Os pés que avançam, o peso que esmaga, a dor que se esconde. Quando nem os animais podiam levar a carqueja calçada acima, foram as mulheres das Fontainhas, no Porto, que pegaram nos molhos e os transportaram do rio aos fornos das padarias da cidade. No domingo, 1 de março, a cidade prestou-lhes homenagem com uma estátua.
Arminda Santos chega carregada. Traz um envelope com fotografias. Nele, a história: a memória das mulheres que o Porto atirou para debaixo de um monte de carqueja e a quem agora busca o perdão – com uma estátua finalmente erguida no topo da rampa que lhes era a vida toda.
Arminda Santos era estudante de escultura na Escola de Belas-Artes do Porto, nos anos 60, quando o lápis que usava nos esquissos se cruzou com as histórias das carquejeiras. Naquela altura, a grafite apenas registou o contraste da calçada e da malha urbana, em desenhos que viriam a compôr os seus apontamentos gráficos. Mas, enquanto esboçava o lajedo granítico – entretida pela curiosidade das carquejeiras (“Para que é isso? Ó menina, para que é que isso serve?”) -, a estudante ouviu relatos que nunca mais lhe saíram da memória.
Aos dezoito anos, resolveu guardá-los sob a promessa de que, quando tivesse mais tempo, os iria explorar. E, em 2015, essa promessa mostrar-se-ia bem viva no coração quando, já reformada, Arminda Santos voltou às Fontainhas com os seus blocos de apontamentos. Em vez de desenhos, encheu-os das histórias que jamais conseguira esquecer.
No mesmo ano, decidiu fazer algo com o sonho que alimentava desde jovem. Com um grupo de cidadãos, criou a Associação de Homenagem às Carquejeiras do Porto, com o único objetivo de marcar a paisagem da cidade com a memória daquelas mulheres: erguer uma estátua – esta estátua.
“Nós começámos do zero. Não tínhamos dinheiro absolutamente nenhum; tínhamos o sonho. E, durante estes quatro anos, juntámos o dinheiro e temos o sonho realizado, se Deus quiser, no dia oito de dezembro deste ano”, contava Arminda ao JPN ainda em 2019. Não foi nesse oito de dezembro, velho dia da mãe, feriado ressuscitado, mas foi agora. E ela – Maria, como quase todas – lá está, no seu verde de estátua, a gritar a memória de que é feita.
“Uma pessoa que não tenha memória não tem nada. E a nossa cidade está cheia de locais, de cheiros, que são memória de um povo”, conta. “O país precisa de memórias, mas essas memórias são um bocadinho desprezadas. E cada vez tenho mais essa sensação de que tudo o que é sentimento, tudo o que é história, tudo o que é vivência de outrora, se está a esvair. E é triste pensarmos assim, porque a memória é peso de um país, é peso de uma comunidade.”
Durante cinco anos, empancaram em “nãos”: “Diziam que não nos podiam ajudar porque não estava previsto nas atividades da empresa ou da instituição. Que o projeto merecia todo o carinho, toda a aceitação – palavras muito bonitas sobre o nosso altruísmo, sobre como é que nós nos fomos lembrar de pegar em memórias, em estratos de história tão longínquos, merecedores de apreço.”
Porém, palavras bonitas não erguem monumentos. “Gerir os “nãos” foi difícil, porque nos quebravam as pernas, vínhamos um pouco tristes, um pouco angustiados.” Mas a memória mantinha a voz grossa.
Maximina Girão, Rui Claro e Luís Pacheco foram, com Arminda, os rostos por trás da persistência. Foram arranjando cada vez mais portuenses, entre os anónimos e os seus nomes conhecidos, como Helder Pacheco, Joel Cleto, Germano Silva ou Manuel Pizarro. O projeto contou, ainda, com a divulgação nas redes sociais, nos jornais e na televisão.
Os apoios grandes – e os pequenos – fizeram subir a empreitada: “no fim de estarmos a conversar sobre o nosso projeto e sobre as carquejeiras, havia pessoas que vinham ter comigo, e com o restante núcleo duro, para entregar 1 euro e 5 euros.”
Ao dinheiro que devagarinho foram juntando, juntaram-se os apoios da Fundação Manuel António da Mota e do orçamento colaborativo da Junta de Freguesia do Bonfim – empurrões que ajudaram a galgar o resto do caminho e a cumprir a vénia às carquejeiras.
