Chama casa à pequena cidade de Tondela, mas nutre um carinho especial pelo Porto. Samuel Úria vasculhou a gaveta do repertório dos seus mais de dez anos de carreira, à procura do que de mais barulhento tem. O resultado foram os cinco concertos da série “Pés de Roque Enrole”, que aqueceram o MusicBox, em Lisboa, e os Maus Hábitos, no Porto.
Como surgiu a ideia de criar esta série de concertos?
A ideia veio a reboque das salas que foram programadas. Surgiu um convite do MusicBox e depois a coisa encavalitou-se para os Maus Hábitos. Como são clubes, e clubes no sentido da palavra de sítios onde se toca rock e se faz algum barulho, isso remontou aos tempos em que as minhas bandas tocavam nestes sítios e que tinham uma energia muito particular. Apesar de saber que me ia cansar e que ia ser um atentado à minha integridade física, fiquei feliz da vida com a oportunidade [risos].
O nome da série de concertos tem origem numa descrição de si, que afirma que é “meio-homem, meio-gospel, mãos de fado e pés de roque enrole”. Qual é a origem dessa descrição?
Por acaso, não tenho a certeza de quem é que escreveu isso. Foi num press-release que já tem quase dez anos e estava um amigo meu a brincar a dizer “agora fazes os pés de roque enrole, depois fazes a tour mãos de fado e andas assim a mostrar cada uma das características”. É um carapuço que eu enfio, porque a minha música é o reflexo daquilo que são os meus gostos de ouvinte. A minha coleção de discos é muito heterógenea e naturalmente a minha música também terá de ser.
Que música anda a ouvir nestes dias?
Pouca coisa, até porque estou a escrever canções para o próximo disco e prefiro resguardar-me um bocado. Mas há alguns discos que estão agora a despontar, como o disco novo do Nick Cave, o disco novo da Angel Olsen ou o disco novo da Brittany Howard.
Esse projeto novo de que fala é para breve?
De 2016 a 2020 são quatro anos e acho que já está na altura de lançar um álbum, até porque continuo a ser fã dos longa-duração, é o formato que eu mais gosto. Faz com que escreva canções que têm um lugar comum. Quando dou por mim, tenho um agregado de músicas que me permitem perceber qual era o meu estado de espírito naquele momento.
Qual é a “Grandiloquência do Roque Enrole”?
[Risos] É uma espécie de antítese. A grandiloquência do rock é tudo aquilo que não é habitualmente grandiloquente; as coisas mais rasteiras e primárias. Essa canção que eu escrevi já há muito tempo é muito agressiva e fala contra um adocicar do espírito rock ‘n’ roll. Eu não tenho nada contra música adocicada ou absurdamente planeada, mas faz-me falta o lado mais sanguinolento do rock ‘n’ roll.Bob Dylan e Elvis Presley são algumas influências que cita frequentemente. Essas influências tendem a ser norte-americanas ou anglo-saxónicas. O que significa para si cantar em português?
Apesar da maior parte dos artistas na minha geração pensarem de forma bilingue, eu continuo a pensar em português e a sonhar em português; há quem diga que essa é a diferença. Embora o português seja a língua que eu falo diariamente, é mais difícil de trabalhar e é uma língua que compromete. Quando se consegue vergar essa dificuldade, há um reconhecimento daquilo que se fez. As minhas referências são portadoras da cultura anglo-saxónica, e ao ser influenciado, vou também ser nessa entrega à minha língua e à cultura que me precede.
Associa-se sempre uma imagem irreverente e quase pretensiosa às estrelas rock. Já disse em entrevista que não se vê como uma vedeta. Acha que é uma estrela de rock improvável?
Talvez seja, mas não sei até que ponto é que se pode chamar estrela a uma pessoa como eu [risos]. Ando a fazer música de uma forma profissional há dez anos e sou regularmente abordado por pessoas mais jovens, mas nunca me aconteceu tanto como neste ano, em que fiz uma publicidade, e agora pessoas da idade dos meus pais dão-me os parabéns na rua. Tenho uma incapacidade natural para o vedetismo, às vezes, até tenho pena de não conseguir. Pode ter a ver com o meu contexto familiar ou com [o facto de] ter crescido numa cidade pequena do interior; teria de estar a travestir-me muito para deixar de ser uma pessoa naturalmente afável.
