Onde o isolamento é uma miragem, o novo coronavírus pode encontrar um terreno fértil. Ativistas, médicos e professores partilham as suas preocupações com o JPN.
Para quem foge ou vive na guerra, um vírus tende a parecer inofensivo. Mas não é. Pelo contrário, é em espaços como os campos de refugiados da Grécia e da Síria – sobrelotados, com acesso restrito a água, com poucos ou nenhuns cuidados médicos disponíveis – que um surto encontra “as condições quase perfeitas” para se espalhar.
O JPN conversou sobre a matéria com ativistas, médicos e docentes que estão, estiveram ou conhecem as condições vividas nos campos de refugiados dos dois países. Une-os a preocupação pela situação dramática que se pode gerar dentro da situação dramática que já existe.
Há um mês fechados, ansiamos pelo regresso à normalidade. Ali Kador, professor e ativista sírio, sabe o que isso é num país há dez anos em guerra: “espero que por aí o vírus seja parado e as coisas voltem rápido ao normal. Talvez um dia, também nós, voltemos à nossa vida”.
Mória: sete vezes mais pessoas do que o suposto
Grécia e UE têm plano de ação, mas avança devagar
Os passos portugueses
Uma situação “muito distópica”, em contexto europeu
Idlib: primeiro a guerra, depois o vírus
Números que podem mentir
Onde tendas fazem a vez de casas, o “isolamento social é impossível”
Um sistema de saúde degradado a tremer com a chegada do vírus
“Se chegar aqui, vai espalhar-se como fogo”
br>No início de abril, registou-se o primeiro caso de COVID-19 no campo de Ritsona, a norte de Atenas. Foi determinada a quarentena do campo, que abriga mais de dois mil residentes, depois de mais 20 terem testado positivo. Já há um segundo campo em território continental grego na mesma situação. Nas ilhas gregas de Lesbos e Chios, há registos de infeção desde o final de março. Se o vírus entrar nos campos, há muito sobrelotados, teme-se uma verdadeira “catástrofe”.
Mória: sete vezes mais pessoas do que o suposto
“A coisa mais importante a fazer para estarmos seguros do coronavírus é mantermos a distância uns dos outros. É muito difícil as pessoas manterem a distância dentro deste campo. Estão mais de 20 mil pessoas aqui, juntas, no mesmo sítio”. Desta vez, quem o conta é Deen Mohammad Alizadah, um dos residentes do campo de refugiados de Mória, em Lesbos. Mas não faltam relatos da sobrelotação deste e de outros campos, em território grego.
Lavar as mãos com frequência não é possível sem água e sabão. “O abastecimento de água deste campo é do ministério da ilha. Só fornecem durante duas horas de manhã, uma hora e meia à tarde e mais duas horas à noite”, explica ao JPN Deen Mohammad Alizadah. “Não existe água durante 24 horas, nem nos chuveiros”, acrescenta.
As instalações, projetadas para 3 mil pessoas, acolhem agora mais de 20 mil. As falhas no sistema de iluminação são uma constante. Além disso, “não existe eletricidade na maior parte dos sítios. A maior parte dos refugiados está no mato à volta do campo”, diz Deen Mohammad Alizadah.
Também o isolamento é uma miragem: “em cada tenda, vivem várias famílias, e se formos para as filas da comida, as filas para o banho, existe muita concentração de pessoas”. Algumas ONGs distribuem sabonetes, mas o stock é insuficiente. As máscaras existentes são, essencialmente, as fabricadas pelos próprios residentes do campo.
Porque “ninguém estava a fazer nada”, vários residentes decidiram unir-se numa comunidade, a Moria Corona Awareness Team (MCAT). O objetivo é “consciencializar, dar orientações aos refugiados, para sabermos quais as regras que temos que seguir, para estarmos seguros”, explica Deen Mohammad Alizadah. Afixaram cartazes e organizaram intervenções de recolha do lixo dentro do campo. “Existe um agente municipal que limpa o lado de fora do campo”, clarifica.
