“Quando eu nasci, a minha mãe morreu, porque houve uma complicação durante a gravidez. Eu estive um mês na incubadora e, a seguir, fui viver com os meus tios, com quem estou até hoje. Com poucos meses de vida descobriram que tinha paralisia cerebral, que, no meu caso, afetava a parte do cérebro que comanda a parte motora”.
A história de Isabel Calheiros começou sob o signo do infortúnio, mas a jovem de 19 anos faz questão de a contar “com um sorriso na cara“. Para ela, que hoje se desloca com a ajuda de uma scooter de mobilidade, é assim que a deficiência deve ser abordada: “Dizem que se repetirmos muitas vezes uma coisa, ela torna-se um hábito. Então, eu penso que se falar muitas vezes sobre a minha deficiência, isso vai tornar-se um hábito”, diz em entrevista ao JPN.
A estudante considera-se mesmo uma “sortuda” por estar rodeada de pessoas, que funcionam como “guarda-costas” e que a ajudam a encarar a incapacidade motora com naturalidade. “Na minha família, não deixamos que nada nos abale. Somos muitos e temos sempre o apoio uns dos outros”, conta.
O nome “Isabel” e o diminutivo “Cuca” foram herdados da mãe. “Quando a minha mãe nasceu, a irmã mais velha dela foi ao Fontelo, uma mata muito conhecida em Viseu, e ouviu um cuco a cantar. Estava a brincar com o pai e começou a dizer “cuco-cuco” e, quando chegou a casa virou-se para a irmã mais nova, a minha mãe, e disse: “meu cuquinho”. Desde essa altura que a minha mãe ficou conhecida por Cuca. Agora, eu também”, partilha.
Mundo Inclusivo “na maioria das vezes”
Ao falarmos de mobilidade reduzida, falamos de uma necessidade imperiosa de um mundo inclusivo para pessoas com deficiência. É com boa disposição e humor que Cuca diz que o mundo é “na maioria das vezes” inclusivo com ela, mas não sempre. “As pessoas olham muito. Já tive alguns episódios engraçados em que as pessoas não paravam de olhar e eu fiz caretas, perdi a paciência. Mas acho que a curiosidade faz parte, principalmente nas crianças. Elas perguntam o que é que eu tenho nas pernas e eu digo que tenho um problema, que não me deixa caminhar muito bem”.
Apesar da fisioterapia e da sua luta para superar o problema, Cuca não possui autonomia nas deslocações e a scooter de mobilidade tornou-se a sua “companheira” e o seu meio de transporte. A inclusão de pessoas com deficiência, para Isabel, passa pela normalização do problema junto das crianças. “Tenho dois sobrinhos e o mais velho vai para a escola e diz aos colegas que o meio de transporte da tia é uma cadeira de rodas. Se queremos trabalhar para a inclusão temos de trabalhar, primeiro, as crianças. Ter crianças a quem consigo explicar o que se passa é uma bênção”.
Isabel tem uma forte ligação à natureza e consciência ambiental, que pretende partilhar com os outros. Conta-nos que tem um gosto especial por pássaros, em concreto, por cucos. A preocupação pelo ambiente surge da urgência de cuidar do planeta e de cultivar um mundo inclusivo. “Se a natureza cuida bem de nós, também devemos cuidar bem dela. Acho que é importante que vivamos num mundo inclusivo e, quando digo inclusivo, não é só para as pessoas com deficiência, mas para toda a gente”.
Desafios do dia a dia
Viver com a mobilidade reduzida, no dia a dia, é um desafio. Foi este ano, na Comic Con, em Lisboa, que Cuca foi pela primeira vez sozinha a um evento de grande dimensão. “Foi uma experiência enriquecedora a todos os níveis. Ultimamente tenho gostado de me aventurar sozinha e tem corrido muito bem”, afirma. No entanto, ainda há muito a melhorar ao nível da acessibilidade para deficientes, em eventos como este.
