A pandemia de COVID-19 provocou inúmeras mudanças na sociedade portuguesa. A troca de mensagens, telefonemas ou chamadas de vídeo tomaram o lugar da troca dos abraços e dos beijos. Os portugueses ajustaram-se à situação de forma a colmatar a saudade que sentem dos que lhes são mais queridos. Num mês decisivo em que se começam a levantar as medidas de isolamento, como será o convívio numa sociedade tão habituada ao toque?

Para o diretor da promotora de eventos Everything is New, Álvaro Covões, “a vida tem de continuar” e o futuro da socialização nacional depende, em boa parte, da informação que as autoridades de saúde (nacionais e mundiais) fazem chegar aos cidadãos. “Ainda bem que os meios de informação estão vivos. Estes gráficos que estamos a ver de forma diária e a informação sobre o aparecimento ou não de mais infetados vão continuar”, lembra.

Da noite aos festivais, que futuro para os grandes eventos?

Não foram só os dias que se tornaram mais vazios, a noite também. O medo que varre pessoas da rua, também fecha portas para abrir ecrãs, tira o ruído e o barulho, a música e a energia e mostra agora um Porto quase deserto, uma “party district” silenciosa.

A socióloga Cláudia Rodrigues, autora da tese “Ritmografia da Cidade Notívaga do Porto”, acredita que a vida noturna é integrante do quotidiano urbano.

Entre os eventos noturnos capazes de mover um mar de gente, destacam-se as queimas das fitas, que variam de nome consoante a cidade, mas têm os festejos académicos na sua génese. O valor sensorial da noite não se esgota, por isso, nas ruas da urbe. A Associação Académica de Coimbra (AAC), por exemplo, já tomou medidas de proteção à comunidade estudantil e adiou a Queima das Fitas. Já no Porto a realidade foi diferente e o evento deste ano foi mesmo cancelado, com regresso programado para 2021.

O adiamento da Queima das Fitas para outubro foi a solução encontrada pela AAC. A associação presidida por Daniel Azenha, como o próprio explica ao JPN, sempre teve e continua a ter as prioridades bem definidas. “Não cancelámos a Queima, adiámo-la para outubro. Obviamente que, agora, vamos ter de ter muito cuidado e perceber, à medida que o tempo vai passando, em que estado estão o país e a pandemia. Temos de dizer, desde já, que só iremos realizar a Queima das Fitas se existirem todas as condições de segurança”, diz Daniel Azenha ao JPN.

Segundo Álvaro Covões, o primeiro mercado afetado foi o dos eventos culturais. “Durante o estado de emergência é evidente que não pode haver eventos. Nós fomos os primeiros afetados pelo estado de emergência e fomos bem comportados: parámos”, afiança.

Sem querer fazer “futurologia”, Álvaro Covões explica o curso de ação que a Everything Is New deverá tomar nos próximos tempos. “Temos de aguardar com serenidade e adaptarmo-nos ao que for possível. Dependendo das regras impostas, só algumas tipologias de eventos é que vão poder acontecer”, avança.

Duas linguagens que dizem coisas diferentes

Um dos aspetos da vivência humana mais afetados pela pandemia da COVID-19 é a socialização, os cidadãos ficaram impedidos de estar com quem mais amam e de fazer o que mais gostam. Se, num plano profissional, há ferramentas comunicativas que permitem, à distância, o teletrabalho, uma eventual “tele-socialização” é algo bem mais complexo.

As mesmas ferramentas online (aplicações de reuniões ou chamadas de vídeo, por exemplo) são o escape que encontramos para atenuar a saudade mas, como explica o sociólogo da Universidade do Porto (UP) João Teixeira Lopes, este escape não é suficiente. “As novas tecnologias da comunicação são um incentivo para que o contacto se mantenha. Ainda assim, elas não substituem a relação face a face. A linguagem face a face é insubstituível quer seja numa sala de aula, quer entre familiares, amigos, namorados, amantes… É absolutamente insubstituível devido à sua maior subtileza, complexidade e riqueza”, refere João Teixeira Lopes.

Esta “tele-socialização” em “confinamento é logo à partida algo que é contrário à origem da vivência noctívaga e festiva”, diz Cláudia Rodrigues ao JPN. Mas a situação atual de pandemia desencadeou também atitudes de redescoberta, criatividade, emancipação e identidade, com as quais se tenta compensar e substituir o que outrora se vivia na liberdade.

“Muitos noctívagos ‘compensam’ este vazio intensificando ou descobrindo meios virtuais para o convívio. Alguns apropriaram-se dos quarteirões dando música aos vizinhos, transformando varandas, terraços e coberturas de prédios em dancefloors, são muito curiosos esses fenómenos”, reflete a socióloga.

