A pandemia da COVID-19 não dá tréguas a um setor em claras dificuldades, mas a perspetiva é de esperança. O JPN falou com a livraria Poetria, no Porto, para tentar perceber como estão a ser enfrentadas as dificuldades de um vírus que vai para lá de patológico.

Para combater a “crise no mercado livreiro, que vem comprometendo a existência de pequenas livrarias em todo o país”, reforçada em período de pandemia, foi criada a ReLI – Rede de Livrarias Independentes. Lançada na quinta-feira, 2 de abril, a rede endereçou uma carta aberta aos órgãos de soberania, com propostas para ajudar o setor. Enquanto esperam pela resposta, livrarias e alfarrabistas apostam na venda online e na entrega ao domicílio, mas a quebra de vendas é acentuada.

Na carta ao Governo, a rede, que junta mais de meia centena de livrarias de norte a sul do país, aponta a introdução de medidas – umas “emergenciais” e outras “estruturais” – para auxiliar o setor perante os efeitos da pandemia.

A carta é assinada, em nome de todos, por José Pinho, da Livraria Ler Devagar, e Rosa Azevedo, da Livraria Snob, ambas em Lisboa. No distrito do Porto, são sete os estabelecimentos que se unem à iniciativa: Livraria & Editora Flaneur, Poetria, In-Libris, Livraria Edições 50Kg, Livraria Utopia, Salta Folhinhas e Varadero.

Estratégias para enfrentar uma situação “inédita”

A rede de livrarias chega com um objetivo central: o de “conjugar esforços para levarmos por diante os nossos projetos individuais e o grande projeto coletivo que é o de dotar o país de uma rede de livrarias especializadas e de proximidade”, dizem na carta aberta.

Pretende-se, acima de tudo, “delinear estratégias e ações comuns e enfrentar esta situação inédita”, pela “sobrevivência das livrarias independentes”.

ReLI – Rede de Livrarias Independentes | Foto: Tiago Serra Cunha

A ministra da Cultura, Graça Fonseca, afirmou na última semana que as livrarias poderiam continuar abertas ao público durante o estado de emergência, desde que impeçam o acesso dos clientes ao seu interior e, entre outras soluções, sugere que se façam as vendas através de postigo. As livrarias consideram esta uma solução “pouco adequada à realidade de uma livraria, e dos clientes que a procuram”.

A solução, na maioria dos casos, foi voltar a atividade para o online e para as entregas ao domicílio. Além das pequenas livrarias independentes, também grandes cadeias de vendas encerraram parte das suas lojas, mantendo apenas alguns serviços em funcionamento, e focaram-se nas vendas pela Internet – o caso da FNAC ou da Bertrand.

Vendas caíram 65% numa semana

Os livreiros recordam, na carta aberta, que a especulação imobiliária – “desenfreada, desnecessária e absurda” – foi uma das principais responsáveis pelo encerramento de muitas livrarias independentes ao longo dos últimos anos. Situação que tinha vindo a dar “sinais de algum abrandamento” em tempos recentes; como tal, “nos tempos que virão, esta é uma cautela que os governos e as autarquias têm que assegurar”, apelam.

Os livreiros independentes chamam a atenção para a situação que as micro e pequenas empresas do setor – de que são representativos – estão a enfrentar, especialmente nesta época de pandemia que deixa incerto o futuro próximo do comércio de proximidade como um todo.

Mais ainda num momento em que, em menos de uma semana, as vendas de livros baixaram drasticamente. Dados revelados no final da última semana pela Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL) à agência Lusa, com base em medições da consultora Gfk, revelam que as vendas caíram 65,8% numa semana, devido à pandemia. Uma quebra superior a dois terços do valor comum, em comparação com o mesmo período em 2019.

Foto: Polina Zimmerman/Pexels

Entre 16 e 22 de março (tendo o país entrado em estado de emergência a 19), foram vendidos cerca de 70.427 livros – menos 121,6 mil que no ano passado, em que se venderam 192.073 em período semelhante. Esta quebra representa uma perda de cerca de 1,6 milhões de euros no mercado, redução que atingiu especialmente as livrarias (73%) e os hipermercados (40%).

Números já elevados e que tendem a ser “demolidores” com a análise às semanas seguintes, descreve o presidente da APEL, João Alvim, à agência. Esperam-se “números baixíssimos, tanto nas livrarias como nos hipermercados”, cenário que prenuncia “uma situação dificílima que se está a viver neste momento, porque todo o circuito parou”, explica.

A expectativa é que esta situação demore meses ou até anos a recuperar, numa crise superior à vivida na anterior recessão neste setor em específico. Até porque, apesar das soluções inicialmente propostas, as vendas à porta ou ao postigo não estão a ter resultado.

Mesmo as vendas online, que têm sido a principal aposta da maioria dos negócios, não é representativa: segundo dados da APEL, as vendas virtuais representam 5% (ou menos) de todo o mercado livreiro português.

Números que parecem demasiado baixos tendo em conta as novas formas de compra, mas justificados pelos hábitos de compra dos portugueses: segundo o jornal “Expresso”, em 2016, o Eurostat assinalava que apenas 8% dos portugueses tinham comprado pelo menos um livro online no último ano; em 2018 só 27% dos portugueses tinham comprado algum bem ou serviço online.

