O surto de COVID-19 modificou não só os funerais, mas também a maneira como as pessoas passam pelo processo de luto. Apesar das medidas de proteção adotadas resultarem num “luto inacabado”, o presidente da Associação Nacional de Empresas Lutosas (ANEL), Carlos Almeida, considera, em declarações ao JPN, que são necessárias para o combate à epidemia.

De acordo com as normas da Direção-Geral de Saúde (DGS), no caso dos cadáveres de infeção suspeita ou confirmada “não deve haver lugar à preparação do corpo pelas agências funerárias, dado que o corpo já foi preparado (limpo e seco) pela equipa de saúde/autópsia”. Nesse sentido, “o cadáver deve sempre permanecer no saco impermeável (preferencialmente dupla embalagem) e em caixão fechado”, conforme se lê no documento.

Além disso, “os funerais deverão decorrer com o menor número possível de pessoas” e respeitar as “medidas de distanciamento social, de higiene das mãos e de etiqueta respiratória, em todas as circunstâncias, assim como a adoção de medidas ainda mais restritas para proteção dos grupos mais vulneráveis (crianças, idosos, grávidas e pessoas com imunossupressão ou com doença crónica)”.

Uma morte solitária

Nos hospitais, a morte é “vivida à distância”, relata o enfermeiro Tiago Rodrigues, do Hospital São Sebastião, em Santa Maria da Feira. “O familiar acompanha o doente até à urgência e, a partir daí, nunca mais o vê”, acrescenta.

Segundo o profissional de saúde, os infetados “acabam por ter o mesmo tipo de trato que todos os outros doentes”, tanto nas visitas, como no óbito.

Quanto ao primeiro ponto, Tiago Rodrigues revela que as famílias podem contactar diariamente a equipa médica e de enfermagem para pedir informações sobre os pacientes, mas as visitas presenciais não são permitidas.

Relativamente ao processo “post mortem” (depois da morte), “são removidos todos os adornos e dispositivos médicos ao doente, ficando apenas com a fralda de proteção. De seguida, são vedados todos os orifícios do doente para que não haja derramamento de fluídos corporais. O doente é colocado em dois sacos de óbito brancos (num caso COVID negativo, o doente é colocado apenas num saco), o maqueiro do hospital é contactado, e o corpo é transportado para a casa mortuária da instituição onde irá ser colocado numa arca frigorífica”, descreveu o enfermeiro.

Tiago Rodrigues adianta ainda que na agência funerária os corpos portadores do vírus são colocados num “caixão próprio”, que deve permanecer fechado. Posteriormente, “seguindo as normas da DGS, o corpo deve ser cremado para evitar qualquer possibilidade de transmissão do vírus”, explica.

“Vamos deixar-nos de romantismos”

Ao JPN, o presidente da ANEL esclareceu que o corpo “depois de isolado e posicionado conforme é prescrito” deixa de ser “fonte de transmissão”. Para Carlos Almeida “o problema é entre os vivos”. “Todos somos potenciais portadores” do vírus, sustenta.

O presidente associativo reconhece ainda que é “violento” perder um ente querido e não lhe poder prestar homenagem, mas acredita, contudo, que as pessoas se devem deixar de “romantismos” e seguir as medidas de segurança para que se consiga “travar a fonte de contaminação”.

“Eu já recusei serviços porque não aceitavam as orientações que lhes estava a dar”, conta, apelando a que as agências funerárias tenham “a coragem de explicar às pessoas o que é que se passa”. “Ninguém tem o direito de pôr em risco a saúde dos trabalhadores das funerárias, das pessoas que estão ligadas às funerárias e os seus familiares”, remata.

Consequências psicológicas das medidas restritivas

Ao JPN, a psicóloga clínica e da educação, dos Serviços de Psicologia Clínica e Psicoterapia – ClaraMente, Joana Valério, aponta que as restrições impostas podem “agravar os sentimentos de angústia e solidão vivenciados pela pessoa enlutada”. As pessoas “não poderão despedir-se devidamente do seu ente querido ou a despedida terá necessariamente de ser rápida e curta dada a atenção exigida por outras situações urgentes”, completa.

“As restrições nas cerimónias fúnebres podem de facto ter impacto no processo de luto, representando um fator acrescido de revolta, stress e angústia. Este ritual de despedida constitui-se como um momento importante de reunião de familiares e amigos da pessoa falecida, proporcionando aos enlutados a oportunidade de expressar emoções, partilhar homenagens e dividir a tristeza e aos presentes demonstrar o seu apoio e solidariedade”, esclarece a psicóloga.

Joana Valério enaltece ainda a importância de “não adiar o luto”, sendo que é “necessário ser vivido para que a dor da perda seja ultrapassada”. Como tal, aconselha a que se procure “apoio em familiares e amigos”, através dos meios de comunicação, ou, em casos mais graves, procurar ajudar psicológica junto de um profissional.

Tanto o presidente da ANEL como a psicóloga da ClaraMente sugerem, como forma de contornar as atuais medidas, que seja organizada uma cerimónia de homenagem, posteriormente, para auxiliar no processo de luto. A especialista levantou também a possibilidade de transmitir o funeral via videochamada, de maneira a permitir o acesso de mais “familiares e amigos no momento da despedida”.

A necessidade de ver o corpo

O diretor do Secretariado Diocesano da Pastoral da Juventude (SDPJ), padre Jorge Nunes, admite ao JPN que as restrições estão a dificultar o processo de luto pela necessidade que as pessoas têm de ver o corpo, “por mais doloroso que seja”. O padra Jorge Nunes lembra ainda uma situação em que uma família chegou a pedir fotografias do corpo do ente querido ao agente funerário fotografias, porque o queriam ver.

Segundo o diretor do SDPJ, na situação atual “o luto é terrível, é muito maior, se é que o luto vai ser terminado, porque é necessário este tempo. É necessário o tempo dos mais próximos fazerem o velório, fazerem esta aproximação para se despedirem”.

Contudo, considera que as medidas recomendadas pela DGS “foram pensadas” e são “necessárias” para evitar a contaminação e a morte por COVID-19.

Contrariamente à opinião do diretor da ANEL, Carlos Almeida, de que não se devem fazer velórios, o padre Jorge Nunes continua a fazer essa cerimónia na igreja, que leva cerca de duas horas, mas com restrições.

Segundo o diretor do SDPJ, o velório aplica-se a situações em que a morte não tenha ocorrido por COVID-19, com entrada máxima de dez pessoas que se têm de manter afastadas umas das outras. “As igrejas são minimamente espaçosas e permitem isso, agora sempre com o máximo de segurança que nos é possível numa circunstância destas”, fundamentou.

O padre, tal como a psicóloga da ClaraMente, recomendam a que as pessoas recorram a um apoio espiritual e ou psicológico para que consigam, dentro do possível, “vivenciar este fazer do luto”.

Artigo editado por Filipa Silva.