O Porto é uma cidade rock ‘n’ roll?
O Porto é uma cidade super rock ‘n’ roll. Aliás, o Porto traz-me muita nostalgia porque quando eu era miúdo passava aqui parte das minhas férias de verão. É uma cidade onde eu viveria com muita naturalidade. Nunca estive enamorado por uma cidade que não tivesse o seu quê de rock ‘n’ roll. O Porto tem um património também muito forte de bandas que eu cresci a ouvir e a cena musical do Porto, até por ter sido sempre separada do que se fazia em Lisboa ou em Coimbra, é tremendamente fixe.
Uma das bandas portuenses mais conhecidas são os GNR. Como surgiu a ideia de incluir o Jorge Romão nos concertos?
Ia rir se há 20 anos me contassem que isto ia acontecer. Estávamos no Paredes de Coura e é o Romão que se vem apresentar e o meu guitarrista Jonatas disse: “Ó Romão, porque é que não vens tocar connosco quando formos ao Porto?” e ele disse que sim. Nós não temos cachet, somos uns pobretanas, e quando estes concertos foram anunciados, recebo uma chamada dele a dizer “Como é que é, querem ou não querem?”. Foi mesmo um querido, com uma disponibilidade muito grande para se juntar a esta malta desgrenhada.
Ainda se revê nas músicas d’As Velhas Glórias, já com dez ou 15 anos?
Sim, até porque sou muito sincero naquilo que estou a escrever. Também sou críptico, para não abrir a gabardine e mostrar a minha nudez total, então, ponho alguns biombos que desviem as letras da literalidade. Isso ajuda a que coisas com as quais não tenho contacto há muito tempo possam ser renovadas; posso aproveitar os subtextos para experiências mais recentes. Assim, não me canso das canções e toco-as com um espírito renovado.
Fala-se da morte do rock. Acha que é verdade?
Fala-se da morte do rock ‘n’ roll desde os anos 60 [risos]. É muito fixe que continue a falar-se, porque é muitas vezes o espírito de rebeldia de quem quer provar que isso não é verdade que o revalida. O rock ‘n’ roll não está morto. A sua vitalidade felizmente continua a estar dependente dos rumores da sua morte, que continuam a ser exagerados e ainda bem, porque obriga os cultores a também fazeram-no de uma forma exagerada.
É muitas vezes descrito como o melhor cantautor da sua geração na música portuguesa. Como vê o seu papel na música portuguesa?
[Risos] Isso são pessoas pagas pela minha editora. Sem falsas modéstias, tenho a felicidade de ter integrado de forma não-intencional uma renovação do pop-rock que voltou a cantar em português. Não tenho nada contra quem canta em inglês, mas é fixe perceber que alguma vitalidade teve a ver com a língua. É uma responsabilidade ingrata quando percebo que há malta que foi influenciada, mas que não está a tratar o português bem. Quando dizem “graças a ti existe isto”, fico muito feliz pelas bandas da cena onde estava eu, o Fachada, ou o Jorge Cruz.Já disse que na igreja se apaga a voz individual e que se valoriza mais o grupo. Isso reflete-se na música que faz?
Muito. Tem de haver a participação de todos, quase como se o concerto fosse uma liturgia, e do público também. Não sou a pessoa mais chata a dizer “palminhas, vá”, mas os concertos ao vivo são uma celebração, e se o são, são uma coisa em que existem papéis diferentes com uma identidade comunitária. É claro que sou portador das minhas próprias palavras e tenho de dar o corpo ao manifesto, mas gosto que o concerto se torne uma experiência em que há uma massa de gente a andar ao sabor dos repelões. Quando pressinto que consegui extinguir-me, fico feliz da vida e a pensar que valeu a pena.
Artigo editado por Filipa Silva