Contar a História de Portugal a partir da cama. Foi no que se aventurou Joaquim Vieira, jornalista, ensaísta e documentarista, em “História Libidinosa de Portugal” – um livro lançado em novembro do ano passado. Em conversa com o JPN, o autor descreve o livro como um reflexo do comportamento humano, mais do que de um país.

A obra percorre nove séculos: desde a formação do Condado Portucalense, até aos nossos dias. Com as primeiras origens na “bastardia”, Portugal segue um caminho marcado pelo adultério e desentendimentos entre filhos bastardos e legítimos.

Se no tempo dos Reis, as relações sexuais asseguravam a sucessão dinástica, no contexto da República, o sexo perde importância para o regime. A relação é, hoje, menos evidente, mas o sexo e o poder parecem continuar de mãos dadas.

JPN: Como surgiu a ideia de escrever a “História Libidinosa de Portugal”?

Joaquim Vieira: A ideia surgiu por causa de um outro livro que eu fiz sobre História de Portugal, há uns cinco anos. Tive que estudar toda a História de Portugal e reparei, na altura, que o sexo tinha muita influência nos acontecimentos históricos, ao longo dos séculos. E, então, achei interessante abordar justamente a História de Portugal através do sexo.

O que é que esta análise nos diz sobre Portugal?

Bom, não diz muito sobre Portugal; diz sobre o comportamento humano, de uma forma geral. Eu acho que o papel do sexo na História, sobretudo em regime monárquico – que é um regime dinástico – e, portanto, passa de pais para filhos. A questão das descendências tem muita importância e, nesse tipo de regime, o sexo acaba por ser determinante. Se nós mudarmos para o regime republicano, a importância já não é tão grande, porque aí a questão da chefia do Estado já não é determinada pelo sexo, ou pela sucessão familiar. Apesar de tudo, mesmo em República, há histórias curiosas relacionadas com o sexo e o poder. Portanto, eu acabei por estender este livro praticamente até à atualidade, recolhendo histórias de vários regimes em que o ponto comum é, justamente, o relacionamento sexual.

A primeira história faz-nos recuar 900 anos, até à formação do Condado Portucalense. Inevitavelmente, as primeiras histórias são menos detalhadas e menos seguras. É mais fácil, hoje, saber-se de escândalos sexuais ou relações amorosas das figuras políticas? Ou seja, o acesso à informação que é mais fácil, ou só aparenta ser?

Eu acho que o acesso à informação, hoje em dia, é mais fácil. Até porque, antigamente, não havia jornalistas, não havia jornalismo. Havia cronistas que, de alguma forma, substituíam os jornalistas. Só que os cronistas trabalhavam, geralmente, para o poder – em geral, para o rei – e, portanto, tendiam a escrever de acordo com aquilo que eram os interesses de quem lhes pagava. A confiança que nós temosndos cronistas não é a mesma que podemos ter nas investigações jornalísticas, ou naqueles que, não sendo jornalistas, se dedicam a investigar também a História. É muito mais difícil, mesmo consultando documentos antigos, ter certezas sobre o passado – sobretudo, um passado muito recuado –, do que sobre o presente, ou sobre o passado recente.

O D. Pedro IV, que era um pouco viciado em sexo, punha e dispunha de qualquer mulher que se cruzasse à sua frente

Por entre a sucessão dinástica e o comum adultério, existem algumas histórias peculiares: um rei que não discriminava etnias, envolvendo-se com mouras e ciganas (D. Dinis); a bissexualidade de D. João VI, que escrevia cartas de amor a um dos seus camareiros; e a relação lesbiana entre D. Amélia de Orleães, última Rainha de Portugal, e a sua camarista, Pepa Sandoval. Qual foi a descoberta que mais o impressionou?

