É apenas um cromossoma a mais, mas é determinante. A tendência é geral: seja na Islândia, na Dinamarca ou em Portugal, o número de abortos em caso de deteção de síndrome de Down tem aumentado nos últimos anos, com taxas próximas dos 100% em alguns países. Este fenómeno não vem sem controvérsia: o que para uns é uma consequência natural da evolução da medicina, para outros demonstra que ainda há preconceitos enraizados sobre a vida de quem tem esta anomalia genética.

A grande mudança surgiu nos anos 90, quando o advento do programa do genoma humano trouxe a possibilidade de se saber, durante a gestação, se o feto é portador de algum tipo de Trissomia. No caso da síndrome de Down, pode ser feito um rastreio no primeiro trimestre e uma amniocentese – um procedimento geralmente realizado após as 15 semanas de gravidez (quarto mês). O aborto é apresentado como uma das opções quando o resultado é positivo, já que a lei prevê que os casais têm o direito à informação. 

Rui Nunes é presidente da Associação Portuguesa de Bioética e professor na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e considera que a tendência vai continuar. “A evolução da ciência e da tecnologia no domínio da análise do genoma humano” aliada à “maior liberalização da interrupção voluntária da gravidez (IVG) por motivos eugénicos” tem causado este aumento, pois “para algumas pessoas ter um filho portador de deficiência é um sobrecarga muito elevada”.

O especialista em Bioética considera que “os casais por via de regra têm a informação necessária” que lhes permite decidir se avançam para o aborto ou não. “Não obstante, é preciso um esforço acrescido para explicar bem às pessoas o que se passa. Há sempre mais a fazer, no que respeita a aumentar os níveis de literacia em saúde”, remata.

Para Sara Maximiano, psicóloga clínica de saúde, trata-se de uma consequência do avanço da medicina, ciência e informação. “Como tudo na vida, tem o lado bom e o lado mau”, reflete. “Encaro como qualquer direito de liberdade e de escolha das pessoas. Obviamente que qualquer pai que passe por estes testes positivos tem de ser bem acompanhado pelos técnicos de saúde, de forma a que a sua decisão seja feita com um total conhecimento da Trissomia 21”, alerta.

Não existem dados ou registos oficiais feitos pelas autoridades de saúde no que toca ao número de nascimentos e de abortos realizados por Trissomia 21, em Portugal. No entanto, de acordo com a CUF, calcula-se que existiam, em 2018, cerca de 15 mil pessoas com síndrome de Down no país. Segundo a rede hospitalar privada, estima-se que todos os anos nasçam “entre 100 a 120 crianças com esta anomalia cromossómica”, o que corresponde, aproximadamente, a “um em cada 700 bebés”.

No entanto, os dados não são conclusivos, pelo que há associações, como a Pais 21, que pedem que esse registos sejam devidamente recolhidos. No ano passado, esta associação lançou um apelo no sentido de serem feitos censos para saber exatamente o número de nados-vivos e de interrupções voluntárias de gravidez realizadas por Trissomia 21. Além de apurar quantos são, o projeto também visa perceber como vivem as pessoas com síndrome de Down, em Portugal.

“Um longo caminho pela frente”

Atualmente, ainda existem preconceitos associados à síndrome e às capacidades dos portadores. “Eles ainda são muito vistos como o cromossoma extra do amor (que não deixa de ser verdade, como é óbvio), como pessoas muito fofinhas mas que não conseguem fazer muitas coisas, pois ‘coitadinhas, têm uma doença’. Outro erro da sociedade, visto que a Trissomia não é uma doença que tem cura ou vai passar”, afirma Sara Maximiano, que é também diretora técnica da Associação de Portadores de Trissomia 21 do Algarve (APATRIS 21). 

Criada por um grupo de pais e profissionais de educação, a associação tem como objetivo dar resposta à ausência de informação e apoiar os portadores e as suas famílias, na região do Algarve. Pressionar as autoridades em defesa das pessoas com síndrome de Down é também uma prioridade.

Tal como a APATRIS 21, há várias outras instituições por todo o país com os mesmos objetivos e a Associação de Apoio à Trissomia 21 (Amar 21), criada em 2012, é exemplo disso, na zona de Barcelos. Trabalha com todas as faixas etárias e desenvolve projetos que envolvem terapia com animais ou apoio psicológico junto dos utentes e das famílias. “Era precisa uma associação que promovesse um apoio muito mais especializado na Trissomia 21”, conta Alexandra Lopes, presidente da Amar 21.

Alexandra considera que cada vez mais a nossa sociedade está a trabalhar para incluir estes jovens. Ainda assim, “existe um longo caminho pela frente” porque “ainda vivemos numa sociedade em que aquilo que é perfeito é que tem capacidade e acesso às coisas, e não pode ser assim”. Para a presidente da associação, é essencial que os portadores da síndrome recebam as mesmas oportunidades que os outros jovens: “não podem ficar fechados em casa ou em instituições”, sublinha.  

Seja para a APATRIS 21 ou a Amar 21, a missão é a mesma: garantir que não é a síndrome que define a pessoa, mas sim a sua personalidade e educação, como defende Sara Maximiano. “São crianças, jovens e adultos com as suas limitações, sim, mas cheios de sonhos e capacidades, e isto a sociedade ainda não aceita bem”, acrescenta a diretora técnica da APATRIS 21.

