Grande Prémio Internacional no Festival de Lille de 2009, Melhor Filme da Competição Portuguesa do DocLisboa de 2016 ou Melhor Filme no Prado Ljudski Film Festival em 2016. Estes são apenas alguns dos prémios que a cineasta Cláudia Varejão tem colecionado ao longo dos anos, com curtas e longas-metragens que realizou. E a todos estes reconhecimentos, a realizadora pode juntar mais um: ser a artista convidada da oitava edição do Family Film Project (FFP), que terminou no sábado.
Cláudia Varejão mostra-se grata pelo convite “extremamente gentil” da organização. “Tenho um enorme apreço pela Né Barros [codiretora do Family Film Project] e pelo trabalho que tem desenvolvido neste festival”, confessa. É um evento “importante para o Porto”, que é “uma cidade de cinema e de cineastas” e tem que “retomar esse ritmo que teve em décadas passadas”.
Porto esse onde nasceu e cresceu, e que está presente na sua arte “indiretamente”. “Os lugares de onde vimos e por onde passamos ficam connosco, então, isso talvez seja reconhecível de alguma forma que não é imediata, talvez na relação com o tempo ou na relação com as pessoas também”, afirma.
A verdade é que ser cineasta nem sempre foi o seu sonho, tendo surgido de forma “menos ortodoxa”. Começou por estudar Educação Física, mas a paixão pelo cinema falou mais alto. “Talvez não ter atravessado um período mais académico ligado ao cinema, não ter desconstruído tanto o cinema dos outros, não ter sofrido tanto com a angústia do que poderia vir a ser, me tenha feito desenvolver uma forma de trabalhar um bocadinho distinta”, reflete na entrevista ao JPN.
As ideias para os filmes surgem sempre de maneira diferente. “Cada filme é um filme”, começa, “e nesse sentido cada forma de encontrar a ideia é distinta”. Confessa que não tem um método nem que é “muito criativa no sentido de ter muitas ideias”. “Sou uma pessoa muito trabalhadora e que faz grande trabalho de investigação e em campo, mas não vivo com um bloco de notas cheio de ideias. Sonho muito, e muitas das coisas que faço estão ligadas ao sonhos e às imagens, essas sim, muito espontâneas e também do foro do inconsciente”.
O silêncio é uma das características distintas nos seus trabalhos e a cineasta afirma que é algo que “faz falta na vida, não só no cinema”. “Acho que nos faz falta a todos não vivermos tão dependentes da palavra, porque há muitas camadas de comunicação que são menos trabalhadas”, defende. E sendo o cinema “um espelho da vida”, é preciso “mergulhar noutras atmosferas de relação”.
As relações familiares são também retratadas frequentemente nas suas obras. As suas curtas “Um Dia Frio”, “Fim-de-semana” e “Luz da manhã” foram mostradas no Passos Manuel, a 18 de outubro, num ciclo integrado no FFP. “Acho que comecei por retratar as famílias porque são o contexto em que vivi, mas o que me interessa em rigor são as pessoas. Calhou da experiência inicialmente ser feita com famílias, mas não é o contexto familiar que maisme interessa”, confessa. Contudo, os laços de família são “ricos dramaticamente”, porque são “uma espécie do espelho do mundo, onde encontramos uma visão macro e micro do comportamento humano, desde os conflitos até aos afetos mais de proximidade”.
O documentário “Ama-San” é um dos seus trabalhos com mais notoriedade. Conta a história das mulheres japonesas que mergulham em busca de pérolas, ouriços-do-mar ou haliotes, apenas com o fôlego natural nos pulmões.
A realizadora interessou-se por esta realidade devido à sua “relação muito próxima com o mar e com a água”. “Acho que cinema geralmente vai ao [encontro do] interesse dos autores. Nado desde pequenina e fiz natação de competição. A água, não de uma forma poética, mas de uma forma muito quotidiana, fazia parte da minha vida. Às vezes, as pessoas dizem ‘Ah, mas os teus filmes têm tanta água. O que é que tu queres dizer?’; não quero dizer nada, é mesmo um contexto próximo de mim”, explica.