Os custos acarretados pelas livrarias não são colmatados com vendas, o que impede a entrada de capital. Em consequência, torna difícil o pagamento de fornecimentos, rendas e salários a colaboradores.

Esta situação deixa em aberto a incerteza, prevendo-se o encerramento de vários estabelecimentos, que podem ir desde os mais pequenos até alguns de maior expressão. O mesmo se aplica aos editores, que ficam sem margem para colmatar os custos de produção dos livros que não estão a ser vendidos.

Pede-se financiamento e apoio aos mais pequenos

A carta aberta aos órgãos de soberania assinada pelos membros da ReLI vem tentar impedir um cenário mais negro. Os livreiros querem assegurar que “a banca não exclui o pequeno comércio das candidaturas às linhas de financiamento”.

Para suportar, maioritariamente, os custos das rendas e evitar despejos, pedem-se “apoios financeiros a fundo perdido destinados ao reforço de tesouraria ou ao pagamento das rendas, em articulação com as medidas que vierem a ser aprovadas para o comércio em geral”.

Os assinantes da ReLI apontam uma solução para o caso de impossibilidade de pagamento de rendas, como medida a longo prazo. As livrarias que possam vir a ser despejadas após o fim do estado de calamidade pública, bem como novos negócios que possam surgir, pede-se que sejam instaladas em edifícios que sejam propriedade do Estado, das autarquias ou de fundações e instituições privadas que sejam dependentes do Orçamento de Estado, para que assim possam subsistir.

Os livreiros sugerem, também que lhes sejam atribuídos “seguros de salários, ou equivalente, de modo a garantir um rendimento mínimo a todos” durante este período. Especialmente no caso dos sócios-gerentes destas micro e pequenas empresas, muitas vezes os únicos trabalhadores efetivos nestes estabelecimentos e que dependem dessa atividade.

Foto: Tiago Serra Cunha

É ainda exigido o cumprimento da Lei do Preço Fixo, “sem subterfúgios nem atropelos”, por parte das grandes cadeias de livrarias online – que “praticam descontos acima dos permitidos pela lei –, quer pelas próprias editoras – que concorrem com os sites das livrarias através da venda a retalho nos seus próprios sites”.

Pede-se que o reforço dos programas de compras institucionais – livros e revistas para bibliotecas públicas, escolares, ou municipais, mesmo em situações de encerramento temporário forçado – sejam realizados com consultas preferenciais às livrarias independentes. Este processo deve ter em conta a proximidade e não o preço, “que deveria ser o do PVP dos livros ou fixado num desconto mínimo (máximo de 10%) de modo a facilitar e não impedir a participação destes livreiros independentes nessas consultas públicas”, dizem.

Um esforço contínuo para sobreviver à crise

A Livraria Poetria, no Porto, é uma das integrantes da Rede de Livrarias Independentes. A única livraria de poesia e teatro da cidade tem casa desde 2003 nas Galerias Lumière e já é um marco deste “bairro” de Cedofeita, em estatuto de dinamizadora cultural.

Ao longo dos anos, as portas foram-se mantendo abertas – mesmo quando, em 2014, se pensava que se veria o fim da Poetria; apareceram novos donos e estava a casa renovada. Mas agora, de facto, fecharam, ainda que temporariamente.

A pequena loja virada para a Rua das Oliveiras está encerrada há cerca de um mês, devido à situação que se vive atualmente. Nuno Queirós Pereira, um dos gerentes do espaço, conta ao JPN que as vendas estão a ser “residuais”. Algo que deixa difícil ter “noção de como vai ser o futuro próximo”.

A situação “não se agravou”, mas mantém-se incerta. O prazo para abandonar as Lumière mantém-se estabelecido para março de 2021, mesmo depois do chumbo do projeto de hotel para as galerias. Apesar da incerteza, continua a haver rendas para pagar e outras despesas para cobrir. E é necessário continuar a vender para que tal seja possível.

Com as portas fechadas, torna-se imperativo encontrar novas formas de chegar ao público. A solução possível em tempos de isolamento é o envio dos livros ao domicílio – e a consequente consulta dos mesmos através de um catálogo digital.

Livraria Poetria, na Rua das Oliveiras | Foto: Poetria / via ReLI

Este momento serve, também, como oportunidade para a Poetria pôr em prática algumas estratégias de adaptação aos dias correntes e às necessidades dos leitores. Começou pela página no Facebook e, recentemente, pelo Instagram (que “resulta muito bem”), onde promove os livros que tem em catálogo através de publicações que os leitores podem consultar, fotografia a fotografia. O bookstagram, nicho da rede social voltado para os livros, recebe cada vez mais atenção e é, por isso, um potenciador de títulos entre os que gostam de ler e sonhar livros.

Mas a grande novidade surge na forma de uma loja online, que será lançada esta sexta-feira, 10 de abril. Através deste site, estarão disponíveis os títulos presentes no catálogo da Poetria, que nele podem ser comprados diretamente. Para o lançamento, a livraria continua a fazer descontos nas obras e a oferecer portes de envio para todo o país através de correio simples (com os livros a ser enviados uma vez por semana).

