Sem o pijama característico das apresentações ao vivo, Paulo Zé Pimenta, mais conhecido por PZ, passa despercebido na rua. Ou quase: enquanto procuravamos lugar para a conversa, ainda deu tempo para um fã que passava de trotineta pedir “não um banano, mas uma foto” com o músico que vive no Porto e cresceu em Famalicão.
O ponto de encontro foi nos Clérigos, mas foi sentado num banco de pedra, à sombra do arvoredo dos Jardins da Cordoaria, que o autor de “Croquetes” e coautor (com o produtor gaiense dB) de “Cara de Chewbacca” conversou com o JPN sobre o processo de criação e o novo álbum, “Do Outro Lado”, apresentado a 29 de março.
O que é há “Do Outro Lado”?
O que é que há “Do Outro Lado”… Há um “Banano”, há uma cena “Supimpa” e tudo começa, claro, numa “Realidade Paralela”. Isto são tudo títulos das músicas do novo álbum, porque também gosto de dar, nos próprios títulos, umas hints do que o álbum contém. Jogando na mesma com os títulos das músicas, “Deixei de Ser um Totó”, mas “Eu Sou um Queque”. Fala um bocadinho do outro lado de cada um de nós, se calhar até do meu lado mais negro. Poderá ser o meu álbum com humor mais negro e mais denso. Acho que mostro um lado que está sempre lá dormente, mas que nunca mostrei tanto como neste trabalho.
O humor faz parte das tuas letras. Quando começaste a colocar esses elementos cómicos nas músicas?
Tem muito a ver com a vida que vivemos. Sempre gostei de ouvir músicas em que as letras, e mesmo as próprias melodias, nos levam para o lado mais irónico da vida, mais cínico também. Gosto dessa capacidade – que acho bastante saudável – de rirmos de nós próprios e da condição humana. E gosto de expor isso com alguns remates humorísticos. Apesar de ter esses elementos, estou a falar de coisas sérias. Noutras músicas não, são mais lúdicas. Mas têm sempre uma mensagem um pouco ambígua, para as pessoas até ficarem a pensar: “Do que é que ele está a falar? Está mesmo a falar de croquetes ou está a falar de outra coisa?”. É a jogar com esses géneros e com essa atitude perante a música que gosto de me movimentar, nessa ambiguidade. Deixar ao ouvinte a interpretação das músicas e pô-lo a pensar de uma maneira diferente. No meu caso, tentar ser o mais genuíno possível.
No primeiro álbum “Anticorpos” há uma música chamada “Do Outro Lado”. Há alguma relação com o novo disco ou foi por acaso?
Não foi por acaso. Essa foi a primeira música que fiz como PZ. Na altura tinha ainda 18 anos, ainda estamos a falar do milénio passado, para aí em 1998. Decidi incluí-la no “Anticorpos”, quando comecei a fazer um álbum mais a sério. Foi quase a primeira vez que fiz um beat e comecei a cantar por cima, no caso dessa música até de forma muito falada, um bocadinho mais hip hop, um rap, muito simples e pausado. A música começa com “Qu’est-ce que je fais ici? / Qu’est-ce que je fais là? / … / Do outro lado/ A olhar para o meu estado / De angústia permanente”.
Concertos
PZ apresenta pela primeira vez ao vivo “Do Outro Lado” sábado, no Pérola Negra.
A digressão passa depois por Braga (20 de abril), Lisboa (4 de maio), Aveiro (17 de maio), Setúbal (24 de maio) e Coimbra (31 de maio).
Depois têm de ouvir para saberem o desenvolvimento dessa música, mas marca não só a minha personagem PZ, mas mesmo a minha própria vida. É isso que tenho feito com PZ ao longo dos tempos, misturar e tentar dar forma às fases diferentes que tenho passado na vida. Neste álbum, que sinto que é uma espécie de culminar, decidi ter essa referência à primeira música.
