O COVID-19 já fez mais 784 mortos em Itália do que na China. Desde quinta-feira (19) que o país europeu ultrapassou aquele onde surgiu a pandemia. Com 4.032 mortes registadas, a Itália é o líder mundial de uma fatídica tabela.

O epicentro mais ativo da pandemia na Europa e no Mundo quebrou o próprio recorde ao registar, pela segunda vez, o maior número de mortes num único dia: depois das 475 mortes contabilizadas na quarta-feira (18), foram contabilizadas 627 na sexta-feira.

As medidas de contenção tomadas pelo governo italiano estão, por isso, para continuar: a quarentena obrigatória vai estender-se para além da data final prevista, 3 de abril.

Os serviços hospitalares italianos continuam sem conseguir dar resposta adequada aos casos ativos de COVID-19. Até ao momento, Itália regista 37.860 casos positivos ativos, 4.032 mortes e 5.129 pacientes recuperados.

Mas como é que uma das maiores potências económicas, ao nível mundial, está a registar números tão assustadores? Como é quase sempre o caso, a resposta estará num conjunto de circunstâncias, que vão de um surto de casos de pneumonia, ainda em dezembro, à demora na confirmação dos primeiros casos da doença, deixando via aberta ao alastramento silencioso do vírus pelos hospitais e profissionais de saúde, até chegar à alta percentagem de população idosa no país, medidas tardias por parte do governo e sobrecarga do sistema de saúde italiano.

Como chegámos até aqui?

Apesar de não haver uma razão que justifique tudo isto com certeza, especialistas apontam para uma série de razões que podem ter facilitado o alastramento do COVID-19 em Itália.

Começou com um surto de casos de pneumonia que se fez sentir no norte de Itália, no final de dezembro, segundo relatou Stefano Paglia, chefe da unidade de emergência do hospital de Codogno, ao jornal “La Repubblica”. Sendo esta uma doença típica do inverno, o surto não fez os alarmes soar. Agora percebe-se que os pacientes podiam ter sido vítimas da COVID-19. Um artigo publicado no “The Washington Post” relata como os próprios hospitais ajudaram na multiplicação do vírus, com a circulação incessante de profissionais de saúde e de pacientes. “O hospital agiu como um multiplicador”, admitiu Walter Ricciardi, membro do conselho executivo da Organização Mundial de Saúde (OMS) à Al Jazeera.

Quando os primeiros casos de COVID-19 foram confirmados já tinha passado um mês, dando tempo ao vírus para se alastrar. Dois turistas chineses, provenientes da província de Wuhan – onde se confirmaram os primeiros casos do vírus no mundo – chegaram a Milão no dia 23 de janeiro. O casal passou depois sete dias a viajar por Itália até chegar a Roma onde ambos manifestaram sintomas do vírus. Dia 30 de janeiro o teste para a COVID-19 deu positivo. Em resposta, o governo italiano cessou o tráfego aéreo com a China, para impedir que chegassem novos casos. Mas já era tarde.

O terceiro caso só se confirmou dia 6 de fevereiro, sendo este o primeiro cidadão italiano a contrair o vírus. O paciente tinha sido repatriado de Wuhan na semana anterior.

Por esta altura, já o vírus ganhava força em Itália embora os números não o transparecessem. O elevado número de casos a partir de dia 21 de fevereiro aconteceu porque os casos se foram “acumulando”. Isto é, só quando se começaram a fazer testes a possíveis infetados é que se notou que a presença do vírus já era significativa, como explica o VOX.

A isto ainda se junta o facto de Itália ser um dos países mais envelhecidos do mundo. 23,3% da população italiana tem mais de 65 anos, segundo dados do Centro de Ciência Aberta. Para além disso, a população italiana tem muito contacto físico entre gerações, também devido à proximidade de habitações de membros da mesma família, segundo a mesma fonte. Visto que os idosos são especialmente suscetíveis ao vírus, estes fatores também podem ter contribuído para a atual situação do país.

Ainda relativamente à faixa etária mais velha, o governo italiano não tomou precauções especificas direcionadas à geração mais velha, tendo também isto contribuído para o alastrar do vírus.

No entanto, outras medidas foram tomadas pelo Governo, que começou por fechar a região mais afetada do país, a Lombardia.

“Quando o governo quis fechar só a Lombardia, houve uma deslocação muito grande de pessoas para cá, mas depois tiveram de voltar”, conta Nuno Oliveira, um português natural de Oliveira de Azeméis que reside perto de La Spezia há já dois anos, ao JPN.

Houve o erro de fechar só a Lombardia, que era a zona mais afetada, e deviam ter fechado logo tudo. Eles [governo italiano] aperceberam-se disso e passado dois dias fecharam tudo, porque as pessoas começaram a mexer-se mais”, acrescenta. A movimentação desde as zonas afetadas para outras regiões do país, motivada pelo medo, também contribuiu assim para a propagação do vírus.

Com cerca de 2,66% (883) dos casos positivos em Itália, a região de Liguria, que inclui La Spezia, não está na linha da frente das mais afetadas, mas Nuno Oliveira está em casa há já quinze dias, com mais quatro membros da família, nenhum apresentando sintomas do vírus. Ao JPN conta que “psicologicamente não é fácil”. Inventa histórias ao filho, de dois anos, para ele não perceber porque é que já não vão há praia ou ao parque há tanto tempo. “O contacto com as pessoas não é substituível”, confessa.

Mesmo depois de o país inteiro estar em isolamento, os números continuaram a aumentar. Isto porque as medidas eram insuficientes e tardias. Cafés e restaurantes continuavam abertos até às 18h00 e as empresas e fábricas, não essenciais, também.

O Governo tomou, depois, a decisão de ampliar as medidas já impostas, ficando abertos apenas serviços de primeira necessidade (farmácias, supermercados, bombas de gasolina). Quinta-feira (19) foi anunciado pelo primeiro-ministro italiano, Giuseppe Conte, que as medidas “irão prolongar-se quando chegarem ao seu término”, dia 3 de abril.

O vídeo divulgado pela Federação Nacional Italiana de Enfermeiros mostra as consequências das medidas atrasadas: uma sobrecarga brutal dos serviços de saúde italianos. Não há camas para todos os pacientes e os dispositivos de proteção individual escasseiam, tendo de ser reutilizados.

As utilizações consecutivas durante várias horas seguidas aliadas ao facto de não serem adequados, resultam em diversos ferimentos faciais, mostrados no vídeo. Poucos e exaustos, trabalham demasiadas horas seguidas para conseguirem fazer eficazmente o seu trabalho. Segundo dados do Instituto Superior de Saúde de Itália, até quarta-feira (18), 8,3% dos casos confirmados de COVID-19 eram profissionais de saúde.

Christian Salaroli, anastesista em Bergamo, compara o estado dos hospitais a “situações de guerra”. Na entrevista feita pelo jornal “Corriere della Sera“, na semana passada, Salaroli admite que se decide quem é tratado pela “idade e pelas condições de saúde” e que “apenas pacientes com pneumonia derivada do COVID-19, são admitidos”.

Já no jornal The New York Times, Marco Pavesi, anastesista que trabalha em Milão, alerta para o colapso do sistema de saúde do país, enquanto reporta, da linha da frente, a realidade presente nos hospitais italianos. “Talvez as medidas de contenção funcionem e as notícias no final da semana sejam boas. Mas, por enquanto, estamos no meio da tragédia”, desabafa.

Artigo editado por Filipa Silva