Membros da MCAT penduram cartazes de sensibilização e recolhem o lixo. IMAGENS: Muhannet al Mandeel, MCAT
Não se registam casos de infeção por COVID-19 em Mória. Mas a rápida propagação do vírus levanta vozes que alertam para a eventualidade de uma “catástrofe”. ONGs e movimentos espalhados por toda a Europa alertam para a necessidade de agir, fazendo correr petições que recolhem milhares de assinaturas.
A carta aberta do movimento #EuropeMustAct, assinada por mais de 60 mil pessoas, fez eco nas instituições europeias, com uma delegação a reunir-se, esta quarta-feira (8), com a comissária europeia dos Assuntos Internos.
A iniciativa #SOSMoria reúne quase 7 mil médicos europeus num apelo urgente para a evacuação dos campos gregos. “É uma ilusão achar que o surto de COVID-19 nestes campos pode ser controlado. 40 mil pessoas vivem em poucos metros quadrados”, alertam.
Annie Chapman, médica em Inglaterra, faz parte do #SOSMoria. Ao JPN, conta o cenário que encontrou em Mória, no início deste ano, ao serviço da Boat Refugee Foundation (BRF). “Tínhamos crianças com meningite, mas não eram casos normais de meningite, acho que devido a não terem uma alimentação adequada e todo esse género de coisas. Na realidade, até nos deparámos com cenários estranhos, como diarreia e vómitos”, descreve.
“Existem vários problemas de saúde feminina, relacionados com a gravidez e, depois, muitos problemas de saúde mental, como psicoses e ataques de pânico”, acrescenta. Apesar de já não estar em Mória, Annie Chapman mantém o contacto com alguns colegas de equipa que continuam no terreno. A partir de Inglaterra, acompanha os esforços: “o que está a acontecer agora é que algumas das organizações médicas se juntaram”.
“Tentaram montar um rastreio para o coronavírus. Estão a tentar mas é muito difícil…”, conta. Há cada vez menos trabalhadores humanitários e ONGs no terreno. Também os médicos são chamados a trabalhar nos seus países. Os braços, que já eram poucos, vão-se esgotando.
Há um único hospital na ilha de Lesbos, ao qual só se recorre em casos extremos. Foi para lá que Annie Chapman ligou, para tentar traçar o panorama atual. “Disseram-me que têm 20 ou 22 camas de cuidados intensivos. Na ilha toda! São para as pessoas todas que lá moram, para a população grega também!”, alerta.
São quatro as ONGs médicas no campo de Mória: Boat Refugee Foundation, Kitrinos Healthcare, Medical Volunteers International e Health Point Foundation. A Humans Before Borders (HubB) lançou uma campanha de angariação de fundos para estas quatro ONGs e outra que atua na ilha da Samos (Med EqualiTeam). A plataforma portuguesa apela à mobilização da sociedade civil, face à inércia da UE e estados-membros perante a atual “crise humanitária”.
Do lado de fora do campo de Mória, há uma equipa da Médicos Sem Fronteiras (MSF) que também socorre os residentes, mas veem-se sem mãos a medir. “Eventualmente os MSF, com mais dinheiro e notoriedade, poderiam ter uma intervenção melhor ou mais substancial, mas eles neste momento estão a focar-se mais na saúde psiquiátrica e materno-infantil e nem a esses conseguem dar resposta porque são muitos”, diz ao JPN Catarina Paulo, médica infecciologista.
Em fevereiro deste ano, esteve no campo de Mória em missão humanitária, e garante que “se havia pessoas sem trauma psiquiátrico, lá passam a ter”. Catarina Paulo diz que “há uma desresponsabilização por parte do governo grego e esta pandemia só veio pôr a nu ainda mais as dificuldades e pontas soltas que não devia haver”.