Erguida a pedra, apaga-se a associação, que se extinguirá – deixando, contudo, um importante acervo.
“Nós temos, realmente, um acervo muito interessante de documentos, fotografias, relatos, que depois vai ser entregue à Junta de Freguesia do Bonfim, que sempre nos apoiou. Apresentámos o nosso projeto em 2015, a partir do Salão Nobre da Junta de Freguesia do Bonfim, no qual já mostrámos a figura da carquejeira, em miniatura. A casa estava cheia. A cidade-povo esteve connosco, tanto nas subidas, como nas descidas da rampa. Comemorámos o Dia dos Monumentos e Sítios, proclamando as carquejeiras e a Calçada das Carquejeiras como património cultural da cidade do Porto.”
Património da cidade, que são as pessoas: “Esse desenho que lhe mostrei, da carquejeira, é de uma menina que tem cinco anos, que é minha sobrinha e que desde pequenina anda comigo nestas andanças. Estava eu tranquilamente a trabalhar no computador e ela vem ter comigo, com uma folhinha de papel, e diz: ‘Toma, isto é a tua carquejeira’. E eu fiquei estupefacta como é que uma miúda de cinco anos coloca a figura no papel e, com um esquisso, faz tanta coisa. Ou seja, define o sexo da imagem, que é mesmo a carquejeira, porque ela faz a projeção e desenha os seios da mulher. E como ela, tão pequenina, deu importância aos pés. Percebeu que, a partir dos pés, é que tudo se resolvia. Ela ouvia nós falarmos do peso, da carga, das varizes que elas tinham, das doenças.”
“Foi inesperado. Foi com emoção que peguei, depois, no papel”, confessa Arminda.
Morrer na rampa para poder viver na Terra
Noutros tempos, outras crianças sabiam bem quem eram as mulheres que acarretavam a carqueja ali no calvário: eram as mães ou, no caso de Alice Malheiro, a avó.
Quando era pequena, punha-se às cavalitas do irmão mais velho e atirava-se a descer a rampa dos padeiros, num carro de rolamentos, lá para as Fontainhas. Hoje, por aquelas ruas, rolam diante dos olhos da octogenária as malas dos visitantes do Porto. Alice Malheiro fala “meio espanhol, meio português e meio às Fontainhas”. É deste linguajar que se serve quando tenta auxiliar os turistas que por ali passam, a caminho da Ribeira.
Durante os dias da semana, é possível encontrar Alice Malheiro na casa que ainda mantém junto à Calçada das Carquejeiras. É lá que se distrai desde que atingiu a reforma: põe fechos, faz bainhas, alarga e estreita calças, faz cortinas. Um ofício que concretiza enquanto ouve os helicópteros turísticos a sobrevoar o telhado do seu atelier improvisado – e que foi a primeira habitação enquanto recém-casada, aos vinte anos. Antes, vivia no bairro ao fundo da calçada, perto da capela da qual já só restam ruínas.
Foi aí que passou a infância, junto ao rio. Brincava ao lado da avó carquejeira, enquanto ela e outras mulheres organizavam os fardos “balofos” que iriam começar a acarretar logo a seguir. Era o preâmbulo do sofrimento que Alice testemunhava. As barcaças vinham de localidades como Melres e Sebolido, completamente abastecidas de galhos da planta seca. A carqueja era descarregada no cais e, a partir desse instante, cada mulher metia mãos à obra. Moldavam o calvário como podiam, fazendo molhos que colocavam sobre as costas para a primeira subida pela íngreme calçada. Iam impelidas pela expectativa de um sustento, que chegava sob a forma de uma remuneração pequena quando comparada com a imensidão da carga. Um dia preenchido poderia render-lhes quinze escudos. Se a sorte fosse pouca, seis era o valor que cobria a dor e a corcunda saliente.