Descobriu estas mulheres num livro de poesia e identificou-se imediatamente. “Pensei que podia ser eu se tivesse nascido num contexto rural, muito provavelmente teria a curiosidade de experimentar, portanto, tive muita curiosidade de as conhecer.” O contexto cultural japonês também é “aliciante”, ainda para mais “numa sociedade tão patriarcal como o Japão”. “Estas mulheres, ao longo das últimas décadas, tornaram-se independentes dos homens e e isso era extremamente revelador para mim da capacidade mais silenciosa das mulheres de encontrar o seu lugar e a sua identidade”, afirma.
Outro dos seus trabalhos exibidos no Family Film Project foi “No Escuro do Cinema Descalço os Sapatos”, que retrata o dia a dia da Companhia Nacional de Bailado.
A ideia partiu da própria companhia e da então diretora Luísa Taveira. “Creio que [Luísa Taveira] estaria a chegar ao final do mandato e queria deixar memória, não memória do trabalho dela, mas do trabalho da companhia que ela acompanhava quotidianamente”. O desafio veio com carta branca, que é “o sonho de qualquer realizador”, mas também “um susto”.
“É um sonho e também um susto porque a liberdade não tem fim, e aquilo que não tem fim dá medo. Foi um trabalho muito difícil, não conseguia filmá-los, não conseguia acompanhá-los, não percebia nada. Mas, no fim, o resultado deixa-me muito contente, gosto muito daquele objeto e é muito sincero, no sentido em que havia tanta dificuldade que o olhar é um retrato de uma descoberta”, conta.
O seu repertório já conta com curtas e longas, mas não há grande preferência por um dos formatos. “Faço sempre da mesma forma, seja uma corrida longa ou curta. A intensidade é a mesma. Gosto de trabalhos que duram no tempo, e nesse sentido as longas dão-me mais possibilidade de ir mais longe, mas não é uma preferência. O sofrimento é o mesmo, a carga de trabalho é a mesma coisa”, explica.
As suas inspirações são “as pessoas anónimas” à sua volta. “Os artistas também, na medida de serem seres humanos que são livres e singulares, que apesar de sofrerem saem um bocadinho da norma. Essas pessoas, sejam artistas ou sejam anónimos, são quem me inspira muitíssimo”.
Os cineastas portugueses também deixam a sua marca. “É ingrato referir-me a um só, mas posso contar a primeira vez que vi um filme português e que fiquei a pensar ‘O que é isto?’, que foi aqui no Porto. Devia ter 13 ou 14 anos, acho que foi na Casa das Artes e foi o “Vale Abraão” do Manoel de Oliveira. Lembro-me de estar o tempo todo sem perceber absolutamente nada e cheia de questões sobre o que é que ele queria dizer. Na altura, associei o não entender a não gostar, o que não quer dizer que assim seja. Quando as coisas ficam connosco, não se prende com o gosto, prende-se com a intimidade e o reconhecimento de algo.”
E sobre o seu papel no cinema português? Cláudia Varejão não acha que o cinema português “esteja revitalizado” porque “sempre foi extremamente forte e comunicativo”.
“Vivemos num contexto histórico que tem canais de difusão imensos, portanto, o cinema português pode chegar a mais pessoas, mas não é verdade que esteja mais saudável, eu arrisco até dizer, e isto pode ser controverso, que o cinema português está menos arriscado”, sublinha ao JPN.
A cineasta considera que “tivemos autores que tinham menos referências e que filmavam menos”, portanto, “na bagagem mais reduzida, eram mais arriscados”. “Gostava de poder dizer que me enquadro nos que arriscam. Tenho um bocadinho dos dois, porque também sou fruto do momento histórico que vivemos, mas faço parte da geração da transição. Vivo numa esquizofrenia entre precisar de ir para o campo e gostar da energia da cidade, entre fazer filmes muito lentos e com muita pesquisa, ou filmes muito reativos. Eu vivo num limbo, é aqui que me enquadro”, remata.
Artigo editado por Filipa Silva