Grécia e UE têm plano, mas avança devagar
Ao JPN, fonte do Gabinete de Imprensa para as Migrações da Comissão Europeia garante que “as autoridades gregas estão a monitorizar a situação nas ilhas”, tendo já anunciado várias medidas de prevenção: “testagem obrigatória de recém-chegados”, “anúncios diários multilíngues” e “cumprimento das regras gerais de higiene e limpeza regular de áreas comuns, interiores e exteriores”.
A mesma fonte avança que a Grécia está a trabalhar na instalação de três unidades em cada campo: “uma pequena sala de exames para casos suspeitos”, “uma sala de recobro para aqueles que possam estar infetados e precisem de cuidados especiais” e “uma área de quarentena”.
Unidade instalada no campo de Mória, em Lesbos, para dar resposta aos primeiros casos de infeção por COVID-19. IMAGEM: Deen Mohammad Alizadah
Deen Mohammad Alizadah diz que, em Mória, ainda só foi instalada uma unidade para dar resposta aos primeiros casos de infeção que se verifiquem. “Mas se o coronavírus entrar neste campo, isto não é suficiente”, alerta. “Dá para ver na fotografia, é só uma «isobox»”.
No entanto, foram impostas restrições às entradas e saídas do campo. “Ninguém está apto a sair do campo para ir à cidade, ou para o lado grego, sem uma razão importante”, diz o membro da MCAT. Ir ao hospital, comprar medicamentos nas farmácias, ou fazer compras são alguns dos motivos que justificam as deslocações, depois de comunicação devida às autoridades policiais do campo. Segundo Deen Mohammad Alizadah, “a maior parte das pessoas estão a tentar e a aceitar”.
Há uma semana, a comissária europeia dos Assuntos Internos anunciou a realocação de 1.600 menores não-acompanhados em oito Estados-membros, apesar de as autoridades gregas já terem identificado “cerca de 2 mil menores não-acompanhados” para realocação.
“Os primeiros vão ser realocados esta semana, ou no máximo na próxima semana; antes da Páscoa, pelo menos”, afirmou Ylva Johansson. Segundo um relatório da UNICEF, no ano passado, estariam cerca de 40 mil crianças refugiadas na Grécia, das quais 5 mil separadas ou não-acompanhadas.
Tal como foi anunciado pela comissária Johansson, as primeiras crianças vão ser recebidas no Luxemburgo. Segundo o “The Guardian”, são onze e partem de Lesbos e Chios na próxima semana. A Alemanha vai acolher, para já, 50 menores.
Ylva Johansson garantiu estar em contacto “mais ou menos constante” com o governo e autoridades gregas e anunciou o acordo de um “plano de ação de resposta de emergência”. A comissária sublinhou a necessidade de “começar a realocar pessoas”, dando prioridade às mais vulneráveis dos campos, para “quartos de hotel que estão preparados e, agora, vazios”.
Os passos portugueses
Portugal é um dois oito Estados-membros que se comprometeram a acolher menores não-acompanhados dos campos da Grécia. Além disso, dez dias após a declaração do Estado de Emergência Nacional, o governo português anunciou a regularização de todos os pedidos de residência pendentes no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF).
O despacho garante a todos os imigrantes com pedidos pendentes até 18 de março acesso aos mesmos direitos que os restantes cidadãos. Os requerentes de asilo também estão contemplados. No entanto, a medida é apenas temporária: “todos os agendamentos” no SEF, até à data, serão retomados “a partir do dia 1 de julho de 2020, por ordem cronológica”.
Tiago Marques, membro da Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR), considera que se trata de “um sinal positivo”, mas lembra que é “ainda bastante distante daquilo que nós estamos a pedir que o Governo faça”. Numa carta dirigida ao governo, 269 voluntários portugueses alertam para a “situação alarmante” dos campos de refugiados na Grécia – realidade com a qual a maioria contactou.
Os voluntários apelam ao acolhimento de “pelo menos, mil pessoas”, como previsto no acordo bilateral celebrado com a Grécia, em 2019, ainda por cumprir. Pedem que seja dada “prioridade máxima às pessoas mais vulneráveis que se encontram no campo de refugiados de Moria”.
