O mau tempo ameaçava o primeiro dia da oitava edição do NOS Primavera Sound, que arrancou esta quinta-feira no Parque da Cidade do Porto. Tanto é que, por esse motivo, as portas do recinto abriram extraordinariamente às 16h45, três quartos de hora depois do inicialmente anunciado. Efeitos colaterais da passagem da depressão Miguel, que ficaram por aí. Pelas 17h00, já o sol espreitava por entre as nuvens no Parque da Cidade.
A tarde de concertos abriu com os ritmos quentes da Nova Lisboa. Dino D’Santiago atuou pouco depois das portas abrirem no Palco Super Bock, quase colado ao imponente Palco NOS. E, à boa moda lusófona, “festa” foi o mote lançado pelo som autêntico de Dino, que fez pulsar as energias necessárias para um dia poderoso.
Ainda dentro da mesma hora, o palco principal foi inaugurado pela que muitos tratam como a loira de “Un Hombre Rubio”. Christina Rosenvinge, uma das apostas dos JPN para este primeiro dia, trouxe para o palco o que se esperava: uma doce melancolia com uma pitada de sensualidade, num show feminino, de uma madura jovialidade.
O desfile pelos principais singles da sua carreira foi inevitável, frutos dos seus 13 álbuns de estúdio, mas o foco esteve nos temas do último álbum. Destaque para a performance de “Ana Y Los Pájaros”, que voou por si só.
O Primavera não se faz só dos nomes conhecidos
Aliás, pelo contrário. Mesmo a atuar para a audiência pequenina do Palco Super Bock, os Men I Trust foram maiores do que o palco em que tocaram. Certamente não será o concerto mais falado do primeiro dia, mas também não é preciso. Pelo menos, não parece ser esse o objetivo deles.
O dream pop melodicamente interpretado por Emma Proulx, que é pela primeira vez vocalista da banda no próximo álbum de Men I Trust, envolve e deixa que confiemos naqueles três homens, encabeçados por uma loira de sonho, para um momento de pura viagem. Em modo lo-fi, apresentaram ao público uma lista de temas que foram totalmente construídos pelo grupo, da raiz ao videoclipe, que abraça quem os viu.
Foi bom enquanto durou, e um prenúncio da qualidade que espreita pelos vários palcos do Primavera. Mais tarde, e num palco mais afastado, a portuguesa Catarina Moreno, nome verdadeiro de Mai Kino, apresentou a uma plateia pouco composta o seu pop digital, balançado numa voz de toques misteriosos, fruto principal do seu EP “The Waves”, produzido por Luke Smith, conhecido pelos trabalhos com bandas como Foals e Depeche Mode.
Embora presa no início da atuação, talvez por conta dos nervos de atuar num palco grande como o Palco SEAT (o segundo maior), conseguiu preencher os vazios da audiência e trazer um espetáculo coeso e a deixar um sabor da artista que se pode vir a tornar.
Lá mais para o final da noite, as amigas Rosa Walton e Jenny Hollingworth, que juntas formam a dupla Let’s Eat Grandma (sim, é mesmo este o nome delas), levaram ao escondido Palco Pull&Bear o synth-pop palpável que percorre o seu álbum de 2018, “I’m All Ears”. E fomos, de facto, todos ouvidos para a experiência etérea que as britânicas trouxeram ao Parque da Cidade.
Vestidas de preto e de branco, a indumentária serve de indicador de todo o show do duo. Num momento angelicais (em momentos como “Ava” e “Cool & Collected”), no outro estão no chão em coreografias descoreografadas que à primeira vista não têm lógica, mas encaixam-se nos seus temas de forma quase simbiótica. Alguns dos momentos mais orelhudos surgem nas produções da escocesa SOPHIE, que atua no mesmo palco na madrugada desta sexta-feira – “Hot Pink” e “It’s Not Just Me” levaram os novos fãs à loucura.
A arte tem lugar cativo
Antes do regresso à música, há mais para explorar no recinto do Primavera. Entre brindes concorridos e as inúmeras opções na área de alimentação (que nem sempre chegam para todos os bolsos), há arte para ver a ser criada ao vivo.
Na área SEAT Art Cities, encontramos Tamara Alves, 35 anos, uma das artistas convidadas pelo street artist Vhils, curador do projeto, para integrar o alinhamento de criadores. O objetivo é pintar um mural com o melhor da arte urbana portuguesa. Tamara já é espectadora assídua do festival, por isso, “estar aqui e fazer parte da construção [do mural] e do ambiente é maravilhoso”, disse ao JPN.
A artista considera que esta iniciativa vem “dar cor” ao festival num dia chuvoso, chuva essa que era uma preocupação. Felizmente, “o tempo ficou muito melhor e o ambiente também, é ótimo.” À noite, acendem-se luzes neon sobre a arte, já elaborada a pensar no pormenor, que lhe confere “um ar totalmente diferente”, diz Tamara animada com o resultado, que vem abrir o espírito ao dia relativamente cinzento.
Além de Tamara Alves, os artistas AkaCorleone, André da Loba, Bechkam e a dupla Draw&Contra participam na elaboração do mural, com cinco grafitti diferentes.
