Enquanto no primeiro dia a chuva ameaçava estragar em parte a experiência dos festivaleiros, este sábado, o sol redimiu-se e ofereceu ao término do NOS Primavera Sound um bom dia, embora ventoso, para viver os últimos (e bons) cartuchos no festival do Parque da Cidade do Porto, que já tem regresso marcado para o próximo ano.

A tarde de concertos iniciou-se, como sempre, às 17h00 em ponto – e mais uma vez em português. O Palco SEAT abriu com a energia dos brasileiros O Terno, trio encabeçado pelo cantor Tim Bernardes. O último álbum, “<atrás/além>”, não foi o único destaque da atuação, tendo a banda recuperado vários temas dos seus registos anteriores. Num cenário simples, com os três vestidos de branco e a tocar no centro do palco, houve espaço para brincadeiras e muita música, ainda que o concerto tenha durado cerca de 45 minutos.

O tropicalismo do trio ganhou destaque ao sol, que nesta altura ainda se sentia quente. A mistura de soul, rock e música brasileira sambou alegremente por entre letras poéticas e que refletem o espírito brasileiro contemporâneo. Do outro lado do recinto, a tão nossa Lena D’Água dava a sua “Grande Festa” com a ajuda dos Primeira Dama e da Banda Xita.

indie não fugiu do Primavera

A abrir o Palco NOS, a voz estridente de Frances Quinlan preencheu o momento dos Hop Along. Há quem diga que a vocalista tem não uma, mas sim dez vozes. E é capaz de ser verdade. Ora a gritar a plenos pulmões, ora em tom doce, mas sempre duro e marcado, a banda de Filadélfia trouxe temas como “Tibetan Pop Stars”, “Prior Things” ou “How Simple” em interpretações certeiras e indiscutivelmente indie a uma audiência ainda despida, a guardar energias para mais tarde.

Os Hop Along abriram o Palco NOS no terceiro dia de Primavera. Foto: Sofia Matos Silva

Uma das surpresas da tarde foi a plateia preenchida que assistiu com atenção às notas de Lucy Dacus. A guitarrista e cantora olhou com paixão para a bonita quantidade de pessoas que assistia ao concerto e afirmou que não entendia o que estávamos a fazer ali – ao fundo, ouviam-se os primeiros acordes de Big Thief, que Lucy afirmou ser uma das suas bandas favoritas.

A primeira, com a sua doçura, cativou a plateia com temas como “My Mother And I” ou a nostálgica “Night Shift”, oferecendo ainda um tema inédito que pediu para os fãs não gravarem.

Já os Big Thief foram relativamente amaldiçoados pela sobreposição de concertos, não tendo o público que poderiam ter numa outra ocasião; mesmo assim, o número de espectadores foi aumentando ao longo da atuação. A “brisa porreira” (dizia a vocalista) que se fez sentir no Palco SEAT soube bem a acompanhar as canções estranhamente reconfortantes, tocantes e sofridas da banda.

Mais tarde, os Snail Mail tocam no palco mais escondido do festival, mas nem isso impede que, às 20h30 em ponto, uma pequena enchente de pessoas rume entre as árvores para ouvir a honestidade desta banda tão jovem. Lindsey Jordan é a vocalista; com apenas 19 anos, o brilho nos olhos era evidente e, admite, ouvirem a sua música tão longe da sua casa “é algo surreal”. Brilho nos olhos equivale a brilho musical, num alinhamento imaculado embalado pela voz cândida de Lindsey.

Os Snail Mail atuaram no Palco Pull&Bear. Foto: Sofia Matos Silva

O concerto coincidiu com o primeiro aniversário do lançamento do primeiro álbum de estúdio da banda, “Lush”, no qual o concerto incidiu. Percorrem-se temas que facilmente levam a audiência numa viagem aos anos ’90 (o que parece ser um subtema escondido deste Primavera), como a intemporal “Pristine” ou “Heat Wave”. Houve ainda espaço para um final a solo, em que a vocalista cantou dois temas novos que pediu para não serem gravados, de uma emoção totalmente intimista.

A começar a atuação em cima do concerto dos Snail Mail, a contrastar com um grupo que está a dar os primeiros passos, uma das bandas de culto do indie americano. Guided By Voices têm uma carreira de quase 40 anos e Robert Pollard, o vocalista, tem aos 61 uma vivacidade rockeira invejável.

Guided by Voices Foto: Sofia Matos Silva

Entre o desfile de 36 canções, saídas das quase três dezenas de álbuns da banda, foram cantados clássicos como “Glad Girls” (que deixou o público aos saltos) e “Game of Pricks”, mas também os novos “Zeppelin Over China” ou “Space Gun”, por exemplo.

