O mundo do circo é, hoje, muito diferente do que já foi. O JPN procurou explicar a evolução que sofreu com o passar do tempo, tendo a comunidade portuense como referência. Lançamos a segunda de uma série de reportagens desenvolvidas pela redação do JPN sob o mote "comunidades".

Há a ideia preconcebida de que os artistas circenses são um povo nómada, mas para toda a regra, há a exceção. Se a distância os separa, o que une a comunidade circense? A paixão pelo público e pela arte, sim… A disciplina e o talento, também.

Além disso, pode dizer-se que a multidisciplinaridade e a capacidade de sair da zona de conforto também são caraterísticas que fazem um bom artista circense. Contudo, segundo os entrevistados com quem o JPN esteve à conversa, estas duas não são tão facilmente alcançáveis por todas as “comunidades intrínsecas” à grande comunidade dos artistas circenses da Área Metropolitana do Porto (AMP).

A SALTO Circus School, sediada na Maia, é uma das escolas circenses preparatórias mais reputadas do país. Entre alunos estrangeiros e nacionais, a escola acolhe 33 alunos, no momento, num projeto que contou com a ajuda do Acro Clube da Maia, clube de ginástica da cidade. Importa referir que esta reportagem teve lugar antes de ser declarada a pandemia por COVID-19, que acabaria por levar à suspensão de todas as atividades letivas presenciais, a 16 de março.

FCT do 2.º ano do curso de interpretação e animação circences de ACE Escola de Artes de Famalicão. Encenação de Inês Lua.

Tiago Maia é o atual diretor da SALTO, que também passou pelo Acro Clube e assumiu, depois, o projeto da escola circense desde o início. Tiago Maia considera que a “importância da formação é total”. “Queremos formar artistas de circo completos, para que possam ser eles a decidir em que mundo querem trabalhar”, explicou o diretor da SALTO. 

Ao JPN lembra que a multidisciplinaridade não é, contudo, fácil de alcançar para todos os “grupos” que fazem parte da grande comunidade circense. O diretor da SALTO aponta quão limitativa, para um artista circense, pode ser a falta de capacidade de adaptação a diferentes contextos performativos. “Tome-se o exemplo das famílias tradicionais de circo: os mestres ensinam os seus filhos ou os seus mais novos a fazer um número, esses artistas de circo vão transitando de número em número conforme as idades, mas raramente conseguem sair do circo tradicional”.

Separados pela técnica e unidos pela arte

A comunidade circense é, afinal, mais complexa do que parece. O facto de diferentes artistas partilharem um mesmo palco aproxima-os, mas isso não significa que tenham tudo em comum. Na verdade, há vários tipos de circo que, diz Tiago Maia, “guerreiam entre si”.

Destacam-se três grandes grupos (e subsequentes mercados de trabalho) dentre o grupo geral da comunidade circense: o circo contemporâneo, o circo tradicional e o novo circo. O circo tradicional diz respeito à vertente mais antiga do circo e é, muitas vezes, gerido por famílias. Para Tiago Maia, este tipo de circo está “em extinção”. Existem ainda o novo circo e o circo contemporâneo: esses sim, mais relacionados entre si.

Julieta Guimarães faz parte da Companhia de circo Erva Daninha. Fundada por ex-alunos da Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo (ESMAE), no Porto, em 2005, a Erva Daninha – que tem a cargo a organização do festival Trengo, na mesma cidade – é uma das companhias circenses mais antigas e mais influentes da atualidade. Alguns dos espetáculos planeados para a edição deste ano do festival Trengo transitaram para a próxima temporada do Teatro Municipal do Porto, devido à pandemia do novo coronavírus que levou ao encerramento dos teatros e museus do município.

Apesar de garantir que a comunidade do circo é “bastante unida e bastante companheira”, Julieta Guimarães também estabelece uma distinção entre o circo contemporâneo do novo circo. “Para nós, o novo circo e o circo contemporâneo não são exatamente a mesma coisa. O circo contemporâneo é um circo que vai um bocadinho mais longe, é uma linha de circo que começa por exemplo a fazer um espetáculo com uma técnica só”.

A integrante da Erva Daninha recorda ainda a existência do circo tradicional que surgiu no século XVIII, quando “um militar de cavalaria inglês decidiu juntar uma série de números e um formato circular” com “a medida exata para os cavalos poderem dar a volta sem chocarem”.

