Com 102 anos, Manoel de Oliveira era o realizador mais velho em atividade, a nível mundial. Vítima de uma paragem cardíaca há cinco anos, o cineasta português foi o único a assistir à passagem do cinema mudo para o sonoro e do preto e branco para cores. Autor de 32 longas-metragens, Manoel de Oliveira dedicou 88 anos da sua vida ao cinema.

Portuense de nascimento, Manoel de Oliveira começou a carreira cinematográfica na cidade natal. A relação artística entre o cineasta e o Porto é desde muito cedo explorada. Desde Douro, Fauna Fluvial e Aniki-Bóbó – trabalhos que deram à Invicta uma identidade cinematográfica – até O Pintor e a Cidade e Porto da Minha Infância – que a reforçaram – a cidade do Porto é a casa cinematográfica de Manoel de Oliveira.

As quatro obras, todas ligadas ao rio Douro, apresentam a evolução da cidade e as suas representações ao longo do tempo, a partir de imagens de diversas épocas e estilos cinematográficos.

O olhar de Manoel de Oliveira já observaram e interpretaram a cidade do Porto aos olhos de crianças, jovens e adultos: a visão do próprio criador, dividido por diferentes fases da sua vida.

Para o diretor da Casa do Cinema Manoel de Oliveira, António Preto, que esteve à conversa com o JPN, “a cidade [do Porto] não se limita a ser um décor ou pano de fundo para as visões cinematográficas de Oliveira”. “É matéria de observação e matéria do discurso, nalguns casos”, sendo em todos “objeto de reflexão”, explica.

Douro, Fauna Fluvial

“O Douro, rio Português, possui uma vida própria característica, que justifica a sua paisagem marginal e as atitudes da gente que em sua volta trabalha.”

Assim começa o primeiro trabalho do cineasta português, um documentário. Data de 1931 e trata-se de uma curta-metragem chamada Douro, Faina Fluvial. O Porto retratado por um Manoel de Oliveira de 23 anos de idade é um Porto ambivalentetradicional e, ao mesmo tempo, moderno.

“Esse primeiro filme maravilhoso não é feito exatamente sobre o Porto, mas sobre o Douro: não aquele Douro vinhateiro, mas o Douro que passa na cidade do Porto”, explica Paulo Filipe Monteiro que, além de realizador, é ainda professor catedrático do departamento de ciências da comunicação da Universidade Nova de Lisboa.

O ponto explorado em Douro, Faina Fluvial é o papel da Ribeira na vida económica da região Norte de Portugal. No princípio dos anos 30, a zona que hoje foi transformada num ponto turístico de referência era um ponto de descarga de carvão, víveres e vinho que alimentavam a cidade. “Um filme – tanto o documentário como a ficção – testemunha inevitavelmente as circunstâncias (históricas, técnicas, políticas, sociais…) do momento da sua realização, ele é um ‘documento’ do seu tempo”, explica o diretor da Casa do Cinema Manoel de Oliveira ao JPN.

O Porto está diferente, passou-se quase um século. Aquele Porto dos mercados, do rio e das próprias gentes está muito diferente”, ressalva Paulo Filipe Monteiro

Já Mário da Silva – que estudou o trabalho de Manoel de Oliveira e a sua relação com o Rio Douro na sua dissertação de mestrado, da Universidade Lusófona do Porto – diz que, entre planos que mostram trabalhadores demasiado humanos e a presença do ferro num Porto modernizado, o cineasta português consegue capturar “a imagem da convivência entre aquilo que é considerado tradicional e aquilo que é visto como avançado, entre o homem e a máquina”.

Apesar da crítica nacional não ter recebido bem o seu trabalho, a crítica internacional atribuiu-lhe grande reconhecimento.

Aniki-Bóbó

Em 1942 surgiu Aniki-Bóbó, a primeira longa-metragem do realizador. O projeto só viu a luz do dia devido às influências políticas do produtor. A imprensa conservadora da época considerou-o imoral

O primeiro filme de ficção do cineasta português é um regresso ao Porto ribeirinho, retratado na curta Douro, Fauna Fluvial. O poema “Os Meninos Milionários”, de Rodrigues de Freitas, foi a inspiração de Manoel de Oliveira.

As personagens principais do filme são crianças, o que transforma radicalmente o contexto visual da obra. Aniki-Bóbó conta a rivalidade entre dois rapazes que gostavam da mesma rapariga. O facto de ter sido rodado nas margens do rio Douro e com atores amadores que eram das zonas ribeirinhas, pode levar o espectador a pensar que se trata de um documentário. Mas, segundo Mário da Silva, Aniki Bobó contém um “realismo intuitivamente crítico à sociedade”.

Apesar de o Porto ser facilmente reconhecido, nunca se faz uma menção a um único lugar, permitindo uma construção cinematográfica que não tem em conta a veracidade ou rigor documental.

