A propagação da COVID-19 nos lares de idosos é preocupante. A espera desespera entre funcionários cansados, a trabalharem “24 sobre 24 horas”. Os testes à COVID-19 começaram esta segunda-feira a ser realizados, pelo que até agora a solução passava por recorrer a laboratórios privados. Os lares clandestinos, até agora negligenciados, não estão imunes ao vírus, muito menos ao medo da exposição.
Este domingo (29), na conferência diária da Direção-Geral da Saúde (DGS), a ministra da Saúde, Marta Temido, deixou claro que a “preocupação central” do Governo se foca, agora, nas estruturas residenciais para idosos, independentemente da sua tipologia. “É urgente que todos se preparem e respondam disciplinadamente perante um caso suspeito”, alertou.
A partir dos 70 anos, os doentes com COVID-19 são considerados de risco. De momento, a taxa de letalidade nesta faixa etária é de 8,1%, superior à taxa geral de 2%, de acordo com a ministra da Saúde. Contudo, os valores são sensíveis à evolução da pandemia.
Nesse sentido, esta segunda-feira começou a operação de testes de diagnóstico aos lares de idosos espalhados pelo país. A ação é levada a cabo pelo Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, que tutela os lares, em conjunto com o Ministério da Ciência e com as parcerias da Cruz Vermelha Portuguesa e do Instituto de Medicina Molecular (IMM) da Universidade de Lisboa, que inclusive desenvolveu um kit próprio para diagnosticar a COVID-19.
Em declarações ao jornal Público, a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho avançou a medida e, também ao mesmo jornal, o ministro da Ciência, Manuel Heitor falou numa “operação de logística complicada”, porque “as amostras têm de ser feitas nos lares e entregues no laboratório”.
A recolha das amostras será feita principalmente pela Cruz Vermelha Portuguesa e no início da primeira semana vai começar nos lares de Aveiro, Évora, Guarda e Lisboa porque, segundo a ministra Ana Mendes Godinho, foi realizada “uma análise de risco em função dos concelhos onde há mais lares e onde há mais lares com maior número de pessoas” e que vai começar pelos “profissionais que estão a trabalhar nos lares – são quem entra e sai dos lares e podem ser veículos da infeção – e também em pessoas que tenham algum tipo de suspeita e sintomas”. Ainda segundo a deputada, “o IMM consegue fazer 150 a 200 testes por dia na primeira semana de operação”.
O panorama possível
A DGS ainda não avançou com números oficiais da população infetada nos lares de idosos do país. Apesar destes números estarem em constante atualização, algumas instituições do país têm comunicado informações sobre utentes e funcionários infetados, assim como os primeiros óbitos.
Apesar dos casos de infeção em lares de idosos estarem distribuídos pelo país, é nas regiões Norte e Centro que se regista a maior incidência. No “Asilo de São José”, em Braga, por exemplo, havia 90 pessoas em quarentena, entre utentes e funcionários, na sexta-feira passada (27). De momento, já se conhece o falecimento de dois utentes.
Há uma semana, foram transferidos 32 utentes de um lar de Famalicão, Braga, para o Hospital Militar do Porto, depois de se terem identificado casos positivos que resultaram na quarentena de 18 funcionários. Este foi o primeiro lar a ser evacuado. Entretanto, operações semelhantes já aconteceram noutras estruturas residenciais. Já há um segundo lar em Famalicão com casos positivos de COVID-19.
Numa residência sénior da Maia, Porto, são já contabilizadas duas mortes entre os utentes, além de 20 casos de infeção, confirmados já na sexta-feira (27). A instituição “O Amanhã da Criança” também iniciou o processo de evacuação na sexta-feira à noite, com 58 idosos a serem transferidos para uma unidade hoteleira. O “Lar de Santo António” é o segundo no concelho com casos confirmados de infeção.
Em Vila Real, no “Lar da Nossa Senhora das Dores”, 53 idosos foram transferidos para uma unidade hospitalar privada na Trofa, Porto. O lar tinha já confirmado a infeção de 88 pessoas, utentes e colaboradores. Na “Misericórdia de Resende”, Viseu, o panorama é de 33 casos confirmados de infeção e dois óbitos. Em Coimbra, o “Centro Paroquial de Bem Estar Social de Almalaguês” regista uma vítima mortal da COVID-19.
