Numa decisão histórica para a Academia do Porto, a Queima das Fitas de 2020 foi cancelada. A Federação Académica do Porto (FAP) divulgou a decisão esta terça-feira (17) face ao escalar da pandemia da COVID-19 em Portugal. O JPN conversou com alguns dos ex-dirigentes académicos que tomaram decisões igualmente importantes noutras situações de crise.

João Pedro Videira foi o antecessor de Marcos Alves Ferreira na presidência da FAP e apoia o atual dirigente na decisão de cancelar a Queima das Fitas deste ano. Dada a “situação sem precedentes” de pandemia, considera que a atual direção “teve em conta o histórico que tem vindo a ser tomado” pela FAP na tomada de decisões onde “é ponderado tudo e mais alguma coisa”.

A direção de João Pedro Videira fechou três barracas na Queima das Fitas do ano passado, pela “violação da privacidade, dos direitos humanos e a não preocupação com o outro“, disse o presidente ao JPN, na altura.

Não negando que a Queima das Fitas é “fundamental para a FAP e para toda a Academia“, João Pedro Videira esclarece que “um evento desta envergadura não se faz de um dia para o outro” e portanto “não é uma decisão que se possa tomar de ânimo leve”.

Artistas, produtoras, empresas de catering, concessões e equipas de segurança, além da infraestrutura e o espaço para a realização do evento, são apenas alguns dos fatores a ter em conta na organização de um evento como a Queima das Fitas do Porto, que recebe anualmente mais de 200 mil estudantes.

Segundo o presidente da FAP no ano de 2019, a atual direção de Marcos Alves Teixeira terá feito uma análise “custo-benefício” e, face às circunstâncias, considerou que “o custo a pagar seria maior” que o benefício da manutenção – ou adiamento – da Queima das Fitas em 2020. No comunicado lançado esta terça-feira (17), a FAP fala no agravamento de um “grau de incerteza” que esgotou “todos os cenários de alternativa” para o maior evento da Academia.

Entre os estudantes tem circulado uma petição pública – até ao momento com mais de 3 mil assinaturas online – com vista ao adiamento da Queima das Fitas para o verão. Marcos Alves Ferreira reiterou ao JPN que “não havia condições para garantir que um adiamento significaria um adiamento e não seria só um cancelamento adiado” .

João Pedro Videira não tem dúvidas de que a decisão foi “plena e acertada” mesmo tendo em conta “todas as consequências que isso possa trazer para os estudantes, como para a FAP e para a própria cidade”. A federação foi clara quanto ao cancelamento dos eventos académicos – noites da Queima, serenata ou cortejo, por exemplo – durante todo o ano de 2020.

Para milhares de estudantes finalistas deste ano letivo, a semana da Queima, da serenata e do cortejo são o último degrau da vida académica que não vão poder pisar. Para João Pedro Videira, é uma consequência pelo bem de todos: “os que entram infelizmente vão ver esse momento adiado e os que saem vão ter que perceber que é um momento difícil para todos”.

“Quando se coloca em causa a saúde pública e o bem estar do estudantes da Academia do Porto, não há nenhum preço que valha isso”, considera o ex-presidente da FAP. Para João Pedro Videira, a associação estudantil “não podia permitir que vidas humanas fossem postas em causa“. “A nossa saúde vale mais do que a própria Queima das Fitas”, remata como ideia chave.

Na história da Academia do Porto houve uma outra situação imprevista que pôs cabeças a pensar num possível cancelamento do evento. Foi em 2013, na madrugada antes do início da festa académica, que um assalto às bilheteiras no recinto fez um morto e dois feridos. A vítima era um colaborador da FAP – Marlon Correia – que estaria na bilheteira para entregar o dinheiro dos bilhetes recolhido no dia, que depois seria levantado por uma equipa de segurança que chegaria minutos depois dos disparos.

