo de ataque”. “Costumo dizer que quem está a educar estas crianças para o ódio não são os pais, mas os marroquinos”, partilha a investigadora.

Sarauís com bandeiras à espera da Comitiva das Nações Unidas que visitou o Sahara Ocidental, em 1975. Foto: Nações Unidas/Yutaka Nagata

“Levaram-os para uma casota onde foram espancados”

Mas as agressões das autoridades marroquinas não se limitaram somente aos sarauís, conforme denuncia Isabel. Da única vez que esteve nos territórios ocupados, foi “sempre seguida por polícia”. Numa das vezes em que foram parados, dois dos colegas com quem seguia no carro foram levados pelas autoridades marroquinas “para uma casota onde foram espancados”.

Enquanto estavam a agredi-los, a ativista ficou em frente ao checkpoint, durante quase uma hora, “com armas apontadas” e com os agressores sempre a gritar “O Sahara é marroquino”.

Segundo a investigadora, gravar protestos ou a realidade vivida nos territórios ocupados é proibido porque “todos os que filmam são perseguidos e as câmaras são destruídas”. Até mesmo quem coopera com ativistas sofre represálias, como foi o caso dos tradutores que trabalharam com ela. Ainda assim, os tradutores sarauís continuam o seu trabalho, dizendo que preferem morrer a deixar de traduzir. “Pode parecer heróico, mas, para eles, não há outra opção”.

“As crianças que entrevistei não vão aceitar esta paz podre”

Para Isabel Lourenço, um dos maiores problemas na região é “não existir qualquer tipo de organizações no terreno, excepto a MINURSO”, uma missão das Nações Unidas para a realização do referendo no Sahara Ocidental, que está no terreno desde 1991 e tem como objetivo monitorizar o cessar fogo. Contudo, “a MINURSO nada faz”, diz Isabel, que viu os membros da organização nos hotéis” e a ir “à praia”.

Segundo o relatório apresentado, 76% das crianças entrevistadas descrevem os funcionários da MINURSO como “turistas” e nenhuma considerou a organização defensora da lei e dos direitos dos sarauís. A investigadora portuguesa afirma que, mesmo que no futuro se chegue a um acordo com Marrocos, as crianças e jovens com quem falou “não vão aceitar esta paz podre”.

O muro construído pelos marroquinos é a maior barreira militar em funcionamento no mundo. Foto: Nações Unidas

A ativista também lança críticas a organizações como a UNICEF, que “está em todos os 17 territórios não autónomos que ainda existem, menos no Sahara Ocidental”. Tudo isto contribui, segundo Isabel Lourenço, para “um blackout total nos territórios ocupados” e para o mundo não ter um “contacto real com a população e o seu dia a dia”.

Os próprios jornalistas são, de acordo com a ativista, tanto alvos como cúmplices no “silêncio que é imposto”. Ao entrar em Marrocos, a única forma que os meios de comunicação social estrangeiros têm de conhecer o que se passa na “última colónia de África” é através de formas clandestinas, porque no programa oficial “apenas são vistas as realidades que Marrocos quer”.

Contudo, Isabel Lourenço também aponta o dedo aos jornalistas. A investigadora conta que há jornalistas que lhe dizem que a história vivida no Sahara Ocidental “não tem interesse porque não há bombas”, diz.

Para as crianças que vivem no território onde “há mais minas terrestres per capita em todo o mundo” e onde os ataques e tortura são experiências diárias, Isabel Lourenço partilha que “a única coisa que querem é que ninguém se esqueça que elas existem”.

Artigo editado por César Castro