O voluntário da PAR disse ao JPN que já chegou uma resposta por parte da secretária de Estado para a Integração e as Migrações, manifestando “abertura e vontade de contar com o apoio desta rede de voluntários”. Esta semana, foi enviado um pedido de audiência à secretária de Estado “para tentar acelerar a resposta de Portugal a esta crise humanitária”, ainda sem resposta.
“Há hoje, em solo europeu, 50 mil pessoas que pedem à Europa que as proteja”, relembra Tiago Marques. “E é preciso perceber que as más condições a que estas pessoas estão sujeitas e o tratamento insuficiente que a Europa está a dar a este caso não começou com a pandemia de coronavírus”, acrescenta.
Uma situação “muito distópica”, em contexto europeu
Stamatis Poulakidakos, professor no Laboratório de Media e Comunicação da Universidade de Atenas, alerta para a situação “muito distópica” dos refugiados na Grécia. “Estamos a deixar as pessoas num autêntico limbo, restritos a centros de detenção, sem quaisquer direitos e, claro, más condições sanitárias”, diz o docente ao JPN. “Os pedidos de asilo foram cancelados, a provisão de ajuda humanitária reduzida e os refugiados que chegam estão a ser tratados, mais do que nunca, como invasores”.
“Devido ao coronavírus, a questão dos refugiados desapareceu da agenda mediática mainstream. Como se eles não existissem e fossem imunes ao coronavírus”, acrescenta Stamatis Poulakidakos. O professor critica a “abordagem entre o conservador e a extrema-direita” seguida por toda a Europa, nesta matéria.
Entretanto, a Comissão Europeia anunciou a retoma dos processos de requerimento de asilo na Grécia, um mês após a sua interrupção. No início de março, o governo de Kyriákos Mitsotákis suspendeu os pedidos de asilo, em resposta à abertura de fronteiras pela Turquia, permitindo a passagem de milhares de migrantes e refugiados para a Grécia e a Bulgária.
O aumento rápido do número de pessoas a dirigirem-se para a Grécia – em especial, para as ilhas –, levou à intensificação de “uma situação já catastrófica”. Na fronteira entre a Grécia e a Turquia, foram várias as ocorrências de “ameaças, intimidação e violência contra os refugiados e aqueles que os assistem”, pode ler-se numa análise da Statewatch.
Segundo as autoridades gregas, cita a ABC News, mais de 36 mil pessoas foram impedidas de entrar na Grécia pelas autoridades nacionais e 252 foram detidas, com a polícia grega a utilizar gás lacrimogéneo, canhões de água e granadas de atordoamento.
As “mesmas práticas brutais” são levadas a cabo pela guarda-costeira grega, como tentativas de impedir o desembarque de migrantes e refugiados. São os chamados “pushbacks“. Uma das operações foi registada em vídeo e divulgada pelas autoridades turcas. Nas ilhas gregas sobrelotadas, a mesma análise dá conta de “numerosos ataques” contra voluntários, bem como propriedades e instalações dos mesmos.
Uma nota da Presidência do Conselho Europeu, que data de outubro de 2016, relata uma série de falhas até então identificadas na implementação das políticas migratórias. Quase quatro anos depois, alguns dos problemas descritos continuam atuais. O décimo ponto refere que “o processo de asilo nas ilhas gregas avança lentamente e algumas ‘nacionalidades’ estão impedidas de registar os seus pedidos de asilo.” Tal situação “leva a frustração e instabilidade nos hotspots sobrelotados” e “impede a reunificação familiar”.
As condições severas e prolongadas a que migrantes, refugiados e requerentes de asilo estão expostos – nos campos da Grécia, principalmente – , agravam-se com a pandemia de COVID-19. A resposta europeia é caraterizada como “insuficiente” e “morosa”, enquanto milhares de vozes alertam para a urgência de evacuar os campos e agir articuladamente, para impedir o desenrolar de uma “tempestade perfeita”.