Para Cuca, os acessos às casas de banho foram o “ponto fraco” na Comic Con. “Eu consegui usar a prioridade para assistir e estar presente em sítios que não conseguia de outra forma. Mas as casas de banho eram impossíveis. Olhei para elas e pensei ‘isto não vai acontecer’ e esperei para ir em casa. O tempo de espera nas filas estava horrível. Usei a prioridade e fiquei à espera que me chamassem para um painel, mas não me deixaram entrar. Fiquei desanimada, mas já estava à espera disto. Nesse momento, veio uma pessoa do staff ter comigo e disse: ‘Eu deixo-te entrar pela porta VIP’ e eu fui. As pessoas são muito simpáticas, na maioria das vezes”, nota. Cuca acredita na bondade das pessoas que a rodeiam e a ajudam a enfrentar os desafios do dia-a-dia, mas procura tornar-se mais independente e anseia por melhores infraestruturas para pessoas com deficiência.
Escola inclusiva
Isabel estuda Comunicação Social em Viseu, mas esta não foi a sua primeira opção. O objetivo era Lisboa, mas os problemas associados à acessibilidade nas grandes cidades fê-la ponderar: “Não fui estudar para fora porque Viseu é uma cidade bastante inclusiva. Quando eu falo em ser inclusivo, falo do facto de Viseu ter quase todos os passeios rebaixados e de se preocupar em ter bastantes acessibilidades para pessoas com deficiência. Se eu não fui estudar para Lisboa, foi porque eu não podia andar 10 metros sem pedir ajuda a alguém. É frustrante ter de abdicar de um sonho de infância. Via os meus irmãos a ir estudar para fora e eu queria ir também”, desabafa.
“É um bocado esta visão utópica de uma escola inclusiva”. Cuca admite que a inclusão, ao nível do Ensino Superior ainda tem um longo caminho a percorrer. “O problema é acreditar que já está tudo muito bem, mas não está. Há muito a fazer. Eu tenho uma sala na minha escola que é cá fora e tem degraus. Eu tinha duas aulas lá e tive de pedir aos professores para mudarem a sala, porque eu não estava para ir ao colo dos meus colegas. Se for preciso, recuso-me a entrar numa sala de aula por não ter acessibilidade”, afirma.
O problema da acessibilidade em escolas e faculdades implica uma redução de opções de escolha e da dignificação dos alunos com deficiência. “Costumo brincar e dizer que todas as empresas de construção civil deviam ter alguém com deficiência a analisar as obras”. Isabel defende que, quando uma faculdade não tem condições para alunos com deficiência e mobilidade reduzida é “como se estivessem a cortar sonhos a pessoas” e apela à urgência de se pensar em passeios mais largos, diminuição de degraus e meios de acessibilidade a cadeiras de roda ou outros veículos de mobilidade.
“Apesar de Viseu não ter sido o meu curso de sonho, eu não sei bem o que é o meu curso de sonho. Portanto estou bem, estou integrada. O ideal seria estar incluída, mas eu sinto-me integrada. Integrada é estar dentro, mas estar à parte. Eu acho importante que as pessoas percebam a diferença”, resume.
Os “mil projetos” de Isabel
Embora a mobilidade reduzida tenha impedido Cuca de ir estudar para fora, foi em Viseu que descobriu que a sua deficiência não a impedia de dançar. “Um exemplo de inclusão é o grupo de dança onde eu ando: Dançando com a diferença. É o que mais gosto de fazer e tem-me ensinado muito. Nós temos todo o tipo de pessoas: com autismo, deficiência motora, visual, sem deficiência e é essa mistura que faz com que não se perceba quem é que tem deficiência e quem não tem”, diz.
Num mundo ideal, Isabel afirma que gostava de ter o Dançando com a diferença “transportado para a realidade”. A inclusão é a palavra de ordem dentro deste projeto de dança, dinamizado pelo Teatro Viriato. Quando era criança, Isabel sonhava ser bailarina. A paralisia cerebral, que lhe afeta os membros inferiores tornou esse sonho impossível. Quando entrou para o projeto, Cuca descobriu na dança uma paixão, através da qual aprende a conhecer-se a si própria e aos outros.