Os sons do Brasil trouxeram a festa

O tropicalismo brasileiro não se ficou pela atuação d’O Terno no início da tarde. Aliás, os próprios, que podem ser apontados como uma espécie de descendência desta sonoridade, dedicaram um tema ao que mais tarde viria fazer a plateia saltar de alegria.

Pelas 19h50, o Palco NOS estava livre para receber Jorge Ben Jor e os seus ritmos cativantes. Jorge, referência da música brasileira do século passado, trouxe uma animação impossível de recriar aos espectadores desde os primeiros segundos do primeiro tema tocado. Ao pôr do sol, o sorriso de Ben Jor nem fez parecer que tem 74 anos, tal é a energia.

Jorge Ben Jor trouxe a festa ao palco principal do Primavera. Foto: Sofia Matos Silva

Entre temas que passam a pente fino mais de 50 anos de carreira, a banda do artista põe mãos à obra para fazer o samba com máscaras de funk (o americano, não o moderno brasileiro) e de Música Popular Brasileira, com leves toques de reggae e, no fundo, de festa total. “Por Causa de Você Menina”, “Minha Menina”, ou “Quero Toda a Noite” foram ideais para aproveitar de bebida na mão e brisa na cara; ou mesmo saltar com “Umbabarauma”.

Malamente? Pelo contrário. Rosalía prometeu e cumpriu

Faltavam ainda vários minutos para o concerto mais aguardado da noite e o palco principal já estava completamente inundado. Chegar lá à frente era um desafio, mas ainda dava para escapar por entre a multidão. Uma vez tocado o primeiro acorde da introdução podia-se esquecer qualquer movimento. Ia começar a lição (quase) religiosa de Rosalía.

A espanhola, uma das artistas mais aclamadas dos últimos tempos, foi recebida com loucura pelos que  assistiram ao concerto. Gritos bem sonoros foram a primeira expressão desse entusiasmo, logo desde o início da atuação. Em alguns silêncios entre os temas (que foram poucos), declarações de amor ou da divindade da cantora ecoaram pela plateia, correspondidos por alguns “Porto, vos quiero mucho” da parte da própria.

Depois de uma introdução coreografada, soam os primeiros aplausos de “Pienso En Tu Mirá”, que ditam o que viria a ser o espetáculo da artista: o tradicional flamenco mistura-se com o pop e, por vezes, numa relação amorosa explícita com toques de reggaeton ou da eletrónica moderna. Assim canta Rosalía, que não se prende em rodeios na sua expressão musical.

O concerto de Rosalía era o mais esperado da terceira noite de festival. Foto: Sofia Matos Silva

Ao longo do concerto, predominam os temas do seu segundo álbum de estúdio, “El Mal Querer”, aquele que a lançou para o estrelato mundial pela mescla de estilos, influências e tudo o que se possa querer (bem, não mal) da catalã. No entanto, há espaço para alguns regressos ao passado; num bom português aproximado do galego, disse que estava “muito agradecida por estar aqui. De coração!” e exclama um “obrigado” sorridente, dizendo que quer “falar português. Quero voltar muitas vezes aqui para aprender este língua tão bonita” em jeito de antecipação de um momento singular.

Deixando de lado a produção flamenco-pop-chic das primeiras atuações ou o instrumental sentido de “Barefoot In The Park”, colaboração com James Blake (que atuou no mesmo palco na noite anterior), Rosalía deixa um presente: “para toda a minha gente que ouviu o ‘Los Angeles’ [o primeiro álbum de estúdio], esta canção é para vocês”. Estava na hora de “Catalina”.

Apenas acompanhada das palmas do seu coro totalmente feminino, interpreta um dos registos mais emocionantes do seu primeiro álbum, que difere em sonoridade do segundo – é mais cru, mais flamenco, mais despido –, mostrando a sua alta formação profissional no género musical, que estudou na Escola Superior de Música da Catalunha com um dos maiores professores do estilo, Chiqui de La Línea.

Entre flamenco e reggaeton, Rosalía eletrizou a plateia. Foto: Sofia Matos Silva

Para o final, guardou alguns dos seus maiores trunfos. “Con Altura”, uma das aventuras mais recentes de Rosalía pelas sonoridades mais quentes do reggaeton (sempre sem perder o seu toque especial, que só ela sabe entregar) e em colaboração com J Balvin, nome-maior do estilo que atuou na noite anterior no Primavera, fez a plateia ir aos extremos.