Com a disseminação da pandemia pelo Médio Oriente, há mais uma agravante à vida na Síria. A guerra civil que entrou em meados de março no seu décimo ano sem bandeira branca à vista obrigou cerca de sete milhões de pessoas a abandonar as suas casas, despedaçadas por bombardeamentos e tiroteios dos dois lados da barricada. Mas esta agravante, ao contrário da guerra, não escolhe lados. E esta agravante, devido à guerra, está a ser desvalorizada pela população.
Primeiro a guerra, depois o vírus
“Já estamos a morrer de todas as formas possíveis”, diz ao JPN Ali Kador, professor e ativista sírio. Desalojada e devastada pela guerra, a população síria não teme o vírus. É o mínimo das suas preocupações.
Ali Kador encontra-se na província de Idlib, que nos últimos meses tem servido de refúgio ao mais de um milhão e meio de pessoas que se fixaram na fronteira nordeste do país encostada à Turquia. Da terra-natal do interior oeste da província de Alepo, Ali foi estudar para a capital de distrito. Licenciou-se em Literatura Inglesa na Universidade de Alepo em 2011, na mesma altura em que os ventos revolucionários da Primavera Árabe chegaram à Síria.
Ali foi um dos ativistas na frente da oposição ao governo, o que fez com que depois de o governo sírio retomar o poder na cidade, ao fim de quatro anos de confrontos, o então professor de inglês fugisse para Idlib, província a sul de Alepo ainda sob controlo da oposição.
“Acho que o vírus não vai chegar cá a Idlib, porque estamos cercados”, reflete Ali Kador. Esta região é aliás a única nas mãos dos rebeldes em todo o país, cercada depois de três meses de avanços do exército sírio, apoiado pela força russa, contra a oposição, suportada pela Turquia. Os confrontos entre os dois países envolvidos subiram de nível no final de fevereiro, quando um ataque aéreo presumidamente russo matou mais de 30 soldados turcos.
No início de março, Vladimir Putin e Recep Tayyip Erdoğan acordaram um cessar-fogo na região. No entanto, os intervenientes sírios nos dois lados não entraram no acordo e, segundo o Observatório Sírio para os Direitos Humanos, os confrontos civis continuam em Idlib. Depois do falhanço do acordo de Sochi entre Rússia e Turquia, em setembro de 2018, que criaria uma zona desmilitarizada em Idlib, acordos de paz entre os países não parecem durar.
Ali garante que o regime sírio está a preparar o ataque em Saraqib, a menos de 20 quilómetros da cidade de Idlib. Para o ativista, a primeira resposta ao coronavírus é o fim da guerra. “Se a guerra parar, conseguimos que as pessoas voltem a casa e se isolem. Agora estão a viver em tendas ou debaixo de árvores”, uma realidade para cerca de um milhão de pessoas entre os mais de 200 campos improvisados na província de Idlib. Em nove anos de conflito, a ONU estima que cerca de sete milhões de pessoas – quase metade da população na Síria – tenha sido deslocada.
Geir Pedersen, enviado especial das Nações Unidas na Síria, alertou em comunicado a 30 de março para a necessidade de a “família humana” a nível mundial se empenhar para exigir um cessar-fogo na Síria. Perante a ameaça do coronavírus, que “não discrimina”, o país precisa de “um período sustentado de paz” de forma a ser o ataque à COVID-19 a prioridade, disse o diplomata. “Isto é preciso não amanhã, mas agora”, frisou.
Números que podem mentir
Segundo os números disponibilizados pelo governo sírio, que a Organização Mundial da Saúde (OMS) segue, há até ao momento 19 casos confirmados da doença COVID-19, duas mortes pelo vírus e quatro recuperações no país. O primeiro caso foi reportado pelas autoridades sírias a 22 de março, mas já desde o início do mês havia relatos de suspeitas de infeção por coronavírus a circular nos órgãos de comunicação locais e nas redes sociais.
