Que ideia é essa que une mentes tão diferentes como as de Milton Friedman, Mathin Luther King e Elon Musk? A resposta é: a criação de um Rendimento Básico Incondicional (RBI), ou, como lhe chama o historiador holandês e defensor da ideia, Rutger Bregman, dinheiro grátis para todos.

O conceito é simples: a atribuição de um rendimento a todos os cidadãos maiores de idade, independentemente da situação económica ou laboral de cada um, com propósitos que variam consoante quem propõe, mas que em geral perseguem o objetivo de garantir a todos os cidadãos uma capacidade básica de consumo. Com a crise epidemiológica do novo coronavírus, que obriga milhões de trabalhadores em todo o mundo a ficar em casa, muitas vezes, sem rendimentos, esta ideia tem sido debatida mais do que nunca, mas a verdade é que não é nova.

Dinheiro no bolso dos cidadãos

Com as primeiras referências a datarem do século XVI, o Rendimento Básico Incondicional já teve muitos adeptos ao longo da história, como Thomas Paine ou Napoleão, e esteve perto de se tornar realidade nos Estados Unidos nos anos 70 com o presidente Richard Nixon. Houve também um referendo chumbado em 2016 na Suíça e foram feitas várias experiências com sucesso por todo o mundo, como no Canadá, na Escócia e na Finlândia.

Recentemente nos Estados Unidos, o ex-candidato presidencial e defensor da criação de um RBI de mil dólares mensais, Andrew Yang, esteve em conversas com a Casa Branca sobre a criação de uma resposta para a crise causada pelo COVID-19. Com o país a ver os maiores aumentos de desemprego alguma vez registados, e com previsões de que este possa chegar aos 30%, vários rostos do Partido Republicano, como Mitt Romney, e da ala mais progressista dos Democratas, como Ilhan Omar, defenderam legislação para colocar dinheiro diretamente nos bolsos dos cidadãos. Apesar disto, a ideia de um RBI não foi em frente, e a administração de Trump vai dar um cheque único de 1.200 dólares à maioria da população.

A campanha presidencial do empresário Andrew Yang ganhou muita popularidade devido à proposta de atribuição de um “dividendo de liberdade” de mil dólares mensais

Já em Portugal, prevê-se que o desemprego chegue aos 10% e que o PIB caia 3,7%. Neste contexto, o Livre apresentou uma petição a defender a criação de um Rendimento Básico Incondicional de Emergência que já conta com quase 5 mil assinaturas. No texto da petição pode ler-se que os 870 mil milhões de euros que o Banco Central Europeu vai injetar na banca deviam servir para “estimular a economia real” através de um “Rendimento Básico Incondicional de Emergência implementado à escala europeia”.

“O partido sempre defendeu que se considerasse seriamente o RBI como uma realidade, por isso, sempre defendeu um estudo sério e inclusive testes-piloto, para percebermos como é poderia ser implantado e as vantagens e desvantagens. Um RBI não pode ser aplicado por si só, tem de haver um enquadramento na situação de emergência com outras medidas”, revela Isabel Mendes Lopes do Livre, ao JPN. Já o valor a atribuir “teria de ser visto a nível nacional e europeu”, mas teria de ser “suficiente para garantir uma sobrevivência digna”.

A questão que se impõe é como seria feito o financiamento, caso a medida se tornasse permanente. Para muitos dos defensores da ideia mais à direita, o RBI seria financiado através de cortes aos apoios do Estado Social, mas a ideia do Livre não é essa.

“O financiamento seria através da taxação da riqueza e ao fazer-se uma avaliação de alguns dos abonos que são garantidos pelo Estado e perceber quais podem ser substituídos pelo RBI, mas a ideia não é acabar com o Estado Social e dar-se o Rendimento Básico Incondicional como se fosse um cheque sem fundo, a ideia não é essa”, refere Isabel Mendes Lopes.

A universalidade do RBI é também muitas vezes contestada, devido à possibilidade de atribuição de um rendimento a quem não precisa dele, mas para o Livre a maior facilidade burocrática é importante no contexto de emergência. Para Isabel Mendes Lopes, uma das vantagens é “não ter de se estar a fazer essa distinção” para se poupar tempo e relembra que o RBI deve ser “mais uma componente do Estado Social”, mas com um “acerto a nível dos impostos”, ou seja, “quem recebe mais vai contribuir mais”.

Já a possibilidade do RBI levar a que haja empregos menos atrativos que deixem de ser ocupados significa que estes trabalhos vão começar “a ser mais bem-pagos”, o que permite que passem “a ser mais valorizados”.

Gabriel Leite Mota é economista e doutorado em Economia da Felicidade e concorda que agora é uma boa oportunidade para “testar a ideia”. É defensor do modelo económico do norte da Europa e afirma que não tem uma “posição fechada” sobre o Rendimento Básico Incondicional.