Para Cuca, “este tem sido um ano de surpresas”. Em janeiro, surgiu a oportunidade de participar no TEDx Viseu. A jovem confessa que aceitou a proposta “um bocadinho sem pensar”, mas que a Ted Talk foi um sucesso. Ainda este ano, Isabel foi à televisão para contar a sua história. “Acho que foi nessa altura que percebi que a minha mensagem poderia ter algum impacto”, recorda.
Cuca tem dado palestras para diferentes públicos e sobre diferentes temas. A mais recente foi sobre “Escola Inclusiva”: “É um tópico difícil, mas eu não gosto de dizer que não a nada”. Criar impacto social é um dos seus principais objetivos. “Quando eu falo da minha história, estou a passar a mensagem. Se a mensagem passar, as pessoas vão ficar com uma ideia que vai ser transmitida. É uma cadeia de pensamento que não acaba. É um ciclo vicioso e ainda bem, porque assim estamos todos em contacto”, reflete.
Para além das palestras, Cuca tem o podcast Friends Don’t Lie. O projeto surgiu da necessidade de dar voz aos pensamentos e chegar a mais pessoas: “Eu tinha um blog, mas apesar de gostar muito de escrever a minha escrita estava a ficar só para mim. Decidi que queria falar com as pessoas de uma forma mais próxima e mais pessoal”.
Isabel Calheiros diz que só há uma coisa que acha impossível realizar, devido à deficiência: ser atriz. A consciência da dificuldade do mundo da representação, aliada à mobilidade reduzida deixam Cuca com pouca esperança, quanto à hipótese de vir a ser atriz. “Sei que podia fazer o papel de pessoa com deficiência, mas isso não seria representar. Eu gostava de criar uma companhia de teatro que só tivesse pessoas com deficiência. Mas isso também não é inclusão. Incluir não é segregar. Não vale a pena falar sobre as coisas que não conseguimos fazer, se há tantos projetos onde podemos participar. Se não posso ser atriz de teatro, então que escreva teatro”.
Inclusão em Portugal
A disponibilização de um assistente pessoal para pessoas com incapacidade igual ou superior a 60% é um projeto-piloto, apoiado por uma medida do Governo. Cuca candidatou-se e conta com o apoio de Raquel, a sua assistente pessoal. “O Governo tem trabalhado bastante bem em termos de inclusão”, considera. “Temos uma secretária de Estado com uma incapacidade e isso ajuda a ir mais além. Quando surgiu este projeto-piloto, que irá até 2021 para já, tive de me candidatar. Espero que dure mais tempo, porque está a correr muito bem”, finaliza.
São 8 horas semanais, em que Isabel conta com a ajuda de uma assistente pessoal. O balanço é positivo. Cuca diz que consegue gerir melhor o tempo e que esta medida veio “libertar” os seus cuidadores. “Se eu estou a falar da minha liberdade, também é importante falar da liberdade de quem me cuida. Com a ajuda da minha assistente, quem cuida de mim consegue ter mais “espaço de manobra” e ajuda a despreocupá-los um bocadinho”.
Apesar de ser um processo lento, que implica fatores externos e sociais, para Isabel, Portugal está no caminho certo para a inclusão de pessoas com deficiência. “Acho que não se podem comparar países, porque cada país tem a sua realidade, tal como cada pessoa tem. Portanto, eu acho que o nosso país tem dado passinhos de bebé, mas também não tem andado para trás. Só isso, já é muito importante.”
Dar voz a pessoas com deficiência é dar voz à inclusão e Cuca tem algo a dizer: “Não sei bem o que estou a fazer neste mundo, mas quero deixar uma mensagem”.
“A inclusão não deve ser só a nível de pessoas com deficiência, mas ao nível de um planeta inteiro. Não há ninguém que possa dizer que não tem nada para melhorar em si. Temos de estar conscientes de que temos erros, mas também temos coisas únicas. Se é clichê? Sim, mas é verdade. Há sempre coisas boas nas coisas más e há sempre espaço para crescer”, conclui.
Artigo editado por Filipa Silva
Este artigo foi realizado no âmbito da disciplina TEJ II – Online