A 10 de março, o Observatório Sírio para os Direitos Humanos (OSDR) noticiou casos e mortes por COVID-19 em Damasco, Tartus, Latakia e Homs, cidades sob o regime de Bashar al-Assad. Segundo a organização, profissionais de saúde nos vários distritos da Síria foram expressamente proibidos de divulgar informação para o exterior.
“Um amigo em Alepo disse-me que há um hospital de saúde mental na cidade que está a acolher infetados com coronavírus e que são bem mais que 19. O regime está a ocultar isso dos media e ninguém do pessoal médico está autorizado a falar sobre os números”, assegura Ali Kador, que estabelece regular contacto com as organizações médicas a atuar na região.
Damasco contém o único centro de testes do país e os kits não são suficientes, pelo que muitas mortes associadas a complicações da COVID-19 – pneumonia e insuficiência respiratória – não passam pelo teste e acabam por ficar fora dos registos.
Para Amany Quaddor, diretora da Syrian Relief and Development (SRD) para a região de Idlib, isto tem um impacto direto no apoio médico. “Os números que são reportados são imprecisos, o que não nos ajuda a perceber quantas pessoas de facto são impactadas pela pandemia”, admite ao JPN a doutorada em Saúde Pública pela Universidade Johns Hopkins.
A “combinação de desinformação e falta de transparência em relação ao surto” só pode resultar em “medo”, diz a médica, que conduz o apoio de mais de 1.200 profissionais de saúde na Síria. “Se o número é maior do que estamos à espera, não conseguimos atacá-lo tão efetivamente”, reflete Amany Quaddor.
O Irão, país-vizinho da Síria e aliado militar do governo de Damasco, regista já mais de 67 mil casos e mais de quatro mil mortes pela COVID-19. O governo sírio suspendeu os voos de e para o Irão a 9 de março quando o número de casos no país se aproximava dos mil, um dia antes de o OSDR relatar mortes na Síria por coronavírus.
Em declarações por escrito ao JPN, a Syrian Association for Relief and Development (SARD) alerta para uma possível “operação do governo sírio no noroeste da Síria que está a usar as milícias iranianas para disseminar o vírus nas zonas controladas pela oposição”. Em tempos de conflito, a desinformação é mais uma arma usada pelos dois lados envolvidos.
Campanha de sensibilização para a COVID-19. IMAGEM: SARD
Onde tendas fazem a vez de casas, o “isolamento social é impossível”
E mesmo que a contagem de casos e mortes seja fidedigna, admite Amany Quaddor, “conter o vírus será muito difícil”. Em acampamentos lotados num “ambiente congestionado”, conta a médica, onde vivem “famílias de dez ou 15 numa só tenda” em terrenos lamacentos sem saneamento e fraco ou nulo acesso a água, tão-pouco poderá haver lavagem de mãos segundo as recomendações da OMS ou máscaras e desinfetantes que hoje em dia vemos como objetos indispensáveis em estado de pandemia.
Onde a “distância social é impossível e isolamento profilático é impossível” para milhões de pessoas na Síria, revela a diretora regional da SRD, “as condições são quase perfeitas para um surto de coronavírus”.
Já a SARD descreve como “terrível” o estado dos campos em Idlib – tanto os erguidos pelas ONG como os improvisados pelos deslocados internos, ou IDP (internally displaced people), no lingo das organizações. “Se a COVID-19 chegar a um campo de IDP, as consequências serão desastrosas, tendo em conta a falta de medidas de prevenção. A distância social é um desafio enorme, sendo que o vírus se poderá propagar sem ser detectado”, lê-se nas declarações enviadas ao JPN.
A ajuda da organização está “limitada a comida e outros bens porta-a-porta” (ou tenda-a-tenda) como kits de higiene e panfletos informativos. “A proteção civil está a desinfetar comunidades e campos, mas com uma frequência baixa (de 15 em 15 dias ou mesmo 20) devido à falta de material e equipamento”, lê-se no comunicado. A falta de recursos é um problema global que, na Síria e em particular nas zonas fora do controlo do governo, é agravado.