Os fardos esmagavam o corpo sem qualquer pudor, no caminho para as Antas, para o Carvalhido, ou para Areosa. A carqueja era erigida contra o céu, com o esforço diligente da coluna, dos braços e dos pés descalços. No final, morria quotidianamente nos fornos e fogareiros – era a matéria que servia de acendalha para a civilização, fosse nas padarias ou nos aquecimentos das casas. Enquanto a planta se convertia em cinzas, as mulheres voltavam ao rio para fazer tudo outra vez. O dia conhecia vários recomeços, todos eles tortuosos, em busca do ganha-pão – e tanto era o tempo perdido naquele caminho que nem para aliviar as bexigas as carquejeiras se desviavam da rampa: “Para urinar… desculpem… abriam as pernas, usavam as roupas compridas, às vezes nem cuecas nem nada tinham”, lembra Alice Malheiro.
Ao JPN, a octogenária conta que, quando chegava a casa, a avó ia logo descansar. O trabalho era cansativo, e encontrar o sono não era problema. “Não é como nós agora. Eu para adormecer tenho que tomar comprimidos. A minha avó comia o que havia, lavava os pés em água com sabão, e lá ia para a caminha. Deitava-se e adormecia logo”.
O suplício das carquejeiras era ignorado ao mesmo tempo que a cidade florescia. É o que relembra Arminda Santos. “Nós somos uma cidade liberal, mas esquecemo-nos um pouco daquela comunidade que ali vivia. As restantes classes sociais do Porto esqueceram-se daquelas mulheres. Viviam presas às novidades, ao teatro, à ópera, aos bordéis, aos vestidos bonitos, ao janotismo”, resume a escultora sobre a época em que o sofrimento das carquejeiras se cruzava com o progresso que “inebriava” a cidade do Porto.
Para Arminda Santos, tratava-se de uma miséria que era, de algum modo, incómoda a uma “vida à la française”. “Estas mulheres foram, realmente, muito abandonadas, muito descredibilizadas. Foram humanamente minimizadas. Talvez um grupo social que não interessava trazer à tona, uma vivência social que não valia a pena mostrar”, sublinha.
O drama oculto das carquejeiras foi descrito, em 1951, pela Liga Portuguesa de Profilaxia Social. Num livro publicado nesse ano, é relatado “um triste e vergonhoso espetáculo, tanto do ponto de vista humano como sob o aspeto citadino, ou mesmo nacional”. A Liga pedia, desde 1928, o cessar do ofício desempenhado por aquelas mulheres “desgraçadas, esquálidas e em farrapos” mas, nos anos 50, os resultados que se viam eram pouco palpáveis. Isto “porque apesar das reuniões com as diversas vereações da câmara e dos muitos editais, não se cumpriu nada do que se previu”, explica Arminda Santos ao JPN.
Hoje, no sobe e desce não vão as mulheres descalças do Porto. Andam as sapatilhas dos turistas, gente de toda a parte que faz passeios naquele calvário. Agora, desafiante, a estátua grita no seu silêncio monumental.
Se as mulheres de carne cansada, pés gastos e costas dobradas olhassem para a cerimónia de descerramento haviam de ficar “incrédulas”, reflete Arminda. “Porque alguém olhou para elas, alguém trabalhou para elas, alguém compreendeu as suas vivências, alguém com sensibilidade entendeu a vida atroz que viveram. Ficariam admiradas, incrédulas, e diriam: ‘Isto não é para nós. Ninguém olhou para nós, ninguém quis saber de nós’. Acho que ficaram incrédulas e muito agradecidas.”
Mas alguém quis saber delas, e a estátua, que, não sofrendo, eterniza as dores, é o fim único de quem quis saber delas. “A associação cumpriu o seu projeto e morre, ficando só simbolicamente uma atividade a que nós damos muita importância, que é a descida da rampa das carquejeiras, depositando flores por aquela granítica e fria calçada onde pedaços de almas ficaram por lá dispersas – gente que, como um cidadão, amava, vivia, tinha os seus filhos, a sua família. E é em prol dessa gente que valeu a pena dar continuidade e finalizar o nosso projeto”, conta.
“Foi com elas que eu comecei a fazer os primeiros desenhos, e é com elas que acabo e fecho este nosso projeto, que foi bonito, foi ótimo, foi sentido, foi sofrido – mas que vai permitir homenagear essas mulheres.”
A associação vai – mas a vénia fica, tão indelével quanto as marcas que a carqueja rasgou nos corpos daquelas mulheres.
A reportagem áudio foi realizada em conjunto com Isabella Rabassi, no âmbito da disciplina de AIJ Rádio – 3.º ano.
Artigo editado por Filipa Silva.