Esse título também surgiu, porque comecei a acabar as músicas quando me convidaram para aparecer numa série que estreia em maio na RTP Play, “Menos Um”. O Filipe Santos, criador da série, convidou-me para fazer umas músicas e participar na série. A personagem principal é um aspirante a músico que quando entra em palco se transforma em PZ. Eu faço o papel desse alter-ego da personagem. Na altura estava a terminar a “Realidade Paralela”, que jogava mesmo bem com o guião, parecia destinada para a série. O Filipe ainda nem tinha apoio da RTP para o projeto, mas eu li o guião, achei interessante e disse que fazia umas músicas para a série.
Poderá ser o meu álbum com humor mais negro e mais denso.
Entretanto o projeto foi aprovado e eu fui acabando as músicas, cinco para cinco episódios. Eram músicas que eu já andava a fazer e esse convite deu-me o mote para terminar o álbum. Até estava a pensar lançar só um EP com as músicas da série, mas começaram a fazer sentido com outras que já estava a desenvolver e achei por bem aproveitar e fazer um novo álbum. O nome “Do Outro Lado” também tem que ver com esse estado bipolar que a personagem vive e com que eu me identifico. Às vezes, sou um bocadinho como o Dr. Jekyll e Mr. Hyde – o PZ de repente entra na minha cabeça em certos momentos, principalmente à noite, e começo a fazer beats, a lembrar-me de uma letra, quase uma recriação musical da minha vida.
Disseste que a música “Do Outro Lado” foi a primeira feita como PZ e que sentes que este álbum, com o mesmo nome, é uma espécie de culminar. Já sabes quem é o PZ?
Boa pergunta. (risos) Sinto sempre esse culminar quando acabo um álbum. De certa forma, marca uma fase da minha vida e, neste caso, como também não estou a ficar mais novo… Estou quase na calma dos 40, já tenho 39 anos. Sinto-me bem comigo, mas ao mesmo tempo já fui acumulando muita merda. Esta merda tem de ser cagada e eu gosto de cagá-la através das músicas e através do PZ, desta maneira muito natural. Sinto que é o culminar, porque é mais um álbum e porque ainda me exponho mais, é capaz de estar mais denso que os anteriores, mesmo nos próprios instrumentais. Estou muito contente com eles, experimentei muito fazer overdubs de sintetizadores, usei várias máquinas, vários brinquedos diferentes para fazer música. Quando acabei o álbum fiquei como me sinto nestes dias: está bom, estou contente, siga para a próxima. Por isso é que é sempre uma espécie de culminar. O processo todo de fazer o álbum é o mais importante para mim. Tanto que muitas vezes chego ao final e não consigo ouvi-lo, tenho de o deixar repousar. Depois vem a fase dos concertos, a fase de remistura e de mostrar às pessoas. Mas a coisa mais íntima e especial é todo o processo de o acabar, de desenvolver as letras, e eu gostei muito deste processo no “Do Outro Lado”.
O álbum tem sonoridades semelhantes às que se ouvem nos anteriores, mas músicas como a “Partes de Mim São Falhas” têm elementos diferentes e que nunca se ouviram até aqui. O que é que este disco tem de diferente em relação aos precursores?
Tem temas diferentes, se calhar mais pessoais. Esta “Partes de Mim São Falhas”, engraçado mencionares, é a minha favorita neste momento – é a que me diz mais agora, mas uma pessoa está sempre a mudar de estados de espírito em relação à música. Foi uma viagem muito pessoal, com muitos sintetizadores, a editar muito. A própria música tem falhas e é o assumir que um ser humano não é perfeito, “Partes de mim são falhas / Digo cenas ao calhas”. PZ é um bocado sobre isso, é celebrar a diferença entre as pessoas, celebrar os defeitos, que não precisam de ser defeitos, apenas existem e há que encará-los como tal, tentar melhorar, mas temos de viver com eles. Problemas e neuroses, à medida que vamos crescendo, vão acontecendo cada vez mais. Vão surgir relações difíceis, problemas graves, mas com a música e o humor, é possível ultrapassar isso tudo com um sorriso na boca. E é isso que tento fazer neste álbum – e se calhar nos outros também.