Falo de algumas dessas histórias, porque são histórias já mencionadas noutros livros, mas não quer dizer que tudo esteja absolutamente confirmado. A questão do lesbianismo da rainha Dona Amélia, por exemplo, é polémica, é controversa, e não está absolutamente fundamentada. A história da bissexualidade de D. João VI pode ter sido apenas circunstancial. É preciso encarar este passado com algumas reservas. Não quer dizer que tudo o que tenha sido publicado já, e escrito, e especulado seja absolutamente autêntico. Agora, talvez, aquilo que mais me tenha surpreendido tenha sido a postura, a atitude de D. Pedro IV… Porque D. Pedro IV era considerado um rei liberal – aliás, é e foi-o – e foi muito importante até para a definição do regime político português como um regime de monarquia constitucional. E, no entanto, no ponto de vista do seu comportamento privado… era um pedaço! (risos). O D. Pedro IV, que era um pouco viciado em sexo, punha e dispunha de qualquer mulher que se cruzasse à sua frente e sobre quem ele pudesse ter alguma espécie de interesse. E isso, realmente, concretizou-se: D. Pedro IV, não se sabe ao certo, mas terá tido entre 17 e 43 filhos bastardos. Comportou-se quase como um rei medieval, apesar de já vivermos em pleno século XIX.

Uma das histórias debruça-se sobre o escândalo Ballet Rose, trazido a público em dezembro de 1967. Vários homens do Governo de Salazar estariam envolvidos numa rede de prostituição, incluindo abusos sexuais a crianças. Esta é uma história que continua, de certa forma, desconhecida. Porquê?

Bom, a história, na altura, foi abafada. Sempre foi muito difícil chegar ao seu âmago, aos seus pormenores, porque se vivia num regime de ditadura. Na altura, o regime perseguiu aqueles que quiseram contribuir para divulgar a história. E, entretanto, como o regime mudou, nunca foi possível ir muito longe. Depois, retrospetivamente, já é difícil apurar muitos factos. Mas, mesmo assim, há muitos trabalhos publicados. Depois do 25 de Abril foi logo publicado um livro com as peças do processo – pelo menos, algumas delas –, chamado “o processo das Virgens”. Mais tarde, publicaram-se outros trabalhos: também no Expresso, um artigo da Felícia Cabrita sobre o mesmo processo; houve uma série de televisão, na RTP. E, portanto, acabou isso por dar alguma divulgação ao assunto, embora não se conheçam todos os seus pormenores, naturalmente.

Coloca-se a questão se devíamos escrever da mesma maneira sobre figuras vivas, como escrevemos sobre figuras mortas, já desaparecidas. Eu acho que há algumas reservas…

A linha cronológica chega até José Sócrates e as suas relações extraconjugais, reveladas no seguimento da Operação Marquês. Escrever sobre os affairs de figuras políticas ainda vivas, como Francisco Pinto Balsemão, não lhe trouxe problemas?

Por acaso, não. Isso tem um elemento de polémica, não é? Porque coloca-se a questão se devíamos escrever da mesma maneira sobre figuras vivas, como escrevemos sobre figuras mortas, já desaparecidas. Eu acho que há algumas reservas… Para já, é preciso dizer que figuras públicas – e, concretamente, os políticos – estão expostos a um grau de escrutínio da sua vida privada que é maior, do que se fossem meras figuras privadas. Isso está estabelecido até em Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Hoje, os cidadãos têm direito a conhecer alguns aspetos da vida privada dos políticos, precisamente pelo seu caráter de figuras públicas. Mesmo assim, há limites! E se essas figuras são públicas, as pessoas com quem eles se envolveram são figuras privadas. Nem sempre será correto divulgar certas situações – sobretudo, divulgar certos nomes. Tanto no caso concreto do Balsemão, como no de José Sócrates, esses comportamentos estão relatados em processos judiciais, o que implica que se tenha direito a conhecer o conteúdo desses processos.

Como é que se traça uma linha entre a relevância histórica e o sensacionalismo, ou o mexerico?

