Depois da criação de uma unidade móvel em Lisboa em abril, foi a vez de, em junho, a Assembleia Municipal do Porto aprovar por unanimidade o financiamento de salas de consumo assistido na cidade.
À verba da autarquia, que deve rondar os 400 mil euros, espera-se que se acrescente um apoio do Estado, estando a Câmara Municipal do Porto (CMP) à espera da resposta do Ministério da Saúde a este propósito.
Fernando Paulo, vereador que detém a pasta da Coesão Social no Executivo liderado por Rui Moreira, aponta o dedo ao Governo e numa entrevista recente ao jornal “Público” sublinhou que “o Estado não pode constantemente demitir-se das suas responsabilidades”. “A toxicodependência é, em primeiro lugar, uma resposta de saúde e social. Quem tem responsabilidades de saúde neste país é o Ministério da Saúde. A tutela destas salas deve ser do Ministério”, explicou.
A questão entrou na ordem do dia sobretudo depois da demolição do que restava do Bairro do Aleixo, iniciada em junho. O consumo de droga a céu aberto alastrou para outras zonas da cidade e reacendeu o debate sobre a problemática.
O presidente da CMP, Rui Moreira, já se pronunciou várias vezes sobre a situação, e defende que o consumo perto de escolas deve ser novamente criminalizado. “Há uma coisa chamado atentado ao pudor. Nós podemos ter relações sexuais nos vários sítios que queremos, pelo menos em casa, num sítio privado. Mas não vamos ter à porta de uma escola. Há coisas que não se fazem à porta de uma escola”, defendeu em entrevista à TSF/DN.
Salas especializadas, integradas e móveis
Complicações políticas à parte, a criação das chamadas “salas de chuto” está prevista na lei desde 2001, o mesmo ano em que Portugal adotou a política pioneira a nível internacional de descriminalização do consumo.
Mas as primeiras salas na Europa são anteriores. Ana Sofia Aguiar, investigadora no Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP) e estudante do Doutoramento em Saúde Pública, explica que devido à epidemia do consumo de drogas injetáveis nos anos 80, percebeu-se que “era necessária uma resposta que reduzisse os riscos e a incidência do VIH associada à partilha de seringas entre os consumidores”.
“A primeira sala de consumo assistido surge em 1986, em Berna, na Suíça. Desde então, já existem mais de 90 salas de consumo espalhadas pela Europa”, refere ao JPN.
Só na Suíça existem agora 12 instalações, sendo que há também salas na Alemanha, nos Países Baixos, em Espanha, na Noruega, no Luxemburgo, na Dinamarca, na Grécia e em França. Os objetivos são “prestar cuidados de saúde na tentativa de diminuir a mortalidade associada ao consumo, nomeadamente por overdose”, afirma.
Há três tipos de salas: as especializadas, as integradas e as móveis. As integradas “são as mais comuns na Europa”, onde “também há balneários, apoios de alimentação ou monetários”; já nas especializadas a assistência é mais especificamente virada para as drogas, pois está dirtamente relacionada com o consumo assistido; as móveis operam “num formato mais pequeno, que permite o movimento por diversas zonas da cidade onde o consumo possa ser mais problemático”.
O público-alvo tem também vindo mudar com as tendências do consumo. “Estas salas são pensadas para os consumidores de alto risco, que normalmente consomem a céu aberto de forma apressada e sem condições de higiene”, explica Ana Sofia Aguiar. Os espaços foram inicialmente criados tendo em vista as drogas injetáveis, mas o aumento do consumo de droga fumada e inalada tem exigido uma adaptação à nova realidade.
“Ao criarmos as salas, o consumidor tem uma vida mais digna”
O apoio dado nas salas estende-se desde o material ao psicológico. “Pretende-se que a pessoa tenha acesso a toda uma educação para a saúde e para a minimização de riscos no que diz respeito ao consumo. Por exemplo, ao fornecermos informação sobre a forma mais correta de consumir, os locais mais corretos para injetar ou até informação relativamente ao tipo de droga que consome. Pretende-se que as pessoas se eduquem”, afirma a investigadora do ISPUP.
A ajuda também pode ser feita ao nível da alimentação, do acesso a cuidados de saúde formais ou mais social, por exemplo, através da ligação de pessoas em situação de sem-abrigo a “redes sociais para voltar a ter uma habitação”: “O objetivo é pegar numa pessoa mais desestruturada do ponto de vista social e muni-la de todos os conhecimentos para que possa um dia decidir deixar o consumo, ou então acompanhá-la para que possa fazer os consumos mais adequados possíveis”, remata.
Para assistir os toxicodependentes nas salas de chuto, há equipas de médicos e enfermeiros e também os educadores de pares, que “são ou já foram consumidores de droga e que podem estar a ajudar neste processo de mediação”. Também assistentes sociais e os gestores da sala se incluem nos profissionais que fornecem a ajuda.
Mas o problema das drogas não diz apenas respeito aos consumidores e é um problema de saúde pública. “Há bairros aqui no Porto devidamente sinalizados onde o consumo é feito a céu aberto à porta de qualquer pessoa comum. Ao criarmos as salas, retiramos estas pessoas destes ambientes, que não são benéficos para eles enquanto consumidores, nem para as famílias que habitam naquele ambiente”, defende.
As salas criam também “uma sensibilização relativamente à pessoa que está do outro lado” e ajudam a que “o consumidor de droga tenha uma vida mais digna”.
Ainda não existem salas no Porto e a unidade móvel em Lisboa é ainda muito recente, mas já há dados sobre a eficácia das salas noutros países.
Há bairros aqui no Porto devidamente sinalizados onde o consumo é feito a céu aberto à porta de qualquer pessoa comum. Ao criarmos as salas, retiramos estas pessoas destes ambientes
“Existem imensos artigos científicos publicados que mostram que, efetivamente, os consumidores gostam de estar nesse ambiente, porque aprendem muitas coisas relativamente ao consumo. O que os estudos mostram é que o número de overdoses tem vindo a diminuir ao longo dos anos, em parte também devido às salas de consumo assistido, porque se um utente numa sala começa a ter um síndrome associado a uma overdose, os técnicos são capazes de a reverter em tempo útil”, esclarece Ana Sofia Aguiar.
“Não há relatos de aumentos de criminalidade nas zonas onde as salas são estabelecidas, pelo contrário, as pessoas vivem a vida normalmente e os consumidores têm um acesso ao apoio que precisam”, conclui.
Artigo editado por Filipa Silva