Referiste que gostas de te divertir com a música que fazes, de rir com a tua música. Qual é a tua música que te diverte mais?
Lá está, neste álbum foi um divertido diferente, mais interior, deu um sorriso mais geral. Já tive momentos noutros álbuns – neste também – em que de repente me invade mesmo uma gargalhada, em que rio de mim próprio. Uma em que isso aconteceu claramente foi na “Croquetes”, quando me lembrei desse refrão, na “Cara de Chewbacca” também, na “Autarquias”… Neste álbum, aconteceu na “Damasco”, porque são tudo músicas estúpidas, mas que para mim fazem sentido e, em vez de me censurar, quero é desenvolvê-las e explorá-las até um género novo que estou a tentar trilhar sem saber muito bem onde é que vou dar o próximo passo. Gosto de dar passos desengonçados, e há sempre momentos em que, ao lançar uma gargalhada natural, vejo como um bom sinal para continuar a explorar a música. Mas tem de fazer sentido, não pode ser tudo “ao calhas”, tem de ser pensado.
Em outras entrevistas disseste que gostas de fazer música de forma caseira, até é daí que vem a decisão de atuar ao vivo vestido de pijama. Como é que funciona o processo criativo de uma música de PZ?
Normalmente, para PZ surge no sofá, posso estar de pijama ou não, também é um bocado um símbolo. Mas tenho de estar no conforto, com as minhas máquinas ou em frente ao computador com os controladores, gosto da parte tátil da música. Gosto de ir buscar máquinas antigas meio vintage, drum machines e etc. Começo normalmente com um beat, depois com uma linha de baixo que pode ser programada também no beat ou tocada. Aquilo fica ali a marinar e, de repente, surge-me uma letra ou uma parte do refrão. Depois a música vai variando para acomodar a própria letra e a melodia dela. Mas sim, normalmente começa no conforto de casa, de estar a fazer os beats sozinho, sem ninguém a chatear-me. Depois se calhar no caminho do sofá ao frigorífico lembro-me de uma parte da letra, começo a rir, volto atrás, escrevo… É um processo muito natural e eu tenho a sorte de ter espaço e tempo para poder explorar à minha maneira.
Às vezes, também gosto muito de estar a viajar nos sintetizadores, fazer música mais abstrata. Ainda não lancei nada assim, mas quero lançar, como já fiz com um ou outro instrumental.
Vão surgir relações difíceis, problemas graves, mas com a música e o humor, é possível ultrapassar isso tudo
Além do PZ, também tens outros projetos…
Tenho outro projeto, esse com o meu irmão, Paco Hunter, de 2008. Aí já é mais guitarra e voz. Gostava de fazer um novo álbum de Paco Hunter, mas ainda não surgiu a oportunidade, o meu irmão ainda não está no momento certo para isso. Também tinha uma banda, a The Zany Dislexic Band, tudo de improviso com o meu irmão e mais dois amigos – que foram quem começou uma editora, a Meifumado [a editora que representa PZ]. Eu tocava guitarra e baixo, ia trocando, era tudo meio psicadélico, dávamos concertos inteiros de improviso. Chegamos a dar concertos bastante interessantes, mas era tudo muito lúdico e não dava para fazer vida a partir disso. Com o PZ também é difícil, mas é um processo diferente. Mas é fixe sair do PZ e não estar a fazer sempre a mesma coisa, também gosto de participar com outros artistas. Participei agora numa música dos Corona, numa do Casuar:, um amigo meu de Lisboa…
Se perguntarem que género de música é que toca o PZ, qual é a resposta?
