Foi no Salão Nobre do edifício histórico da Reitoria da Universidade do Porto (UP) que Maria de Sousa (1939-2020) deu a sua última aula. Corria o ano de 2009 – 24 anos depois de ter iniciado sua carreira como professora naquela instituição, uma vez fundado o mestrado em Imunologia, e após liderar o projeto de criação do primeiro programa doutoral em Portugal – quando a professora de Imunologia, falecida esta terça-feira (14), se despedia do ensino. “Uma escola sem muros” foi o nome que deu à sua última apresentação, como professora, como investigadora, como cientista.

Apesar de aposentada, Maria de Sousa não ficou em silêncio. As suas influências nas áreas científicas eram constantes. A imunologista deixou um legado não só nacional, mas também internacional. As suas descobertas mudaram a visão da comunidade científica sobre o sistema imunitário. A determinação que lhe era caraterística impulsionou a criação de inúmeros projetos em Portugal, que até à altura não era conhecido pela investigação científica. Depois de uma carreira preenchida e garantida em países estrangeiros, Maria de Sousa escolheu regressar para Portugal, em 1984.

Numa nota de pesar, o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, diz que Maria de Sousa foi “uma investigadora por excelência, catapultou a ciência, a medicina e a investigação portuguesa além-fronteiras para patamares de excelência, sem nunca deixar de colaborar no desenvolvimento de instituições em Portugal”.

Era sobretudo uma cientista”, como diz o diretor do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S), Cláudio Sunkel, ao JPN. A imunologista foi um dos nomes que ajudou a construir o instituto.

“Maria [de Sousa] foi uma pessoa que sempre impulsionou a ciência portuguesa. Que se dedicou a fazer contactos e a ajudar os cientistas portugueses a entrarem em contacto com os seus colegas no estrangeiro. Era uma pessoa com uma personalidade muito forte, uma pessoa que constantemente nos desafiava a fazer coisas novas e de uma forma melhor, para ultrapassar as dificuldades”, continua Cláudio Sunkel. O também professor do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), de nacionalidade chilena, explica que veio para Portugal em 1987 e cá permaneceu porque Maria de Sousa lhe deu essa oportunidade. “Devo-lhe a ela por começar a trabalhar em Portugal naquela época.”

A imunologista descobriu a migração dos linfócitos para áreas específicas, em 1966. Fez ainda o estudo do sistema imunitário em pacientes com uma doença genética de sobrecarga de ferro, que a conduziu ao ICBAS em 1985. Aí, fundou o mestrado em Imunologia e liderou diversos projetos nos anos em que desempenhou cargos como professora e investigadora. Foi uma das pessoas que fundou e ajudou a construir e desenvolver o i3S, com Cláudio Sunkel.

“Discutimos inúmeras vezes sobre o que poderia vir a ser o i3S e nunca me deixou acomodar com o que já tínhamos alcançado. Muitas vezes me disse que o ‘i3S ainda não era’, que havia muito por fazer para que o instituto com que sonhamos fosse uma realidade. Como ela dizia, ‘estava tudo por fazer‘ e tínhamos que o fazer”, explica o diretor do instituto ao JPN.

Maria de Sousa também esteve na linha da frente quando se juntaram três mestrados para fundar o primeiro programa doutoral em Portugal, que recebeu o nome de Programa Graduado em Biologia Básica e Aplicada (GABBA). Constituiu ainda uma equipa inovadora na investigação no campo da hemocromatose (doença genética caracterizada pelo acúmulo excessivo de ferro) entre o ICBAS, o Hospital de Santo António e o Instituto de Biologia Celular e Molecular (IBMC), uma das entidades que deu origem ao atual i3S.

A professora emérita da Universidade do Porto (UP) testou positivo para o COVID-19 no início de abril e teve de ser internada no Hospital de São José, em Lisboa, onde passou os seus últimos dias. “Durante uma semana a Maria lutou com toda a sua força para se manter connosco, mas não conseguiu resistir. Hoje [15/04] as estatísticas que nos serão apresentadas pelos media terão outra dimensão para nós porque um dos números, entre todos, é a Maria. Hoje não estamos só isolados, hoje estamos mais sós com a partida da Maria”, lamenta Claúdio Sunkel numa carta enviada aos colaboradores do i3S.

Ao longo da vida, Maria de Sousa recebeu inúmeras distinções e prémios. Agora, recebe uma homenagem póstuma que irá distinguir outras personalidades da área científica. A Ordem dos Médicos anunciou esta quarta-feira a criação do Prémio de Investigação Maria de Sousa, cuja primeira edição está prevista para o dia 24 de novembro deste ano, no Dia Nacional da Cultura Científica. “Esta foi a forma que a Ordem dos Médicos encontrou de fazer uma homenagem, não à sua partida, mas à forma como dedicou a sua vida: pela ciência, pelo conhecimento, por todos nós”, explica Miguel Guimarães no anuncio do novo prémio.

Com esta homenagem à professora honorária e aos futuros cientistas e investigadores, “a Ordem dos Médicos pretende dar também um sinal positivo a todos os médicos que dedicam a sua vida à investigação ou que a conciliam com a atividade clínica, contribuindo para mudanças no dia-a-dia que melhoram a qualidade da medicina e os cuidados aos nossos doentes.”

Além de tudo o que alcançou, Maria de Sousa também se dedicou à escrita. Escreveu vários livros e era conhecida pela sua literatura. Nos seus últimos dias, escreveu aquele que se tornaria num poema de herança, da sua vida e para outros que se possam vir a inspirar nela. “A Maria foi uma grande amiga, foi conselheira, foi uma consciência permanente do que era ser um cientista”, relembra Cláudio Sunkel. “O legado de Maria de Sousa perdurará e continuará a ser um farol nas nossas vidas profissionais”, conclui Miguel Guimarães.

“Carta de amor numa pandemia vírica
Gaitas-de-fole tocadas na Escócia
Tenores cantam das varandas em Itália
Os mortos não os ouvirão
E os vivos querem chorar os seus mortos em silêncio
Quem pretendem animar?
As crianças?
Mas as crianças também estão a morrer

Na minha circunstância
Posso morrer
Perguntando-me se vos irei ver de novo
Mas antes de morrer
Quero que saibam
O quanto gosto de vós
O quanto me preocupo convosco
O quanto recordo os momentos partilhados e
queridos
Momentos então
Eternidades agora
Poesia
Riso
O sol-pôr
no mar
A pena que a gaivota levou à nossa mesa
Pequeno-almoço
Botões de punho de oiro
A magnólia
O hospital
Meias pijamas e outras coisas acauteladas
Tudo momentos então
Eternidades agora
Porque posso morrer e vós tereis de viver
Na vossa vida a esperança da minha duração

Maria de Sousa
3 de abril de 2020″

Traduzido originalmente do inglês pelo médico e poeta João Luís Barreto Guimarães .

Artigo editado por Filipa Silva.