Amany Quaddor, da SRD, reitera que o Equipamento de Proteção Individual (EPI) é escasso entre os profissionais de saúde e alerta para o “perigo” de contágio, mesmo que para já “só haja casos suspeitos” de COVID-19. Sem kits de teste suficientes para averiguar a presença do vírus, é praticamente impossível distinguir-se a doença infecciosa de uma doença respiratória comum nestes ambientes pouco abrigados e no epílogo de um inverno rigoroso. Amany confirma que os resultados dos testes a suspeitos de infeção foram enviados para a Turquia e os resultados foram negativos, mas não avançou números.
A plataforma Syrin in Context afirma que foram conduzidos 40 testes para o coronavírus na província de Idlib e que nenhum dos resultados vindos da Turquia confirmou positivo.
Um sistema de saúde degradado a tremer com a chegada do vírus
A OMS revelava em 2018 que apenas metade de todos os hospitais na Síria estão em funcionamento. Uma grande maioria foi alvo consciente dos ataques aéreos da guerra e há hospitais que, apesar de ainda se manterem de pé, não operam “por medo de ser destruídos”, diz Amany.
Uma parteira da SRD a dar formação sobre Controlo e Prevenção de Infeções. IMAGEM: SRD
Ali Kador explica que “em Idlib, há alguns [hospitais] ativos, mas o equipamento foi transferido para outros hospitais” devido aos recentes ataques na zona. “Há meia dúzia de hospitais para servir os milhões de pessoas a precisar de ajuda”, reflete o ativista.
Segundo o Observatório de Saúde Global da OMS, em 2014, havia na Síria 15 camas de hospital para dez mil habitantes e 1.5 médicos por cada mil habitantes. Em 2016, considerado o ano mais sangrento da guerra civil, esse número diminuiu. A ONU revelou que, em nove anos de conflito, 70% dos profissionais de saúde abandonaram o país, entre outros atacados ou desaparecidos.
A Direção da Saúde de Idlib diz que a província tem apenas 105 camas nas Unidades de Cuidados Intensivos e 47 ventiladores, sendo que estão todos ocupados. Um estudo da London School of Economics ao sistema de saúde sírio afirma que o número de infetados no país inteiro que não permite a saturação dos hospitais é apenas de 6.500, enquanto a afluente da OMS EWARN (The Early Warning and Alert Response Network) alerta que 40% a 70% da população siria pode vir a ser infetada – 1.2 milhões só em Idlib, diz um responsável à CNN.
Amany Quaddor explica que muitos dos colaboradores da SRD, que faz parte da task force da OMS em Idlib, são também vítimas dos conflitos e são obrigados a “emigrar ou fugir”. “Quando há ataques, temos que parar as operações e os nossos colaboradores têm que se mover com as pessoas que estão a ser deslocadas”, diz a médica de saúde pública, que identifica que esta situação tem sido mais recorrente desde a investida do governo sírio na província nos últimos meses.
A diretora regional da SRD reflete que “a segurança dos serviços que estamos a prestar também é impactada pelo que for que a população estiver a passar”, originando-se um “equilíbrio difícil” entre continuar a prestação de ajuda médica “quando também a ajuda médica está em perigo”.
Quanto ao perigo do coronavírus, o acesso difícil a equipamento e material tem atrasado a implementação de infraestruturas de resposta à doença infecciosa, admite Amany. No que diz respeito à construção ou extensão de áreas de isolamento e UCI tanto nos campos como nos hospitais, “faz tudo parte do plano mas ainda não foi finalizado”, diz a diretora da SRD para Idlib.
A Direção da Saúde de Idlib veio a público criticar a ação da OMS – ou a falta dela – dizendo que os planos para a ajuda da task force no noroeste do país se limitam a “palavras num papel”.