Um throwback, uma viagem épica e um regresso
Às 19h50 em ponto, o Palco NOS volta a abrir para uma das glórias do indie rock dos anos ’90. Built To Spill trouxeram ao palco nortenho uma atuação especial, com direito à interpretação na íntegra do álbum “Keep It Like a Secret”, um dos mais importantes da carreira dos americanos.
O céu estava aberto mas, durante os primeiros acordes, voltam a cair alguns pingos de chuva sobre o recinto. Os impermeáveis saem das mochilas e sacos de pano, mas os fãs da banda, fiéis, não abandonaram o local e ficaram para ouvir a introdução prolongada, preenchida pelas guitarras canónicas e a bateria frenética. A banda mostrou-se em forma, mantendo o se estatuto de culto num concerto que não teve uma reação muito eufórica da audiência, ainda despida a esta hora.
Já no palco secundário, começa pelas 21h00 um dos momentos mais aclamados da noite. Jarv Is é o novo espetáculo de Jarvis Cocker, antigo vocalista dos Pulp. O britânico surge acompanhado de violino, teclados, guitarras eletrónicas e, mais inesperado, de uma harpa – não é de admirar, estamos a falar de Cocker. Uma hora e meia de concerto para uma plateia de conhecedores do jeito do artista, com um desfile de temas como “Am I Missing Something” ou momentos mais recentes da sua discografia, como a tempestuosa “Must I Evolve”.
Mais tarde, antes do último concerto no palco principal, os Stereolab voltaram a abrir o laboratório, num das primeiras atuações da banda depois do hiato de dez anos. A viagem à década de 90 (um lugar que parece ser comum nesta edição do festival) é inevitável, com a banda a ir ao baú e trazer ao palco secundário alguns dos êxitos, como “Metronomic Underground” ou “French Disco”, passando pela reconhecida “Brakhage”.
Danny Brown aqueceu o que Solange fez explodir
Antes da chegada do cometa Solange, o Palco NOS recebeu ainda o rapper Danny Brown, que não deixou a plateia indiferente. Com um número já considerável de espectadores, o americano fez vibrar os presentes com o seu hip-hop tocado pelas influências post-punk dos Joy Division e de versos bastante livres. Ao mesmo tempo, o português Allen Halloween despejava versos num dos palcos secundários.
A personalidade divertida de Brown fez a audiência rir várias vezes entre os momentos de dança e a euforia quase total. Durante pouco menos de uma hora, as batidas certeiras de temas como “Grown Up”, “Ain’t It Funny” ou “Really Doe” fizeram os mais aficionados pela sonoridade saltar com um entusiasmo especial, numa setlist que teve ainda direito à estreia de uma música nova, que fará parte do álbum que lança ainda este ano, “uknowhatimsayin?“
Depois, o palco estava livre para o momento mais aguardado da noite. Solange foi uma estrela no verdadeiro sentido da palavra, que fez o sol brilhar às 00h30. O frio não se fez sentir neste momento de quente familiaridade, mesmo que não se conhecesse a obra da artista a fundo.
A cantora (que não se deixou fotografar por nenhum dos meios de comunicação acreditados) mostrou durante cerca de uma hora que é muito mais do que a irmã de Beyoncé. Não. Solange tem vida própria, um estilo que mescla o pop das massas com uma identidade específica, desafiante, alternativa. E provou que essa vida a coloca num pedestal a que poucos têm acesso.
Dez minutos depois da hora marcada, começou o concerto. No cenário, visualmente simples, uma enorme escadaria branca com um espaço no meio para o baterista da sua banda. Um conjunto de microfones, teclados, uma guitarra e dois trompetes completavam o cenário, que viria a ganhar vida com jogos de luzes inteligentes e pensados para uma aparente simplicidade, porém complexa, assemelhando-se à música da artista.
A introdução com “Taking On The Lie” foi suficiente para a loucura da plateia, com mais de 20 mil pessoas. Desde a entrada em palco, qualquer movimento ou nota de Solange teve direito a um grito coletivo, expectante. Logo a seguir, atirou-se a “Down With the Clique”. Durante a lista de temas, passou a limpo o seu mais recente registo, “When I Get Home”, mas houve espaço para algumas visitas ao filho-prodígio de 2016, “A Seat At The Table“, que lançou Solange para o firmamento.
O concerto é pleno. Começa e termina sem falhas e é difícil lembrar que tudo foi coordenado. Desde os pequenos movimentos de Solange com as suas coristas, aos dançarinos que entravam e saíam do cenário para participações subtis, mas parte de um cenário maior, tudo estava trabalhado ao detalhe. E quem faz parecer que não, tem magia na ponta das mãos.
Muita dança, coordenação, uma celebração. Da vida, das conquistas, de se ser mulher, de se ser negro. Um espetáculo grandioso mas, ao mesmo tempo, intimista. “Hoje quero tornar este lugar o meu santuário”, disse antes dos temas finais do concerto (que encerrou com “Things I Imagined” e “Don’t Touch My Hair”). Missão cumprida, Solange. Este foi o seu santuário e a plateia os seus devotos.
Esta sexta feira, o NOS Primavera Sound abre portas para o segundo de três dias de concertos. A partir das 16h00, há concertos de Interpol, Courteney Barnett ou James Blake para ver, num dia que promete aquecer esta edição com os ritmos quentes do reggaeton latino de J Balvin.
Artigo editado por Filipa Silva