Para esta época especial, pedem-se medidas especiais. Por isso, Nuno Queirós Pereira e Francisco Garcia Reis, o outro dono da Poetria, testam ainda um novo serviço de estafeta (pelos próprios), que cobre as áreas do Porto, Vila Nova de Gaia e Matosinhos. A compra tem de ser, no mínimo, de 35 euros e a entrega tem custos diferentes: 3,99 euros para envio em algumas horas ou 5,99 euros para envio até uma hora.

Também a livraria Flanêur, outra das integrantes do projeto, está a fazer algo semelhante. Desde o seu aparecimento que os fundadores estão habituados a fazer entregas ao domicílio nas mesmas três zonas através de bicicleta, sendo já um serviço habitual. Para esta altura, e com a livraria fechada, decidiram que estas continuam e de forma gratuita (se for mais longe, levam o carro); esta é a “única forma de sobreviver” do negócio em época de pandemia.

Um futuro que se quer próximo

“Com uma loja fechada, renda para pagar e sem saber quando voltamos a abrir a loja… Não temos condições para a abrir neste momento. Com todas estas questões em cima da mesa, não sabemos até quando tudo isto se vai manter”, descreve o dono da Poetria ao JPN.

Mesmo assim, a perspetiva é otimista. O objetivo é reabrir “o mais rápido possível”, quando haja material e meios que assim o permitam. Esta abertura, “para os clientes que queiram aceder à loja”, virá a ser realizada em regime de marcação. Só que, para já, “este é um cenário hipotético, longe ainda de uma realidade” que pode demorar meses a concretizar.

Para já, “estamos a lutar”. A adaptação “é a nossa palavra-chave”, estando os fundadores a aproveitar para alavancar projetos e catálogo da forma possível. O apoio vem das vendas que já têm sido feitas, especialmente aos “vizinhos” – assim chamam os clientes habituais da livraria – e a pessoas que pedem livros específicos diretamente de várias partes do país; de qualquer modo, “uma loja aberta faz toda a diferença”.

O novo site, de visual renovado também para a marca da livraria, é a “solução possível” nestes tempos. Ferramenta que servirá, também, para promover obras da sua linha editorial própria, dedicada aos novos poetas portugueses, nascidos depois de 1980. A Fresca, já com oito livros no catálogo e mais três na calha, inclui na sua coleção obras como “Mar Subverso”, de Rui de Noronha Ozório, “Leopardo e Abstracção”, de Tatiana Faia ou “Par de Olhos”, de Inês Morão Dias. Também a revista “Tutano”, criada pela Poetria e dedicada a poetas, dramaturgos, críticos ou ilustradores, é alvo de destaque e não pretendem parar com estes projetos.

O problema principal é o duplicar de custos que todas estas medidas exigem. “Temos o custo da renda e agora temos o do transporte, da entrega, do combustível… E ainda por cima estamos a fazer descontos em tudo. Fazem-se vendas, mas depois no final vemos que não é suficiente. É muito complicado”, explica.

As outras iniciativas da ReLI

Além das estratégias propostas pelas próprias livrarias, a ReLI apresenta iniciativas próprias que complementam estes serviços. Nem todas as integrantes da rede aderem aos projetos (como é caso da Poetria), mas basta consultar o site da ReLI para saber quais os espaços aderentes.

A primeira das iniciativas conjuntas é a “Livraria às Cegas”. O desafio aos leitores é que escolham um dos negócios a participar e lhes peçam livros “de olhos fechados”. A ideia é que, mediante um pagamento igual ou superior a 15 euros, se receba um pacote-surpresa em casa, escolhido pelos livreiros com base numa série de perguntas originais que ajudam a decidir o título.

A campanha “Fique em casa, mas não fique sem livros” é outro exemplo. Pretende generalizar a compra de títulos a partir de livrarias independentes, apelando a uma seleção que será posteriormente enviada sem custos associados para além daquele pago pelo livro.

Estas iniciativas são um primeiro passo de uma rede que pretende ser, além de tudo, uma plataforma. Pretende-se que a ReLI venha a ser um espaço contínuo online que destaca estes negócios e permite a venda de livros através dos mesmos, o “embrião de uma central de compras e de distribuição”.

“As ruas estão desertas, e as pessoas, acantonadas em suas casas, não podem sequer ocupar os seus lugares nas trincheiras”, lê-se no manifesto. “O medo, as incertezas e o recolhimento progridem com a passagem do tempo”. Mas não se pode perder a esperança. Nuno Pereira, dono da Poetria, diz ao JPN que, mais que nunca, “é tempo de chamar a atenção das pessoas para a questão das livrarias, especialmente das camadas mais jovens”.

Não só como pontos de venda de livros, mas também “enquanto centros onde se pode buscar conhecimento, onde existem comunidades, onde se podem conhecer pessoas. É importante existir uma comunidade intelectual ativa“, conclui.

Artigo editado por Filipa Silva