Antes do grande final, interpreta o novo single “Aute Cuture”, que serve de aperitivo para o tema mais aguardado da lista: “Malamente” ecoa pelo Parque da Cidade com a mesma frescura de sempre, sendo o clímax necessário para acabar o espetáculo em alta.

Rosalía representa uma mescla bem conseguida de sucesso e mérito. Moderna na sua tradicionalidade, íntima mas expansiva, sentimental e festiva, a espanhola protagonizou um dos concertos a recordar desta edição do NOS Primavera Sound. A forma como reagiu ao calor do público foi a retribuição perfeita de uma princesa pop que já tem a coroa a meio caminho.

Depois da explosão, um fim de noite em positivo

Logo depois da atuação quente de Rosalía no Palco NOS, no palco ao lado inicia-se um pesado e frio concerto dos Low, que, embora numa outra altura fosse que nem luva pelo seu avant-gardismo distorcido, não caiu bem depois da dose de energia que se vivera minutos atrás. A melhor opção para arrefecer o ambiente sem deixar de parte as boas energias estava no palco Pull&Bear, com a alma de Neneh Cherry.

Nascida na Suécia, toda ela é música – é enteada de um músico de jazz, esposa de outro e mãe de uma estrela pop em ascenção. O seu estilo musical junta todas estas sonoridades ao dance e ao hip-hop de temáticas feministas e à verbalização do estado do mundo. “Manchild” ou “7 Seconds” são êxitos antigos que cantou entre os mais recentes, como é o caso da ácida “Buffalo Stance”.

Neneh Cherry trouxe a sua alma ao palco mas escondido do Primavera. Foto: Sofia Matos Silva

Estava iniciado um estado de espírito que se prolongou de volta ao palco principal onde, meia hora depois do previsto no horário, entrou em cena Erykah Badu, que teve a segunda maior plateia da noite. Em vestes meio  tribais, Badu surge com um vestido verde, uma peça na cabeça feita de ramos de árvores e folhas a cobrir as mãos. Roupa que condiz com o seu espírito livre e transcendente, que incorpora na interpretação dos seus temas.

Num concerto que durou bem mais do que o previsto (e no qual não se deixou fotografar por nenhum dos meios de comunicação acreditados), a americana foi cantando e conversando com os espectadores de forma totalmente livre, como se tratasse de um concerto no palco mais pequeno do festival. Entre danças e onomatopeias, percorreu espirituosamente alguns dos maiores êxitos da sua carreira, com boa resposta do público à sonoridade soul dos seus temas.

Para fechar a noite em definitivo, haviam ainda algumas atuações para queimar as últimas energias no dia de despedida do festival. No palco escondido, o rapper norte-americano Mykki Blanco trouxe a subversão da sua música radical, dura e um tiro certeiro nos dilemas da atualidade. Descalço e chegando a descer para uma roda formada na plateia, olhou nos olhos quem o assistia para contar como não é fácil a vida para alguém transgénero e multi-género, abrindo as portas a uma discussão sobre a heteronormatividade da sociedade através de uma poesia lírica de faca na mão.

Mais tarde, o encerramento dos mais de 70 concertos que preencheram esta edição do Primavera Sound ficou a cargo de Nina Kraviz, que trouxe pelas 04h00 da manhã uma sessão tecno à moda russa, não se percebendo como foi deixado para tão tarde um concerto dado como um dos principais na noite em toda a propaganda do festival. Em êxtase, foi tempo de se sair para o frio da noite, com vontade de voltar a três dias que, apesar das críticas, se revelaram mais fortes e coesos do que inicialmente aparentavam.

O Primavera regressa em 2020 – já com uma confirmação

Ainda antes do término da oitava edição, que segundo números oficiais contou com mais de 75 mil pessoas no recinto ao longo dos três dias de festival, já era confirmada a nona. José Barreiro, diretor do NOS Primavera Sound, revelou à Lusa que a próxima edição se vai realizar nos dias 11, 12 e 13 de junho de 2020.

E já há uma confirmação para o próximo ano: Pavement voltará num “exclusivo mundial” – primeiro na versão espanhola e, logo a seguir, em Portugal. O ano 2020 vai também ficar marcado pela mais recente expansão do festival, desta vez para os Estados Unidos, com o Primavera Sound Los Angeles, que José Barreiro afirma poder vir a ter uma influência positiva “direta e indiretamente” na versão portuense.

O diretor do festival quer que o 9º Primavera “seja uma edição competente, que reflita todo o trabalho até agora, não só no recinto como em termos de programação. Queremos continuar a arriscar” depois da “edição mais difícil de sempre”, explicou Barreiro.

Artigo editado por Filipa Silva