Já Rui Nunes concorda que “é preciso extraordinário bom senso” para que o aumento das interrupções das gestações não leve a um aumento da discriminação. “Não queremos estigmatizar aqueles que já existem com Trissomia 21 e os casais que optam pelo nascimento da criança”. Admite ainda que “há casais que até gostavam de ter um filho nessas circunstâncias”, mas que “olham para a sociedade à sua volta e entendem que dificilmente terão condições para proporcionar o melhor possível ao seu filho ou à sua filha”. “Em grande medida, uma sociedade civilizada é ajuizada pelo modo como trata os mais vulneráveis”, ressalva.

As qualidades “escondidas”

“As pessoas pensam que, às vezes, eles não percebem – porque alguns deles não conseguem verbalizar – mas eles percebem”. Além de presidir à Amar 21, Alexandra Lopes é também mãe de duas meninas, uma delas é portadora de Trissomia 21. Para Alexandra, o sentido de justiça é uma das suas qualidades mais “apuradas”. “Estou a pensar na minha filha, por exemplo, que em comparação com os mesmos direitos que a irmã tinha em faixa etária semelhante, pergunta ‘se a minha irmã pode, porque é que eu não posso?”.

Além de afetuosos e sociáveis, os portadores da síndrome de Down são também inteligentes e intuitivos. “Eles conseguem, às vezes, sentir no ar aquilo que as pessoas com todas as capacidades não conseguem. Conseguem aperceber-se de tudo, inclusive quando são postos de parte”, revela.

“A nossa menina mais velha, na associação, tem 54 anos”. Para Alexandra, são “eternos meninos”, mas diz que a expressão não é para os infantilizar: “quando digo meninos não é no sentido de atribuir um rótulo com cariz negativo”. “Eles são fantásticos e conseguem ler-nos a alma. Sabem quando estamos felizes e quando estamos tristes, e dão-nos aquele abraço especial que consegue fazer esquecer tudo”, diz alegre.

Quando o resultado é positivo

Foi em 2007 que a vitória do “sim” no referendo deu origem à lei para a Interrupção Voluntária da Gravidez. “Até há uma década atrás”, começa Rui Nunes, não se dava liberdade para a “consciência individual de cada médico”, mas a medicina evoluiu bem nos últimos anos porque “adaptou as suas regras éticas e deontológicas e a prática clínica”.

Apesar de haver relatos de pressões sobre os casais para abortar, o presidente da Associação Portuguesa de Bioética aplaude também uma evolução prevista na lei relativamente ao papel dos profissionais de saúde: o aconselhamento neutral. “O geneticista que aconselha o casal nesta matéria explica e esclarece, mas não induz nenhum tipo de solução. A solução final deve ser do casal, não é legítimo ser nem o geneticista, nem um médico a influenciar a decisão”, defende.

Já Alexandra Lopes considera que, em alguns casos, existe um tipo de pressão negativa que se relaciona, principalmente, com o modo como a notícia é apresentada aos casais. “O relato habitual é: o seu filho não vai conseguir fazer isto. O panorama que apresentam às famílias é um panorama negro, muito negativo”. A presidente da Amar 21 recorda ainda a altura em que foi mãe: “no meu tempo dizia-se ‘vai ter um filho mongolóide’. É um choque para um pai receber essa notícia”, confessa. 

Para Alexandra, a abordagem deveria ser diferente e mais cuidada, mais do género: “o seu filho vai nascer com síndrome de Down, poderá ter alguns problemas de saúde associados – não é fácil porque vai precisar sempre de muita intervenção e quase de caráter global em várias valências, o que requer alguma capacidade financeira para tal – mas o seu filho vai ser capaz”, termina.

Associações que fazem a diferença

A APATRIS 21 e a Amar 21 são apenas dois exemplos de associações de apoio a portadores da síndrome de Down em Portugal. Atuam ao nível local, no Algarve e em Braga, respetivamente, e têm como missão comum a integração dos indivíduos na sociedade e a sua autonomia, “nunca esquecendo o apoio direto às famílias e cuidadores”, refere Sara Maximiano, da APATRIS 21. 

Ambas as associações desenvolvem programas especiais juntos dos utentes. A Amar 21 tem dois projetos de intervenção: o “Patinhas 21” e o “Lá em casa usamos lupa”. O primeiro envolve terapia com cães. O animal, em interação com as crianças portadoras, funciona como um “agente desbloqueador de comportamentos”, como conta Alexandra Lopes. “O cão acaba por ajudar a atingir os objetivos estipulados pelo terapeuta de uma forma mais célere”, explica.

Já o segundo projeto, através da intervenção de uma psicóloga e uma educadora de infância, pretende dar apoio às famílias e estimular a criança no seio familiar. “O que acontece é que nós, pais, colocamos sempre os filhos à frente, então todo o esforço da família vai para que a criança tenha o máximo de acompanhamento possível. Por vezes, esquecemo-nos de nós próprios e acabamos por ficar para segundo plano”.  Assim, “Lá em casa usamos lupa” pretende atingir uma “harmonia” entre o apoio dado à criança e aos seus familiares.  

A APATRIS 21 desenvolve igualmente um projeto no concelho de Faro – o “Atelier de Competência” – que permite complementar o horário escolar de crianças e jovens com síndrome de Down, que naturalmente “na escola não conseguem ter todo o tipo de apoio e terapias que precisam de desenvolver”. Trata-se, por isso, de um projeto com resposta única na região.

Ambas as responsáveis destacam a importância da ação deste tipo de associações, já que têm um papel chave no acompanhamento não só dos portadores de Trissomia 21, mas também das pessoas que os rodeiam. “As pessoas com síndrome de Down podem levar uma vida igual à dos seus pares, desde que lhes seja dada a oportunidade para tal”. “Não é preciso abdicar da vida, porque se deu uma vida“, conclui Alexandra Lopes.

Artigo editado por Filipa Silva