Não há um critério uniforme que se possa aplicar a todas as situações. Tem muito que ver com a sensibilidade de quem está a escrever. Eu acho que o último critério é a lei, é a legalidade. Quer dizer, as pessoas visadas podem processar quem publica este tipo de informação e logo se vê, no campo judicial, se eventualmente foi cometido um abuso, ou não. No caso concreto do Sócrates e do Balsemão, eu já tinha publicado essa informação em livro, tanto num caso, como no outro, e nenhuma das pessoas visadas recorreu ao tribunal. Acho legítimo, do ponto de vista jornalístico, do autor de um livro de ensaio, de natureza mais ou menos histórica, escrever sobre a vida privada das figuras públicas, mas não sobre a vida privada das figuras privadas.

Se são evidentes as consequências que as relações sexuais podiam ter na Monarquia, no contexto de uma República essas implicações são de outra natureza. Concorda com isto?

Sim, concordo. Pode haver implicações políticas, mas, no caso da nossa História de Portugal, não tenho uma ideia que tenha implicações políticas. Talvez um pouco, no caso dos Ballet Rose. Nos outros episódios que são narrados, creio que não houve implicações políticas. No estrangeiro, houve. Estou-me a lembrar do caso “Profumo”, na Inglaterra, no princípio dos anos 60 – um caso de envolvimento sexual de um ministro, com uma prostituta. Mas, nós, em Portugal, nunca tivemos um caso dessa natureza. Volto a ressalvar, talvez, a exceção do Ballet Rose. Eventualmente, o caso de Sá Carneiro com Snu Abecassis, porque isso até foi usado em campanha eleitoral, também.

O livro assenta numa perspetiva nada convencional da História de Portugal. Que feedback é que tem recebido por parte dos leitores, ou até historiadores?

De outros historiadores, não recebi feedback. Realmente, a abordagem não é convencional, mas por isso é que eu resolvi escrever o livro. Era uma forma diferente, digamos assim, de abordar a História. Agora, da parte dos leitores, tenho recebido sinais muito positivos – o livro já vai na terceira edição! É satisfatório saber isso, e as pessoas que leem dizem que acham a leitura divertida, interessante, curiosa, diferente… tem muitas coisas que não conheciam!

”Ditosa pátria que tais filhos tem, empenhados, dia após dia, em dar continuidade à história libidinosa da nação”. Termina o livro dando-se conta de um padrão. O sexo e o poder continuam de mãos dadas?

Isso é uma ironia! Sim, porque, como dizia o Henry Kissinger, que foi o secretário de Estado norte-americano – o equivalente a ministro dos Negócios Estrangeiros –, “o poder é um grande afrodisíaco”. Realmente o poder pode inebriar as pessoas e, nesse aspeto, entra mais uma vez em campo a questão do comportamento sexual. A pessoa que tem poder político, muitas vezes, poder-se-á sentir que isso é um estímulo para ter outro tipo de relações sexuais, que não teria, se não tivesse o poder.

Acredita que exista material para um próximo livro?

(Risos) Acho que será necessário esperar mais mil anos, ou 900, para acumular material… Não tenho a pretensão de ter contado tudo o que há nesta matéria da História de Portugal, mas as histórias mais importantes acho que estão neste livro. E daqui para a frente será diferente. Antes, os políticos sentiam mais “carta branca”, mais à vontade para poder ter um tipo de comportamento sexual perfeitamente descontrolado. Hoje em dia, não é assim, porque sabem que estão sujeitos a um escrutínio da imprensa e da opinião pública, que é muito mais fácil as coisas virem a público. Acho que, no futuro, é capaz de não virem a existir histórias tão interessantes, como existiram no passado. Mas nunca se sabe, porque o sexo é um instinto da espécie humana e cede-se muitas vezes à tentação, sem medir as consequências.

Artigo editado por Filipa Silva