É uma das descobertas mais importantes da saúde e ganha cada vez mais relevância no contexto do surto do novo coronavírus. A criação de uma vacina é um processo moroso, pouco compatível com a urgência da situação. Apesar de haver provas que mostram que a vacinação é a única forma de controlar o contágio de doenças de forma permanente, há ainda muitos céticos, mas a pandemia da COVID-19 pode estar a mudar as ideias de muitos dos que se consideram anti-vacinação.

Tudo começou no início do século XVIII, com o médico inglês Edward Jenner. Estudioso da varíola, Jenner percebeu que os camponeses que estavam em contacto com vacas e eram infetados com a cowpox, também conhecida como varíola bovina, se tornavam imunes ao vírus. Foi assim que nasceu a primeira vacina, tendo também sido a varíola a única doença até agora que a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou como erradicada. Estima-se que a vacina tenha salvo 200 milhões de vidas.

Afinal, como funcionam as vacinas? “O objetivo de uma vacina é estimular o nosso sistema imune a reconhecer um agente estranho, ou seja, sempre que temos uma infeção e recuperamos, o nosso sistema cria uma memória contra esse agente infeccioso”, explica Pedro Madureira, bioquímico e investigador no Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S). Assim, se formos infetados outra vez, o nosso sistema vai “imediatamente neutralizar” o agente e as vacinas “imitam esse primeiro contacto sem causar a doença”.

Depois de se ter uma ideia para uma vacina, há várias fases de testes até que esta possa ser administrada à população. A primeira coisa a fazer é testar em animais: “tem de se mostrar que é eficaz no modelo animal e ao mesmo tempo fazer testes de toxicidade para se verificar que a vacina não tem qualquer efeito adverso”, afirma Pedro Madureira. Caso se verifique a segurança e a eficácia  da vacina, o próximo passo é apresentar os resultados às entidades reguladoras, para se dar início aos ensaios em humanos, que em média demoram entre seis a oito anos.

Os ratos são dos animais mais usados para testar vacinas

“Quando há urgência, como é o caso, as entidades reguladoras também facilitam este processo”, revela o investigador do i3S. Nos testes em humanos, a primeira fase “é só para despistar qualquer toxicidade” e é feita em “relativamente poucas pessoas”, todos adultos saudáveis, num processo que normalmente não demorará menos de um ano.

De seguida, testa-se a eficácia em algumas centenas de voluntários. “No caso de uma emergência, esta fase dois já é assumida como um teste em grande escala. Neste caso, no melhor cenário o que poderá acontecer é dentro de um ano e meio já haver uma vacina”, estima Pedro Madureira. De momento, estão a ser desenvolvidas 70 potenciais vacinas para o coronavírus, de acordo com a OMS.

Estará a pandemia a mudar as crenças dos movimentos anti-vacinação?

Vivemos uma situação sem precedentes, o que está, por um lado a fazer algumas pessoas que se declaram anti-vacinação a mudar de ideias, enquanto outras se mostram ainda mais desconfiadas, motivadas em parte por algumas celebridades céticas da segurança das vacinas.

O tenista Novak Djokovic afirmou que não quer “ser forçado por alguém a tomar uma vacina” para poder viajar. Já a rapper britânica M.I.A disse no Twitter que prefere morrer a ser vacinada. Já a atriz Jessica Biel causou polémica ao assumir-se “preocupada” com os riscos das vacinas, assim como Jim Carrey, que chamou “fascista” ao ex-governador da Califórnia, Jerry Brown, por assinar uma lei em 2015 que obrigava as crianças em idade escolar a serem vacinadas, independentemente da vontade dos pais.

O ceticismo em relação às vacinas foi inclusivamente considerado como uma das dez maiores ameaças à saúde pública pela Organização Mundial de Saúde, cujos dados mostram que o número de casos de sarampo quase quadriplicou no primeiro trimestre de 2019 em comparação com o mesmo período do ano anterior. Já em Portugal, as regiões de Lisboa e Vale do Tejo e do Algarve tiveram taxas de cobertura vacinal abaixo do recomendado na segunda dose da vacina contra o sarampo, segundo dados de 2017, tendo havido dois surtos da doença no país nesse mesmo ano.

Afinal, o que causa esta desconfiança? Um dos exemplos com mais notoriedade é a crença de que há uma relação entre a vacinação e o autismo, que já foi desprovada. Em 1998, um estudo apontava para a ligação entre a vacina para o sarampo e o autismo. Depois de serem encontrados defeitos graves na investigação, o estudo foi retirado da revista científica “The Lancet” e o seu autor, Andrew Wakefield, foi expulso da comunidade médica.

O estudo desmentido de Andrew Wakefield é uma das fontes de desinformação mais usada pelos movimentos anti-vacinação

Já um questionário de 2018 feito pela Universidade de Queensland concluiu que as crenças anti-vacina eram mais altas entre pessoas que acreditam noutras teorias da conspiração, como o assassinato da Princesa Diana ou o envolvimento do governo norte-americano no 11 de Setembro. Isto mostra que há uma tendência para rejeitar informação que não se encaixe na visão do mundo que se tem, mesmo que os factos apontem noutra direção, assim como uma descrença por instituições geralmente vistas com autoridade.

Mas esta tendência pode estar a mudar. Um estudo do grupo de investigadores Vaccine Confidence Project (VCP) mostrou que as pessoas estão menos preocupadas com os efeitos das vacinas, o que contraria a tendência dos últimos anos. No caso da França, o país com mais ceticismo, um inquérito do VCP mostou que apesar de 33% da amostra não considerar as vacinas seguras, apenas 18% recusaria uma vacina para a COVID-19.

Se há dados que mostram que a desconfiança está a diminuir, há também quem se declare mais anti-vacinas do que nunca. O produtor do filme de propaganda Vaxxed, Del Bigtree, filme escrito por Wakefield, publicou uma apresentação nas redes sociais em que argumenta que o coronavírus foi criado pela indústria farmacêutica para enriquecer. “Os extremistas, os grupos levados por crenças e que rejeitam as vacinas por princípio, cujo objetivo é polarizar, eles não estão a mudar, aliás, estão a capitalizar”, considera Heidi Larson, diretora do VCP.

Heidi Larson é a diretora do Vaccine Confidence Project

Já Pedro Madureira não quer comentar os “dogmas” dos céticos. “O que sabemos é que as vacinas são a única ferramenta clínica que levou à erradicação de doenças infecciosas. Até agora, não há dados que mostrem que há alguma vacina que cause qualquer dano que justifique a saída do mercado”, refere.

“Há pessoas que são alérgicas a determinados componentes e que não devem tomar, mas a vacina tem outra coisa que é fantástica: uma pessoa vacinada não só não tem a doença como não é capaz de a transmitir, o que mostra que na verdade não é preciso que todas as pessoas sejam vacinadas para haver uma erradicação de uma doença, é o efeito de manada. Na maior parte das vacinas, a percetagem de pessoas que sofre efeitos adversos é tão baixa que nem se consegue estudar”, conclui o investigador do i3S.

Artigo editado por Filipa Silva