Com o uso pouco sustentável da água, as previsões que apontam para 10 mil milhões de habitantes em 2050 e o desafio das alterações climáticas, o futuro da alimentação adivinha-se, no mínimo, complexo. Foi dele que se falou a 15 de outubro, na Galeria da Biodiversidade, no Porto, na conferência “O que comer?” que marcou o arranque do Mês da Ciência e Educação, da Fundação Francisco Manuel dos Santos.

Sónia Negrão, especialista em genómica e melhoramento das plantas, recordou aos presentes que as primeiras grandes civilizações surgiram com o inicio da agricultura, no chamado crescente fértil, atual Médio Oriente. “Foi lá que se domesticou uma das plantas mais importantes para a Humanidade: o trigo”, explicou. Na Ásia, o mesmo aconteceu com o arroz, nas Américas com a batata, na Europa com as couves e as leguminosas.

A verdade é que muitas das plantas que existem hoje são o fruto de milénios de domesticação, casos da cenoura ou do milho. “O antepassado do milho é o teosinte. Com uma espiga pequena, a parte comestível era também pequena e foi através do melhoramento que a planta mudou”, acrescentou a docente da University College Dublin.

Sónia Negrão é professora na Univresity College Dublin.

Sónia Negrão é professora na Univresity College Dublin. Foto: Felícia Oliveira

Não havendo laboratórios nem tecnologia há milhares de anos, essa domesticação era feita de outra forma. Sónia Negrão explica que “visualmente selecionamos as melhores” plantas de milho, em que “o grão não caía”, que tinham “o sabor mais agradável ou “que tinham uma casca mais fina”. Mais tarde, começaram também os cruzamentos artificiais, quando percebemos “que também podemos fazer de abelhas”.

A grande inovação surgiu com o uso de raios X e raios gama para fazer mutações e promover a diversidade genética, um “tesouro” que “nos dá a possibilidade de descobrir novas mutações que estão na natureza e que nos podem trazer resistência a uma doença, uma tolerância maior ao calor”, entre outras coisas, como explica a investigadora.

Esta diversidade é tão valiosa que foi uma espécie de “cofre do apocalipse” onde estão depositadas sementes das nossas colheitas básicas. “Assim se acontecer alguma desgraça, se houver uma bomba nuclear, nós temos sementes para voltar a plantar. Todos os países enviaram recursos genéticos para lá, incluindo Portugal”, revela.

Quanto ao futuro, a docente na University College Dublin considera que “nem tudo é mau”. “O que estamos a ver agora é uma evolução técnica”, reflete. “Por exemplo, a agricultura vertical feita em armazéns com condições de temperatura e luz controladas” pode ajudar. “Podemos também utilizar transgénicos, a edição de genoma, usar a Inteligência Artifical para determinar se vai haver alguma doença no futuro ou o melhoramento acelerado”.

Este melhoramento acelerado baseia-se em dados da NASA, em que cientistas conseguiram produzir trigo, da semente à espiga, em 60 dias. “Em vez de quatro a cinco meses para ter espiga, passamos a ter em dois meses, através do controlo da luz e da temperatura. Em vez dos ciclos normais de luz, estas plantas têm uma luz LED com uma radiação diferente e têm 22 horas de luz, quase não dormem”, explica.

A fortificação artificial

Marta Vasconcelos, docente na Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica do Porto e especialista na genética das plantas, mostra-se preocupada com o impacto das alterações climáticas. “Em 1960, tínhamos 200 partes por milhão de CO2 no ar que respiramos, hoje em dia temos 420 partes por milhão e daqui a 30 anos vamos estar nas 600 partes por milhão. Este CO2 está a diminuir o valor nutricional dos alimentos”, começa.

Marta Vasconcelos é docente e investigadora na Escola Superior de Biotecnologia da Católica.

Marta Vasconcelos é docente e investigadora na Escola Superior de Biotecnologia da Católica. Foto: Felícia Oliveira

E como se pode melhorar o valor nutricional dos alimentos? “Um dos métodos é a fortificação artificial. Muitos de nós aqui já comemos cereais de pequeno-almoço que nos dão 50% da dose diária de ferro recomendada. Mas não é sustentável estarmos a adicionar suplementos químicos de cada vez que estamos a produzir cereais”, explica a investigadora da Católica.

A diversidade genética é outra opção, mas “a variedade genética por si mesma tem um teto máximo onde conseguimos chegar e temos de ser mais enegenhosos”. “A última estratégia é o melhoramento genético, que pode ser alcançado através de cruzamentos convencionais ou através da transformação genética. Imaginem que há um gene responsável pela absorção do ferro pela raiz, podemos fazer com que aquele gene se expresse em maior quantidade”, exemplifica.

