Em Dia Mundial do Teatro, a sala de espetáculos do Teatro Nacional São João (TNSJ), no Porto, que ainda este mês soprou as 100 velas, tem as portas fechadas. Lá dentro, o palco não tem atores e a plateia não tem público. Em pleno paradigma de isolamento social, o palco é online e o público pode sentar-se em frente a ele no sofá de sua casa.

As cortinas virtuais abrem esta sexta-feira, às 22h00, com a apresentação de “Castro”, uma peça encenada por Nuno Cardoso. Em condições normais seria apresentada ao vivo, mas hoje vai ser transmitida digitalmente porque “a reinvenção é sempre possível desde que nunca deixemos de ser quem somos”, como diz. A estreia virtual marca o final das celebrações do Dia Mundial do Teatro, que se estenderam por toda a semana.

O diretor artístico do TNSJ também nos fala de sua casa, o posto de comandos a partir do qual vai ver em cena a peça que dirigiu. Esta estreia de “Castro”, diz, é apenas um “olá” até ao momento em que se possam abrir as portas do Teatro aos portuenses para celebrar a “arte da comunidade” em comunidade.

Em conversa com o JPN, Nuno Cardoso destaca a criatividade em tempos de isolamento e a importância das pessoas para o teatro, sempre com o TNSJ em pano de fundo. Para o diretor artístico, o São João é “o sítio onde se volta sempre” e espera que os portuenses também o vejam “como aquela torradeira que está na banca: não é o eletrodoméstico mais recente ou mais bonito, mas é o que se usa todos os dias ao pequeno-almoço para fazer aquelas torradas de que tanto se gosta”.

JPN: Idealmente, como seria celebrado o Dia Mundial do Teatro no TNSJ?

Nuno Cardoso: Idealmente, o dia seria celebrado em comunidade. As portas do teatro abrir-se-iam, faríamos várias atividades, traria a “Castro” em viva voz e em corpo no Teatro e estaríamos a par e passo com a nossa cidade e com o nosso público. Neste caso, vamos tentar fazer a mesma coisa: estar com o nosso público, com a cidade e com o país no momento em que passamos e com os meios que temos. Vamos estrear a “Castro” digitalmente, vamos fazer uma visita guiada e já proporcionamos vários downloads de peças de teatro. Vamos ainda assim fazer do Dia Mundial do Teatro uma celebração daquilo que ele é: uma arte da comunidade.

O espetáculo online desta sexta-feira vai provar que o teatro não tem limites físicos?

Vai provar que o teatro tem outros caminhos que não o palco, mas continua a ter como grande carácter distintivo essa capacidade de juntar no mesmo espaço pessoas e essas pessoas discutirem o que é viver, juntas. Portanto, esta estreia digital é só um “olá” para nos encontrarmos mais tarde todos juntos, felizmente, numa época em que consigamos ultrapassar esta provação que agora temos de sofrer.

O São João vai transmitir a “Castro” amanhã e tem feito transmissões pelas redes, o Dona Maria II e muitos outros espaços de teatro também. Este novo paradigma pode levar novos públicos ao teatro físico quando tudo isto passar?

É a nossa esperança que isto seja motivo de interesse para que as pessoas mais tarde se possam reencontrar numa sala de teatro.

João Garcia Miguel (encenador Teatro Ibérico) disse sobre esta conjuntura que não há teatro sem perdigoto, não pode haver teatro sem o contacto. É possível adaptar o teatro à distância sem perder energia/sentimento?

É possível criar uma presença do que é o teatro e, nesse sentido, suscitar a memória do “perdigoto”, se quiser citar. Mas é muito difícil o teatro encontrar o seu público que não na sua proximidade. Mas é uma arte muito resiliente, não é? Já dura há muito tempo e já teve várias iterações e paradigmas, portanto, não ponho as minhas mãos no fogo sobre a sua capacidade de adaptabilidade e sobre a sua necessidade, seja em formato digital e à distância, seja na proximidade de uma sala de espetáculos.

A arte é uma necessidade, portanto, extravasa. É como agitar uma garrafa de água com gás: acaba por extravasar todo o tipo de embalagem que lhe querem meter

Criativos por defeito que são os encenadores, sairão novas ideias para peças deste isolamento?

Não tenho a mínima dúvida. Já assistimos agora a várias manifestações dessa criatividade, não só de encenadores, mas dos atores e de todos os criativos. A arte é uma necessidade, portanto, extravasa. É como agitar uma garrafa de água com gás: acaba por extravasar todo o tipo de embalagem que lhe querem meter.

Considera que as pessoas tentam fazer o mesmo esforço que faziam antes para consumir cultura agora?

É uma pergunta que se pode responder à posteriori. Estamos numa situação delicada, estamos em distanciação social e temos este problema gigante para ver enquanto país e enquanto sociedade. Portanto, neste momento, quanto muito o teatro, a arte, pode e deve ajudar e comprometer-se nessa luta que estamos a ter.

O mundo possivelmente vai entrar numa profunda crise económica depois desta crise de saúde. A Cultura é dos primeiros setores a sentir a falta de apoio. É possível não sentir angústia? Como é que acha que poderiam ter mais apoio?