“Sou defensor da existência de mecanismos na sociedade para que qualquer pessoa tenha acesso às condições básicas de vida garantidas e isso inclui saúde, educação, alimentação, habitação, transporte ou informação, que permitam que a pessoa tenha o mínimo de qualidade de vida. Isto tanto pode ser feito através de prestações como o Rendimento Social de Inserção, como através de acesso a serviços sem custos na hora do serviço para o utilizador, como o Serviço Nacional de Saúde. Prefiro que as coisas sejam garantidas em espécie do que em rendimento”, remata.

As críticas à ideia

Tal como apoiantes, o RBI tem também muitos críticos, e o facto de um partido de esquerda, como o Livre, ser adepto da ideia, não quer dizer que haja consenso nessa ala política. Aliás, uma das particularidades do Rendimento Básico Incondicional é que tem tanto defensores como opositores por todo o espetro político. A nível de críticos mais liberais, tanto Carlos Guimarães Pinto como Ricardo Arroja, ambos da Iniciativa Liberal, já se mostraram pouco fãs da medida.

À esquerda, encontra-se Ricardo Moreira, deputado municipal no Bloco de Esquerda em Lisboa, que considera a medida “insuficiente e desinteressante”. “É verdade que vamos ter um problema económico muito grande e essa é uma situação que deve ser resolvida numa primeira fase com lay-off, que é uma ferramenta má, depois com o subsídio de desemprego e depois temos de nos preparar para ter um Rendimento Social de Inserção para todas as pessoas que necessitem”, afirma ao JPN.

“Se fizermos contas a um RBI para Portugal de 420 euros, isso queria dizer que relativamente ao PIB do ano passado, que foi melhor do que o PIB deste ano – porque este ano vai cair -, teríamos de gastar 21% para apenas uma medida e isso parece-me muito difícil, porque o Estado inteiro gasta normalmente 20 a 30% do PIB”, começa Ricardo Moreira. Seria necessária “uma revolução social gigantesca” para mobilizar os recursos, o que é “desinteressante”, caso se continue a usar dinheiro “como moeda de troca”.

Evolução do PIB português entre 2008 e 2019, com previsões de uma grande quebra em 2020 Fonte: PORDATA

Para o deputado do BE, é mais importante usar uma lógica de direitos fundamentais do que uma lógica monetária. “Defendo todas as medidas que implicam dar direitos e retirar a moneterização das coisas, na lógica de ‘eu tenho direito à saúde’ e não de ‘eu pago pela saúde’”, explica. Não está de acordo com o RBI porque é dado em dinheiro, ou seja, “pode haver inflação” e uma perda de valor do rendimento.

Os possíveis cortes aos apoios sociais para financiar a medida são também contraproducentes. “O Estado Social é muito mais eficaz e eficiente a combater a pobreza do que só dar dinheiro. Na crise de 2008, quase 45% da população portuguesa viveria em pobreza se não fossem as prestações sociais. Reduzimos a pobreza de 45% para 18% de pobreza por causa do Estado Social, gastando 8 a 9% do PIB”, sublinha.

As prioridades devem antes passar por assegurar o acesso à educação, à alimentação, à saúde e por um reforço da habitação pública, dada a crise imobiliária que o coronavírus também espoletou. “Portugal não tem parque público habitacional. Noutros países da Europa, a percentagem de parque público habitacional é de 15% a 30% e em Portugal é 2%”, afirma.

A questão do direito ao trabalho também preocupa Ricardo Moreira: “Nós temos na Constituição a ideia de direito ao emprego e de que o Estado deve perseguir políticas de pleno emprego. Isto é uma ideia radical de que nós, enquanto comunidade, somos responsáveis pelo emprego de todos. Se nós dissermos que vamos dar dinheiro às pessoas para elas consumirem, e com esse consumo criar emprego, estamos a dizer que já não é papel do Estado contribuir para o pleno emprego, porque as pessoas conseguem consumir sem trabalhar”.

Um dos principais argumentos de Andrew Yang e de outros defensores do RBI do mundo tecnológico de Sillicon Valley é que, inevitavelmente, a automatização e a inteligência artifical vão acabar com muitos empregos como hoje os conhecemos. Ricardo Moreira concorda que essa realidade é o futuro e que “sempre que há um avanço tecnológico e um aumento da produtividade” esse aumento deve servir “para melhorar a vida das pessoas através da redução do horário de trabalho e da distribuição do emprego”.

“Não há nenhum sentido em trabalharmos as mesmas horas que trabalhamos há 100 anos atrás, porque a produtividade disparou, e se as pessoas não estão a receber muito maiores salários, isso quer dizer que esse dinheiro foi para alguém e isso vê-se, porque as grandes riquezas dispararam”, conclui.

Artigo editado por Filipa Silva