Marta Vasconcelos considera benéfica a redução do consumo de proteína animal, apesar de entender que comer proteína vegetal “nem sempre é apelativo”. A ciência tem vindo a trabalhar para produzir alimentos de base vegetal que sejam mais deliciosos. Uma das respostas está nas leguminosas, que têm quatro vantagens: são ricas em proteína, conseguem melhorar a qualidade do solo, têm um tempo de prateleira excelente e têm outras vantagens nutricionais, como por exemplo, fibras”, explica. Alguns exemplos destas alternativas são as plantcakes (panquecas feitas à base de farinha e de lentilha) ou hamburgers de base vegetariana.

Com tanta inovação e alterações genéticas aos alimentos, é necessária a realização de testes de segurança. E é isso que Sofia Leite, formada em Bioquímica na Universidade de Lisboa, faz. Atualmente, trabalha como investigadora no Joint Research Center da Comissão Europeia, onde integra a unidade de segurança química e métodos alternativos.

Antes de chegarem ao prato, os alimentos estão expostos a vários produtos, que são testados ao nível da toxicidade produtiva, aguda ou repetitiva. “A maior parte destes testes é feito em animais, em roedores, em ratos e ratinhos. Os mais próximos geneticamente são o rato e o humano, não o rato e o ratinho”, começa por dizer a especialista. Apesar de serem considerados “primos” dos humanos, os chimpanzés não são os animais ideais para os testes. “Geneticamente só diferimos 2%, mas na verdade os genes são só o código, as proteínas é que fazem o trabalho. A nível da proteína nós diferimos dos chimpanzés em 80%”, acrescenta.

Sofia Leite é especialista em cultura de células animais.

Sofia Leite é especialista em cultura de células animais. Foto: Felícia Oliveira

Apesar de trabalhar numa unidade dedicada aos métodos alternativos e tendo em conta as maiores preocupações com os direitos dos animais, Sofia Leite explica que “não é que haja um modelo alternativo ao teste animal, há sim uma estratégia de combinação de modelos e métodos”. “Algumas formas são o cultivo de células animais em laboratório, o uso de bases de dados para tentar testar o metabolismo humano ou o processamento através de estudos mecanísticos. Com isto tudo vamos construir o puzzle de prevenção humana e conseguirmos chegar ao conhecimento verdadeiro do que estes efeitos são nas pessoas”, revela.

Uma das possíveis inovações é a criação de chips com células humanas que reproduzem as funções dos órgãos humanos, que tornariam desnecessário o uso de ratos para testar os efeitos dos alimentos. “Isto usa-se para se poder testar em laboratório o efeito que os compostos teriam nos verdadeiros órgãos humanos. Se além disto, conseguirmos aliar outros tipos de estudos que tentam perceber quando um composto entra no nosso organismo, em que parte se aloja e a toxicidade que pode haver, assim conseguiríamos uma Sophia, como aquele robô que nos visitou há uns tempos, que fosse fisiológica e para testes”, explica Sofia.

Há também a possibilidade de se criar produtos de origem animal em laboratório. Um exemplo disso é a carne artificial, criada a partir de células de vaca. “Não precisavamos de ter as vacas nem a agricultura para as alimentar e podíamos ter uma forma mais segura de saber o que estavamos a comer, porque estava tudo em laboratório. A ciência tem aprendido muito com os testes animais, chegou é o momento de introduzir outras tecnologias para perceber melhor o humano”, conclui.

O debate que envolve os organismos geneticamente modificados também é polémico, desde quem os considera como o futuro da agricultura, até quem tema que possa haver riscos associados às alterações. Sónia Negrão considera que “todos nós temos medo do que desconhecemos”. “O agente transportador usado nos geneticamente modificados é uma bactéria chamada agrobacterium e foi identificada porque na natureza infeta a planta com o seu material genético, para a planta produzir o que ela quer. Saiu há uns dias um estudo a mostrar que a disseminação desta bactéria é incrível, por isso, há milhares de anos que comemos OGMs sem sabermos”, remata.

O ciclo de conferências do Mês da Ciência e Educação, comissariado por Carlos Fiolhais e David Marçal – moderador da conferência do Porto – vai prolongar-se até 16 de novembro com eventos em cinco cidades do país, sempre com a participação de especialistas nacionais e internacionais. Esta terça-feira, em Coimbra vai debater-se “Como a genética conta a nossa grande história humana” com Eugénia Cunha, antropóloga da Universidade de Coimbra e autoria do livro “Como Nos Tornámos Humanos”; Luísa Pereira, investigadora do i3S e especialista em genética populacional humana e Svante Pääbo, biólogo sueco especializado em genética evolutiva.

Artigo editado por Filipa Silva