Este circo mais “clássico” e familiar foi a fonte de inspiração para os artistas do novo circo. Por volta das décadas de 1960/70, apropriaram a ideia de “número após número” e deram-lhe “uma nova roupagem”, com “uma técnica mais moderna” e “algum pensamento por trás”.

Isadora Rinelle, artista circense do espaço NOA, na Maia, vê os colegas de trabalho como uma “família”. Para a artista, o sentimento de comunidade é “uma parte fundamental do circo porque trabalha com o que é mais distante do possível, do comum, trabalha com o que é especial, do que é o sonho.” 

Este pensamento é partilhado pelo professor do Instituto Nacional de Artes do Circo (INAC), Janela Magalhães, que caracteriza o circo como uma “arte marginal” e um “estilo de vida”.

O professor do INAC faz referência ao fenómeno do “Carnival”, nos Estados Unidos da América, onde as pessoas que eram “excluídas” e “marginalizadas” pela sociedade, como ‘a mulher barbura, o homem gigante, os anões’, que viam o circo como a única opção de ter trabalho“.

Estas particularidades do circo, segundo Janela Magalhães, criam muita “união” e “vínculo”, visto que “todos eles sofreram as penas da vida para depois se juntarem, e com as suas exclusividades, serem únicos, transformarem-se em figuras únicas e trazerem fantasias às pessoas comuns“.

O professor revê esta génese nos alunos do INAC que “de certa maneira também são um bocado marginais”. “Há uma coisa de ser diferente, de ser especial, de procurar uma maneira alternativa de viver em autocaravanas, de andar a viajar, de trabalhar com um chapéu, é um estilo de vida diferente de um advogado, de um médico“, acrescenta.

Alunos não integram a comunidade. São, antes, intérpretes

Pedro Aparício, diretor da ACE Escola de Artes, sediada no Palácio do Bolhão e Inês Lua, diretora do curso de Circo no pólo de Famalicão da ACE têm um ponto de vista diferente do de Julieta Guimarães e de Isadora Reinelle.

“Pessoalmente, não considero os nossos alunos de circo como integrantes da comunidade de circo, penso neles como intérpretes de circo ou criativos contemporâneos, justifica Pedro Aparício. “Vejo-os mais na comunidade dos criadores de artes de espetáculo: atores, bailarinos, cenógrafos e toda a gente desta área profissional.”

Para Inês Lua, o distanciamento entre circo contemporâneo e circo tradicional é uma realidade, que, diz, espera que venha a mudar no futuro. “Em Portugal, ainda estamos longe dessa realidade, há outros países em que esse gap [distanciamento] está mais diluído, por exemplo, em França que tem uma grande tradição de circo contemporâneo”, acrescenta.

Um dos fatores que contribui para afastar os dois subgrupos relaciona-se com a própria atividade do circo, a sazonalidade a que ambas estão sujeitas, embora com intensidades diferentes.

“Não é possível prever se daqui a uma semana ou duas há eventos, espetáculos, e também por isso muitos artistas decidem ir para a rua, a rua é o imediato”, afirma Bruno Leite, proprietário do Espaço NOA e artista circense “a recibos verdes desde 2004”. Conhecido no meio artístico como Mr. Milk, Bruno Leite vê o sentido de comunidade entre os artistas circenses como um “sete”, numa escala de zero a dez. “O artista, por raiz, é muito individual”, justifica.

O circo contemporâneo é aquele que está menos sujeito à sazonalidade dos serviços. “O circo contemporâneo está, hoje, tão disseminado em qualquer sala como qualquer outra arte de espetáculo”, assegura Pedro Aparício ao JPN. Também Julieta Guimarães partilha da mesma opinião que o diretor da ACE e chega a associar os artistas de circo a outras áreas. “Tem sido uma jornada de uma mistura de pessoas do teatro, do circo, da dança, da música”, conclui a colaboradora da Erva Daninha.  

A comunidade circense do Porto que, segundo Julieta Guimarães, já foi o “centro da comunidade de circo contemporâneo” é, por isso, cheia de especificidades. Há várias “microcomunidades” dentro de uma comunidade maior: todo o universo circense. Esse universo partilha talento, paixão, conhecimento, mas, por vezes, difere um na abertura de espírito.

Artigo editado por Filipa Silva.

Este artigo foi realizado no âmbito de uma série de reportagens desenvolvidas pela redação do JPN sob o mote “comunidades”, entre fevereiro e março de 2020.