A sociedade portuense é retratada como repressiva. “Viviam-se os tempos da Segunda Grande Guerra e as brincadeiras mais ou menos inocentes destas crianças eram, como bem se vê no filme, vigiadas de perto pela polícia. A figura do polícia está, de facto, muito presente no filme e ela é bem representativa do estado de policiamento instituído pelo Estado Novo”, diz António Preto. 

Alguns autores internacionais elogiaram sobremaneira esta longa-metragem que ganha relevância por ser anterior ao neo-realismo italiano. A crítica chega até a caraterizar Aniki Bóbó, como um dos propulsores do género

O Pintor e a Cidade

O Pintor e a Cidade, de 1956, é mais uma curta-metragem do Manoel de Oliveira que tem mais uma vez, como pano de fundo, a cidade do Porto. O trabalho resulta de uma simbiose entre o cinema, de Manoel de Oliveira e a pintura, personificada por António Cruz. As visões artísticas de cada um juntam-se e dão vida à obra. Às duas linguagens principais do filme, junta-se, ainda, a música, com banda sonora de Luís Rodrigues.

Contudo, a relação entre a pintura e o cinema não é para António Preto a mais clara de todas. “Não sei se se trata de uma aliança entre o cinema e a pintura ou, antes, de um braço de ferro – ou, pelo menos, de um confronto, de uma contraposição – entre o cinema e a pintura”, admite o diretor da Casa do Cinema de Manoel Oliveira.

“Aquela que é conhecida como a escola portuguesa é uma escola muito pictórica. Essa escola desenvolve muito a ideia de criar imagens pictóricas no cinema. No filme O Pintor e a Cidade, há um pintor que pinta a própria cidade do Porto. A pintura, aí, está ainda mais presente”, esclarece Paulo Filipe Monteiro.

O filme aparece ao mesmo tempo que surge a cor no cinema. Este acontecimento levou Manoel Oliveira a decidir fazer um estágio na Alemanha para estudar o fenómeno. O realizador regressa da Alemanha em 1955 e começa, imediatamente, a rodar O Pintor e a Cidade. O filme tem um caráter muito estético e tecnicamente arrojado. A partir desse momento, a cor transformar-se-á num elemento importantíssimo para Manoel de Oliveira. “A cor é, nos seus filmes, um elemento expressivo muito importante, mais ainda, quando em muitos desses filmes há um rigorosíssimo trabalho de composição, próximo, nalguns casos, dos códigos de uma linguagem pictórica”, explica António Preto.

Em 1957, o filme foi harpa de prata do Festival Internacional de Curtas-Metragens. Na altura, Basil Wright, realizador britânico que entregou o prémio, descreveu assim O Pintor e a Cidade: “O filme português O Pintor e a Cidade foi o filme mais interessante apresentado neste festival. É uma obra cheia de originalidade, de imaginação, com magníficos exemplos de fotografia a cores, enquadramentos invulgares e uma montagem curiosa. A única razão porque não lhe atribuímos o primeiro prémio – não obstante o seu indiscutível mérito – foi por não ter conseguido, na nossa opinião, tornar bem claras algumas das ideias que procura exprimir.”

Porto da Minha Infância

“O Porto tocou as pessoas e isso comove-me”. Estas palavras são de Manoel de Oliveira e, com “o Porto”, Manoel refere-se ao filme Porto da Minha Infância. A longa-metragem foi estreada em 2001, ano em que a cidade do Porto foi considerada a Capital Europeia da Cultura. De regresso aos contextos visuais da sua cidade natal, a proposta fílmica de Porto da Minha Infância tem um caráter, sobretudo, nostálgico. Numa entrevista em que falava sobre a longa-metragem, o cineasta admitiu que “o rio, a água e o mar também existem mas as águas são outras. Enfim, nós também cá estamos e a cada dia mudamos. Eu já não sou aquele bebé que nasceu, nem sou aquele jovem que queria evocar em Porto da Minha Infância”.

A nota dominante do filme passa muito pela autobiografia do autor, mas Porto da Minha Infância, como explica o diretor da Casa do Cinema Manoel de Oliveira, é um “filme na primeira pessoa, votado às recordações de Manoel de Oliveira”. Apesar do conteúdo do filme apelar a memórias da infância e juventude do cineasta, António Preto também lembra que “o Porto que o filme retrata é e não é da infância de Oliveira, a época que o filme convoca é e não é da atualidade do passado”.

António Preto termina enunciando três questões que, acredita, emanam da obra de Manoel de Oliveira:

· “A que nos referimos exatamente quando falamos do passado?”

· “Como filmar e mostrar, através do cinema, uma coisa que já não existe e que, em boa verdade, talvez nunca tenha existido (pelo menos do modo como a posteriori se recorda)?”

· “Como fixar imagens de um mundo que só se deixa definir na permanente transformação?”

Manoel de Oliveira despediu-se há cinco anos, mas a sua obra será postumamente sempre conhecida. O contributo que o cineasta português deu à cultura do Porto, mas também à cultura nacional permanecerão indeléveis até que a memória nos fuja. 

Artigo editado por Filipa Silva.