Desde que a epidemia, tornada pandemia, passou a registar oficialmente os casos suspeitos e depois confirmados com o contágio do novo coronavírus, que se tem assistido à suspensão de consultas, tratamentos e rastreios nas variadas unidades de saúde em Portugal.

A resposta imediata dos serviços de saúde foi, como seria de esperar, canalizada para o combate à pandemia. Mas quais as implicações para o tratamento dos doentes com AVC – uma das principais causas de morte em Portugal – face às mudanças impostas pela pandemia COVID-19?

Ao JPN, Miguel Rodrigues, médico neurologista, assegura que “ser vítima ou ser sobrevivente de um AVC, por si só, não coloca o doente em maior risco de ter COVID-19”. Contudo, lembra o membro da Direção da Sociedade Portuguesa do AVC (SPAVC), os doentes de AVC geralmente “pertencem a um grupo de risco por serem idosos, por terem uma doença crónica como diabetes, hipertensão arterial, doença cardíaca, doença respiratória ou doença renal crónica”.

O especialista deixa, por isso, o conselho: “É muito importante que estes doentes que pertencem a grupos de risco mantenham distanciamento social e permanência no domicílio durante a pandemia, como recomendado pelas autoridades de saúde”.

Tambem ao JPN, Rui Cernadas, médico especialista em Medicina Geral e Familiar, lembra que “além da infeção COVID-19, as pessoas continuam a sofrer de tudo o que já as afetava”. Para o membro da Comissão Científica da Sociedade Portuguesa do AVC (SPAVC), não devemos ter ilusões: “O impacto na saúde individual vai ser enorme e vai ocorrer pela passagem para segundo plano de quanto não caiba no cenário epidemiológico dos próximos 12, 18 ou 24 meses”, afirma.

Incisivo, o membro da SPAVC questiona se “alguém acha que a atividade programada hospitalar vai poder encaixar com a onda pandémica nos próximos tempos?”. “Não me sinto verdadeiramente tranquilo, nem otimista”, responde Rui Cernadas.

A literacia na saúde

O acesso deficitário aos cuidados primários de saúde em Portugal é, no entender do neurologista, um “problema da baixa literacia em saúde, temática que os governos e os Estados sempre têm desprezado”. Rui Cernadas cita o estudo “Literacia em Saúde na Doença Crónica”, publicado no final do ano passado, para demonstrar que à “falta de literacia se associava a maior tendência para doenças crónicas”.

O estudo, desenvolvido pela Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa (ENSP-NOVA), revela que 55% das pessoas com doença crónica têm um nível baixo de literacia em saúde e que, por esta razão, “são estes doentes que mais recorrem a urgências hospitalares e consultas, quando comparados com doentes com níveis mais elevados de competências básicas em saúde”, assegura o médico.

E agora com a COVID-19?

Rui Cernadas defende a criação de “instalações móveis ou fixas disponibilizadas por autarquias ou forças armadas”, combatendo a falta de estruturas de raiz ou adaptadas em Portugal, permitindo assim a “acessibilidade e segurança nos cuidados primários”, dos vários doentes crónicos que, por efeito do combate à pandemia ao novo coronavírus, não conseguem ser vigiados e tratados nas unidades hospitalares existentes.

Para o médico neurologista, o SNS precisa de “libertar médicos” para estas unidades, sendo ainda necessário repensar o “seguimento assistencial dos grupos de risco ou vulneráveis”, assim como a “realização de rastreios”.

Os números

Segundo dados estatísticos, o AVC continua a ser uma das principais causas de morte em Portugal, sendo também a principal causa de morbilidade e de potenciais anos de vida perdidos no conjunto das doenças cardiovasculares.

O último relatório emitido pela DGS mostra que, em 2015, morreram 6.432 pessoas vitimas de AVC, uma taxa de mortalidade de 49,7%. O número de internamentos associados ao AVC ascendeu os 25 mil nesse mesmo ano.

Os dados do SNS, indicam os distritos do Porto e Lisboa com o maior número destes doentes, com 819 e 702 casos, respectivamente.

O caso Italiano

Itália continua a ser o país europeu mais atingido pela COVID-19. É de lá que nos chega a experiência mais real e atualizada do impacto sobre o tratamento de doentes que sofreram um Acidente Vascular Cerebral (AVC).

Miguel Rodrigues considera que os meios do SNS português “não são superiores aos da Lombardia”, admitindo por isso que a experiência dos médicos italianos com doentes de AVC nesta fase de pandemia “possa servir de perspetiva para o que venha a ocorrer em Portugal”.

O que se passa no Norte de Itália, mais concretamente na região da Lombardia, é o fruto da pandemia do novo coronavírus, com hospitais dedicados até aqui ao AVC a serem “sacrificados para prestar assistência a indivíduos com doença respiratória”. Quem o diz é o médico Italiano Francesco Corea.

O Presidente da Comissão para as Redes Sociais da Sociedade Europeia de AVC (ESO) relata que os “hospitais de menores dimensões foram convertidos em centros médicos para pacientes estáveis ​​com COVID-19”, provocando a “desarticulação das redes de AVC previamente operacionais e eficientes”, indica Francesco Corea.

Com a escalada no número de infetados e de doentes internados portadores da COVID-19, o sistema de saúde Italiano restringiu os exames e procedimentos de rastreio médico não urgentes. “Não há tempo para as medidas habituais de prevenção primária do AVC. Os tratamentos cirúrgicos não urgentes são adiados várias semanas”, revela Corea.

Para o médico especialista, os efeitos da concentração de esforços nos doentes com COVID-19, fazem-se sentir na emergência pré-hospitalar, que está “assoberbada com os casos respiratórios”, com o paciente a “demorar mais tempo a chegar ao hospital”, resultando numa “qualidade inferior para a tomada de decisões”.

Com o risco de contágio pelo novo coronavírus, o acompanhamento dos doentes pelos familiares não está a ser feito, o que para Francisco Corea é “um fator de perda de eficácia no tratamento do AVC”. “A colheita do histórico clínico é feita por telefone, tornando o processo mais moroso e incerto”. Além do mais a presença dos familiares nos primeiros dias após um AVC é muito útil”, diz o especialista, num momento em que o acesso às enfermarias está também restringindo.

O transporte destes doentes foi reduzido por “indisponibilidade de veículos e mobilização de pessoal especializado” para a COVID-19, aumentado assim “o risco de contágio, na passagem em dois hospitais diferentes, com diversos profissionais”, conta o especialista italiano. Também aqui os médicos italianos têm de escolher quem tratar, com Francesco Corea a indicar que “deve ser ponderada a razão risco/benefício e selecionados os doentes de forma criteriosa, para evitar transportes fúteis”.

O médico especialista de doenças neurológicas assegura que é possivel que “no futuro os cuidados de reabilitação respiratória aos sobreviventes da COVID-19 desviem profissionais e meios previamente envolvidos na reabilitação do AVC”. Face à impossibilidade de fazer os tratamentos de reabilitação nas instalações hospitalares e comunitárias com segurança, o médico italiano sugere que “os doentes com AVC devem aprender exercícios que possam fazer em casa, mantendo o isolamento social”.

Artigo editado por Filipa Silva