Rúben Alves presidia a FAP no ano do acidente. A direção decidiu não cancelar a Queima das Fitas, onde depois decorreram homenagens ao estudante morto no acidente. Ao JPN, quis apenas dizer que apoia “absolutamente” a decisão da atual direção.

Um cancelamento por uma outra força maior

23 de abril de 2014 é um dia que a Academia do Minho não vai esquecer. Carlos Videira, presidente da Associação Académica da Universidade do Minho (AAUM) na altura, tinha acabado de divulgar o cartaz para o Enterro da Gata – a Queima minhota, que aconteceria entre os dias 10 e 17 do mês seguinte – quando chegou ao local do acidente que vitimou três colegas da Universidade do Minho (UM).

A queda de um muro numa rua anexa ao campus de Gualtar da universidade minhota fez três mortos e dois feridos. O Enterro da Gata viria a ser cancelado pela primeira vez em 32 anos de festa pela AAUM, encabeçada por Carlos Videira. O ex-presidente diz ao JPN que “tinha deixado de ser prioritário” depois do acidente que abalou toda a comunidade estudantil.

Carlos Videira diz não ter havido “motivação nem capacidade” para prosseguir com a festa académica que havia sido preparada. Depois de feita uma vigília em homenagem às vítimas, a bênção de pastas, a imposição de insígnias e a serenata mantiveram-se para o dia 10 de maio e o cortejo foi adiado para junho.

O ex-presidente realça o carácter holístico que uma direção tem que assumir em tomadas de decisão desta escala. “O coletivo tem que ter em conta que não se representa a si próprio ou à sua vontade e tem que estar atento ao que as pessoas sentem e ao que a sua decisão vai passar como mensagem do coletivo para a sociedade como um todo”, explicita.

Um acidente mortal e uma pandemia em muito diferem. Apesar disso, Carlos Videira considera que há questões que “em determinados momentos da nossa vida coletiva são mais importantes do que a festa”. São elas a “solidariedade, a responsabilidade intergeracional e a salvaguarda da saúde pública“, segundo o antigo presidente da AAUM.

Quanto ao cancelamento da Queima das Fitas do Porto, o minhoto admite não ter toda a informação relativa ao assunto mas apoia a decisão “acertada e muito responsável” da FAP. Refere ainda que a impossibilidade do adiamento “não deixa criar uma expectativa nas pessoas sobre um período que apela à responsabilidade comum”, dada a incerteza dos próprios especialistas e autoridades de saúde sobre o tempo que demorará até a pandemia ser totalmente combatida.

O ex-dirigente académico acredita que os estudantes da UP devem confiar na FAP, já que “devem acreditar que quem tomou esta decisão é quem tem mais conhecimento das implicações de a tomar”.

Num evento da escala de uma Queima das Fitas, as receitas de bilheteira servem para apoiar as restantes atividades das associações durante todo o ano letivo. No caso do Enterro da Gata que não chegou a acontecer, Carlos Videira fala em palavras-chave como gestão antecipada de recursos e adaptação – por exemplo, os artistas contratados para a festa académica cancelada atuaram no Enterro seguinte, sem prejuízos financeiros.

A AAUM ainda não se pronunciou quanto ao Enterro da Gata deste ano, mas nas restantes academias do país já se verificam cancelamentos: a semana académica da Universidade da Beira Interior marcada para a próxima quarta-feira (25) foi cancelada, sendo reposta “assim que se encontrem reunidas as condições de segurança e saúde pública”.

Esta quinta-feira, a Associação Académica de Coimbra anunciou o adiamento da semana académica para outubro deste ano “com datas ainda a anunciar” e moldes dependentes das “próximas semanas”.

Para Carlos Videira, antigo presidente da AAUM, estas decisões são “uma enorme prova de responsabilidade intergeracional que as gerações mais jovens estão a dar, desmistificando a ideia de que as organizações estudantis servem para organizar festas”.

Artigo editado por Filipa Silva.