Acho que toda a gente que trabalha neste mundo sente angústia em relação a isto, mas neste momento não está em número um na nossa lista de prioridades. A prioridade agora é estarmos próximos dos outros. Paulatinamente, Portugal tem vindo a constituir o que tinha e o que perdeu com a crise económica de 2008. Quer-me parecer que, pela atitude da senhora ministra da Cultura e por aquilo que veio a lume sobre a maneira como estão a responder a esta crise, que as instituições responsáveis, pelo menos, estão a sinalizar que não vão deixar que a Cultura seja uma espécie de resquício no acerto de contas de todas as mudanças da convulsão que isto vai provocar na nossa sociedade.

O São João foi e sempre será a minha casa-mãe. É o sítio onde se volta sempre

“A Morte de Danton” foi a primeira encenação em que participou enquanto diretor artístico do TNSJ, em setembro de 2019. O que é que o texto lhe ensinou sobre si mesmo e o que aprendeu com a encenação?

Quando uma pessoa encena uma peça, seja “A Morte de Danton”, seja a “Castro”, e convive com elas – porque uma peça não se esgota na estreia – basicamente enceta um diálogo consigo próprio. O que “A Morte de Danton” me ensinou (ou me lembrou, porque é um texto que me acompanha desde muito cedo) é que aquilo que foi criado na Revolução Francesa, aquele campo de ténis, desde a Declaração dos Direitos do Homem até à Constituição, é o espaço de jogo das sociedades modernas, das sociedades europeias de direito. É uma coisa de que nos devemos lembrar todos os dias. Aliás, são esses assuntos que estão na ordem do dia numa altura em que precisamos todos de ser solidários. Precisamos todos de remar para o mesmo lado como uma sociedade de iguais. Ensinou-me isso, tal como a “Castro” me ensinou que o amor é fundamental como motor da nossa ação. Uma pessoa quando faz as peças vai aprendendo, vai experimentando.

Além d’“A Morte de Danton”, que encenações é que mais gostou de fazer no São João até agora?

Gostei muito de fazer a “Castro”. Gostava de a estrear, anseio pelo dia em que a possa apresentar ao público ao vivo. Tenho ótimas recordações do “Veraneantes”, gostei muito do “Coriolano”, do “Medida Por Medida”, do “Bela Figura”… O São João foi e sempre será a minha casa-mãe. É o sítio onde se volta sempre, seja como encenador independente, seja como diretor artístico. O São João é um caso muito especial para mim.

E quais é que ainda gostava de fazer?

Mais tarde saberá, isso não lhe vou dizer [risos].

Vamos falar do centro educativo, que está a ter um sucesso arrebatador. Considera parte vital do teatro, nomeadamente do TNSJ, abrir os palcos à cidade?

Considero, se não o considerasse não tinha estimulado tanto o centro educativo, os clubes de teatro e todo esse envolvimento. Acho que além de ser um novo espaço de criação artística, também é um espaço de mediação fundamental para a relação do teatro com o seu espectador e, portanto, da relação da obra com a cidade. 

[O TNSJ é] como aquela torradeira que está na banca: não é o eletrodoméstico mais recente ou mais bonito, mas é o que se usa todos os dias ao pequeno-almoço para fazer aquelas torradas de que tanto se gosta

Considera que os portuenses sentem que as portas do Teatro estão abertas para eles?

O São João está com as portas abertas enquanto Teatro Nacional para o Porto desde 1995, sensivelmente, de uma forma continuada. Se quisermos criar uma metáfora, o São João já se tornou um hábito tão normalizado para o Porto que a gente já nem sente que ele está aberto. Acho que é uma coisa que as pessoas do Porto sentem que está lá e quando precisarem vão lá. Nesse sentido – perdoe-me o humor – parece-me um bocadinho como aquela torradeira que está na banca: não é o eletrodoméstico mais recente ou mais bonito, mas é o que se usa todos os dias ao pequeno-almoço para fazer aquelas torradas de que tanto se gosta.

As salas podem não esgotar sempre, mas há público. O público adapta-se à programação do TNSJ ou é a programação do TNSJ que se adapta ao público?

Isso é sempre um diálogo entre desafiar o público a aderir a outra coisa que não está à espera – quando achamos que é importante que o público se dê conta de um determinado criador, texto ou peça – e, por outro lado, é também uma leitura dentro disso do que naquele momento o público precisa ou o que é que o inquieta enquanto pessoa. Portanto, é um jogo duplo

Depois de 100 anos de TNSJ, o que é que deseja para o Teatro?

Mais 100 anos. 

O exercício da memória é sempre fundamental, não de uma forma arqueológica, mas para viver o presente, e para o viver bem

Ainda há tempo para se reinventar sem perder a idade?

Há sempre tempo para nos reinventarmos, enquanto pessoas, enquanto instituições… Enquanto pessoas, dou-lhe um exemplo: o senhor do IKEA só começou a fazer o IKEA depois da reforma. E enquanto instituições, há instituições e criadores que constantemente se reinventam. A reinvenção é sempre possível desde que nunca deixemos de ser quem somos.

O passado abre ou potencia o futuro?

Acho que sim. Nós vivemos com os pés assentes na nossa memória. Vivemos numa sociedade judaico-cristã, cujo imaginário é feito através da memória. Acho que era o Vitorino Magalhães Godinho que dizia: “conhecer o passado para viver o presente e descortinar o futuro”. O exercício da memória é sempre fundamental, não de uma forma arqueológica, mas para viver o presente, e para o viver bem.

Artigo editado por Filipa Silva.