Segundo João Teixeira Lopes, da Faculdade de Letras da UP (FLUP), a humanidade está a atravessar um período entre dois tipos de linguagem: a linguagem face-a-face e a linguagem à distância, dois tipos de interação com caraterísticas bem diferentes. “Estamos a passar de uma interação face-a-face em que o lugar, o contexto, a própria linguagem não-verbal, o tom da voz, ou o gesto são muito importantes para uma linguagem que é muitíssimo mais reduzida na sua complexidade por ser à distância”, defende.

Conseguem as iniciativas digitais substituir a linguagem face-a-face tão própria da experiência que, em linguagem corrente, é o “sair à noite”? Cláudia Rodrigues concorda com João Teixeira Lopes. “É uma outra realidade, possível numa hipermodernidade, mas que não é democrática”, uma vez que não é acessível a todos. Contudo desempenha, no momento, um papel crucial a nível social. Estas tentativas de aproximação ao real servem para “preencher um vazio” e a “angústia”. Cláudia Rodrigues lembra ainda que, “que a urbanidade não cabe dentro de casa, do outro lado do ecrã, nem com muita virtualidade”.

Medo ou saudade?

A grande questão que se coloca na hora de analisar o que são ou podem vir a ser as interações sociais entre colegas, amigos, familiares, amantes ou simplesmente conhecidos prende-se com a dicotomia medo-saudade que, mais que nunca, se fará sentir na sociedade.

O que vai prevalecer? O medo do toque ou a explosão da festa? Neste ponto de análise, a própria comunidade científica divide-se e todos os cenários estão em cima da mesa. Entre eles está incluída a possibilidade de uma rutura intensa entre o que foram e o que vão ser as formas como as diferentes sociedades interpretam a comunicação.

Na génese de todas estas possibilidades, está um fator principal. “Vai depender do medo. Pode existir o impulso da festa, ou seja, uma explosão de contacto e de proximidade mas, se o medo for muito, pode acontecer que a sociabilidade se organize em função do medo”, ratifica João Teixeira Lopes. 

Já Cláudia Rodrigues é da opinião de que a socialização vai voltar a funcionar como antes. Resta saber quando e como, “a noite é do campo do inesperado.” “Penso que não há profecias nesta situação, em qualquer dimensão social”. “Inicialmente poderá haver algum receio e processos de adaptação, mas também penso que haverá muita vontade da boémia, de festa, do encontro com o conhecido e com o desconhecido, do encontro com a cidade”, sustenta a socióloga.

É entre a vontade e o receio de voltar que pode também surgir a consciência. Com a nova realidade, a noite, associada a riscos, vai mudar porque “haverá a consciência geral dos riscos”, diz a investigadora ao JPN. É num “brincar nervoso” no retorno a bares e clubes, que serão os últimos a abrir, que se dá uma “reinvenção” notívaga.

Segundo João Teixeira Lopes, é ainda muito difícil antever a reação das pessoas no pós-pandemia. Para Daniel Azenha, nem o medo, nem a vontade imensa da festa são respostas positivas ao problema. “Para nós, é essencial que as pessoas venham sem medo, mas também que não sejam inconscientes. Ainda que estejam com uma vontade imensa de ir a uma festa, que é normal em contexto universitário, as coisas têm que ser feitas com  grande responsabilidade”, afirma o presidente da AAC.

O lado semiótico da mudança

Há, ainda, um dado a ter em conta na hora de olhar para essa possibilidade de reconfiguração social geral, que João Teixeira Lopes lembra: as diferenças culturais entre os povos. As consequências económicas da pandemia não são mais relevantes do que as consequências sociais. “Não é por acaso que se diz que os europeus do sul têm uma relação com os outros de toque, proximidade, falar alto, afeto mais à flor da pele”, aponta.

A festa ia acontecer na noite de 23 para 24 de junho.

A saídas noturnas vão ser reconfiguradas. Para os “produtores” da noite, “os que resistirem”, o futuro passa por um aumento de cuidados “com a questão da ventilação, com as condições sanitárias”. “Os seguranças vão substituir os detetores de metais por termómetros; talvez o outfit de saída envolva temporariamente o uso de máscara”, diz Cláudia Rodrigues. Além disso, vai ter de haver uma “gestão de fluxos no sentido da diminuição do contacto”.

A socióloga salienta a importância da noite, neste que é um futuro imprevisível. A “noite” com o seu “potencial criativo, libertador, aberto e comunitário contribuirá para uma libertação do confinamento prazerosa e construtiva socialmente”.

Com o tempo, também a saudade e o medo crescem nas populações. As consequências do fluxo de sentimentos a que, nesta altura, toda a humanidade está sujeita, já se fazem sentir de forma tão profunda como as consequências sociais porque, como diz João Teixeira Lopes, as culturas “gerem a distância de maneira distinta”.

Artigo editado por Filipa Silva.