“O foco da organização neste momento, em conjunto com a OMS, é a sensibilização e prevenção, porque não podemos só atacar na gestão de casos sem ter a certeza de que as pessoas sabem como se proteger”, afirma Amany Quaddor. A SARD apela para a “necessidade de medidas adicionais como equipamento médico e técnicos de saúde, além do cessar-fogo imediato para dar uma hipótese às organizações”, lê-se no comunicado enviado ao JPN.
“Se chegar aqui, vai espalhar-se como fogo”
Ali Kador não considera que a população esteja ciente da verdadeira ameaça do vírus: “aqui em Idlib, as pessoas não parecem preocupar-se com o vírus. Continuam a apertar mãos e a abraçar-se”. A 13 de março, o governo de Damasco fechou escolas e universidades, cancelou celebrações religiosas.
O recolher obrigatório também já foi implementado, e as principais estradas de acesso entre regiões no noroeste – disputadas no conflito civil – estão cortadas. “O movimento está limitado entre as próprias cidades e distritos, mas isso também significa que o acesso médico está fechado”, alerta Amany Quaddor.
Ali viu suspenso o seu trabalho numa organização que ajuda as pessoas deslocadas a desenvolver ofícios e a arranjar emprego, devido às medidas de contenção impostas pelo governo. “Se o trabalho parar, acho que daqui a uns meses vamos ver outra Somália. Sem ajuda, sem forma de trabalhar para dinheiro ou comida, vão morrer à fome depois de alguns meses nestas condições”, lamenta o ativista e professor.
Cercados contra a fronteira fechada da Turquia, que quebrou o acordo com a UE ao abrir apenas a porta de saída do país à Europa aos cerca de quatro milhões de sírios que alberga, os milhões que ainda estão no seu país não conseguem sair. Mas é pior do que isso, garante Ali: “as ONG não conseguem chegar às pessoas, mas eu acho que nem estão a tentar”.
Já Amany Quaddor aponta um problema diferente. “Não acho que haja falta de atuação no terreno, há imensas ONG qualificadas e que são sírias, agindo localmente em áreas onde as organizações globais não têm acesso”, diz a médica da SRD. “O problema muitas vezes não é a falta de organizações, é a falta de capacidade para atuar sem nos pormos em risco”, reflete Amany, alertando que a Síria “é um dos países mais perigosos para se trabalhar de momento”.
Foram o pai e a irmã de Amany Quaddor a criar a Syria Relief and Development em 2011, ano em que tudo começou. A agora doutorada em saúde pública olha para o país onde nasceu como “um desafio, mas também uma responsabilidade”. O combate ao novo coronavírus é o próximo obstáculo, enquanto muitos outros continuam há anos a dificultar o acesso médico às pessoas que dele precisam.
“Familiares meus dizem-me: já passámos por guerras, não temos medo disto porque podes crer que já passamos muito pior”. Amany Quaddor, como muitos outros profissionais de saúde e ativistas no terreno, tem receio que depois de a COVID-19 somar a Síria na lista de países mais afetados, não haja mais por que passar.
Ali Kador está longe da família há anos, antes impedido pela guerra contra o regime sírio, agora impedido pela guerra e pelas medidas contra o vírus. Ao refletir entre a possibilidade e a certeza do alastrar da pandemia até Idlib, suspira e diz: “se chegar aqui, vai espalhar-se como fogo, queimando tudo”.
Mais sete milhões de pessoas estão presas no país que é o seu, mas numa realidade que nunca pediram. Enquanto o coronavírus semeia medos e colhe vidas por todo o mundo, a certeza cada vez mais palpitante e assustadora é a de que quem mais vai sofrer com a pandemia são os mais vulneráveis. Entre a Grécia e a Síria, são mais as vítimas que se prevêem que as que já se registam a nível mundial.
Ainda que possa vir a estar no próximo olho da tempestade, Ali Kador pensa nas consequências da pandemia para o plano europeu: “espero que por aí o vírus seja parado e as coisas voltem rápido ao normal. Talvez um dia, também nós, voltemos à nossa vida”.
Artigo editado por Filipa Silva