No Porto, a Câmara Municipal anunciou que todos os idosos e funcionários dos lares da cidade vão ser testados. Segundo a informação avançada na quinta-feira (26), os testes serão feitos com o apoio do Hospital de São João. Mas esta não é a realidade vivida no resto do país.
Porque “o tempo está a contar”, recorre-se a laboratórios privados
Também em Albergaria, Aveiro, há já dois óbitos entre os utentes infetados. O JPN falou com a direção técnica do lar da “Geriabranca”, quando ainda só se registava uma morte. O “tempo de espera por decisões concretas” levou a gerência a recorrer a um laboratório privado, para poder testar utentes e funcionários.
Na madrugada da segunda-feira passada (23), foi detetado o primeiro caso. A resposta – tardia e insuficiente – chegou no dia seguinte (24), à noite, como conta Lurdes Reis, diretora técnica. Só foram disponibilizados seis testes, quando a instituição acolhia 28 utentes.
Nas instalações continuam 25 utentes, dos quais três estão infetados com o novo coronavírus. Há outros dois em situação de internamento e o registo de um óbito. Os que ainda não tinham sido testados puderam fazê-lo na quinta-feira e esperam os resultados do laboratório privado.
A cuidar dos 25 utentes, está uma equipa de seis pessoas – as mesmas que se encontravam no lar quando chegou a primeira confirmação de infeção, na madrugada de segunda-feira. “A partir daí, o turno que estava a trabalhar durante a noite, que saía às 07h00 da manhã, ficou; o turno das 07h00 da manhã entrou e não houve mais movimentação de pessoal”, expõe a diretora técnica, que também está dentro das instalações.
Além do “cansaço físico e psicológico” das ajudantes de ação direta, que estão a trabalhar há cinco dias, “24 sobre 24 horas”, o tempo de espera também prejudica os idosos. “Tiveram que ficar em isolamento nos próprios quartos e está a deteriorar-se o seu estado geral: o físico, porque não conseguem movimentar-se como seria o ideal e o cognitivo, porque estão sobre pressão, ansiosos”, explica Lurdes Reis.
Na instituição, aguardam-se os resultados para se diferenciarem os casos positivos dos negativos. A diretora técnica garante que serão tomadas medidas com urgência e relembra que “o tempo está a contar, e muito!”.
O Partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) já propôs ao Governo que todos os funcionários de lares de idosos e instituições de acolhimento de crianças e jovens sejam submetidos a testes obrigatórios e regulares à COVID-19. Na proposta de resolução do partido, que data de segunda-feira (23), além dos testes periódicos, deve ser criado um plano de apoio a estas instituições, articulando-se o Governo e os poderes locais.
O Governo insiste que as instituições devem ter planos de contingência. Em declarações ao JPN, Rui Fontes, presidente da Associação Amigos da Grande Idade (AAGI), sublinha dois problemas para os quais já tinham avisado: a falta de preparação dos lares e a falta de tomada de medidas. A título de exemplo, refere que muitos lares funcionavam mal devido à falta de formação dos profissionais e falhas da Segurança Social na fiscalização dos lares.
Lares clandestinos: “um ponto desmazelado da sociedade”
O presidente da AAGI alerta para a existência de cerca de três mil lares clandestinos em Portugal, aos quais as famílias recorrem por não terem meios. Serão mais de 50 mil pessoas sem condições de segurança, como a partilha da mesma divisão por sete ou oito utentes. Segundo a mesma fonte, estas instituições não divulgam informações por recearem problemas. Com o aparecimento da COVID-19, a falta de legislação e de zonas de isolamento pôs a descoberto este problema. As dificuldades sentidas expõem um “ponto desmazelado da sociedade”.