Nunca sei responder a essa pergunta. É PZ. Ou digo apenas “Que se foda o bacalhau”. Não estou aqui para fazer um género, tenho vários. Ouço desde jazz a trip-hop, música eletrónica pura e dura, techno… Gosto de tudo e tento criar o meu género, um com que me identifique. Colocando por géneros, há músicas mais hip hop do que outras, umas mais pop, são claramente eletrónicas por base, mas até há músicas em que uso baixo e guitarra. É o que for. Aliás, há uma palavra que se usa muito hoje em dia para descrever géneros que é a fusão. Quando dizes que é fusão, o que é? Olha, isto é um bocado a fusão da minha cabeça, que está a ficar fundida. (Risos)
Como surgiu a música na tua vida?
Foi muito através do meu pai e do meu irmão. O meu pai ouvia muita música em viagens, jantares, almoços… Era ele quem me levava aos concertos, também. Fui com oito anos ver a Madonna, fui ver David Bowie, Michael Jackson, Lou Reed, muita coisa. Ele também estava sempre a ouvir coisas novas e acabou por mostrar-me os Nirvana, Pearl Jam, e levou-me aos concertos que essas bandas deram cá em Portugal. Depois fui começando a ir com os meus amigos e o meu irmão começou a explorar a música feita por uma ou duas pessoas através das drum machines e dos samplers. Comprei um sampler por causa daquele sentimento de “Ai é assim? Então também quero” e comecei a fazer música. Comecei por fazer beats só, a questão das letras foi depois.
Fui com oito anos ver a Madonna, fui ver David Bowie, Michael Jackson, Lou Reed, muita coisa.
E quais são as maiores influências?
Surgiram grupos como os Mind da Gap, aqui em Portugal, obviamente os Wu-Tang Clan, Ol’ Dirty Bastard, Dr. Octagon também é uma grande influência para mim. Eram artistas com batidas muito raw, com uma sonoridade muito marcada e rítmica e que depois jogavam com as palavras e referências daquilo que viam à volta deles.
Eu tentei – e ainda tento – fazer a mesma coisa em relação a mim. Sou um gajo que vive no Porto, o mundo à minha volta é esta portugalidade e gosto muito de Portugal. Há coisas boas e coisas más, e gosto de falar dos dois tipos, mas há muitas coisas boas. Gosto de cantar em português em PZ e refletir a minha cultura e o que se passa à minha volta neste ambiente urbano. E no Porto isso tem vindo a desenvolver muito, está uma cidade e pêras. Há uns anos, não era assim. Sempre estive muito na zona da Foz e era raro vir à Baixa, era um sítio muito escuro. É muito bom ver toda esta vida, hoje em dia, o Porto já a merecia há algum tempo. Para mim é um sítio perfeito para viver, e gosto de celebrar isso sem nunca deixar de criticar, porque nada é um mar de rosas.
Temos as cidades exatamente para discutir ideias e mostrar peças que exprimam essas ideias através da arte. Sendo que a música é a arte mais pop, que chega mais diretamente ao público e pode ser partilhada muito facilmente. Foi o primeiro produto clonado digitalmente, e até já nem custa ouvir música por causa dos serviços de streaming. Isso também levou ao crescimento dos concertos e festivais. Esta nova geração consome cada vez mais esses eventos ao vivo com os amigos para ouvir música e para se divertirem. Aliás, eu tenho uma música neste novo álbum, a “Diverti-me Imenso”, que é sobre isso, mas ao mesmo tempo é uma crítica àquelas festas todas “pipi” que há, ou às festas muito de arromba em que a ressaca é terrível.
Gosto de misturar e de me dar com pessoas de todos os extratos sociais e cada pessoa é um extrato social diferente.
Nos novos concertos podemos esperar alguma coisa nova, ou vai ser mais do mesmo?
É mais do mesmo, mas com mais músicas do novo álbum. Também vou ter umas apresentações especiais em uma ou outra música nova. A ideia é apresentar o novo álbum, nunca esquecendo as outras músicas. Devemos tocar seis ou sete músicas do novo álbum misturadas com a salgalhada toda que é PZ e que faz sentido assim.
Artigo editado por Filipa Silva