A AAGI espera a tomada de respostas fortes nas medidas de contingência, como a permanência dos idosos nos lares, prevenindo que a taxa de infetados não ultrapasse entre 20 a 25% dos residentes, em cada lar. Contudo, Rui Fontes acredita que o número pode chegar aos 50%, metade da lotação das instituições. Espera, por isso, que a GNR, a Proteção Civil e as Juntas de Freguesia tomem o controlo da situação.
Apesar de tudo, o presidente da AAGI acredita que o Governo tem feito os possíveis, mas que vivemos um tempo angustioso.
Ainda assim, depois do anúncio de Graça Freitas, diretora-geral da Saúde, de que os lares de idosos devem recorrer aos laboratórios particulares, públicos ou ao INEM, da sua área geográfica para pedirem os testes aos residentes de cada lar, Rui Fontes diz que os laboratórios particulares ainda não foram informados.
A mesma fonte chama à atenção para um estudo de caso, realizado numa casa de repouso em Kirkland, nos Estados Unidos. Nessa instituição, que albergava 140 residentes e empregava 180 funcionários, a propagação da COVID-19 causou 33 mortes e 66 pessoas foram transferidas para o hospital. O presidente da AAGI teme a evolução da situação em Portugal.
Já Lino Maia, presidente da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade (CNIS), acredita que os lares do país são, geralmente, bons, independentemente de serem privados ou clandestinos.
Ao JPN, explica que existem, além desses, outros lares que são parte de alguma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS). Nestes casos, o problema de contaminação é maior, já que albergam uma numerosa população e de saúde frágil. O presidente da CNIS fala num número superior a 200 mil pessoas, tanto em lares privados, como de IPSS.
Lino Maia está “convencido que muito está a ser feito para resguardar a situação”, mas os lares precisam de apoio. Nomeadamente, de todo o material de proteção individual como luvas, máscaras ou desinfetantes, e ainda retaguardas, na eventualidade de se precisar de reinstalar pessoas. Depois, é preciso garantir a desinfeção dos locais, sem esquecer a realização de testes. O padre Lino Maia refere, ainda, o apoio da comunidade, através do voluntariado.
O líder da CNIS não perde a esperança de que a comunidade se vai envolver para ultrapassar a situação, já que diz que têm sido dadas boas provas por parte dos portugueses. Mais ainda quando os próximos meses se preveem economicamente difíceis, devido à instabilidade e ao desemprego.
Por fim, também a Associação de Aposentados, Pensionistas e Reformados (APRe!), em comunicado de imprensa, revelou as suas preocupações para com a atual situação.
Até ao dia 24 de março, a associação ressalta os dados revelados pelo Secretário de Estado da Saúde, que revela que 80% das vítimas mortais são pessoas com mais de 70 anos e que muitos vivem não só em lares como em “profunda solidão”.
A APRe! agradece ainda a todos os profissionais de saúde e também àqueles que trabalham com os cidadãos mais velhos. Espera que os rastreios já anunciados sejam realizados o mais depressa possível e pede solidariedade intergeracional neste momento difícil.
Na conferência de ontem (29), da DGS, Marta Temido reforçava uma série de cuidados que as direções técnicas das estruturas residenciais para idosos devem assegurar. A distância de um metro e meia a dois metros entre camas, cadeiras e cadeirões, assim como a utilização das áreas comuns por turnos foram medidas referidas. Também a organização dos trabalhadores em equipas e turnos, sem contacto entre si, deve ser garantida.
Quando se identifica um caso suspeito, há que isolá-lo, para além da colocação da máscara, válida para utentes e profissionais. A direção técnica do lar deve ser logo informada, para que se ative a intervenção da autoridade de saúde local, que é quem promove a realização de testes a todos os suspeitos.
A ministra da Saúde sublinha a importância de separar os casos confirmados de COVID-19, dos não confirmados. Quando um lar não tem condições que permitam essa separação, devem ser ativados espaços alternativos, com equipas de apoio em ambos os locais.
Neste âmbito, Marta Temido apela à mobilização do ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, para que possa ser contactado por voluntários, profissionais de saúde ou não, para garantir que ninguém fica “abandonado à sua sorte”.
Artigo editado por Filipa Silva.