Na Praça do Marquês de Pombal existe uma comunidade. Alguns são amigos, outros conhecidos. Reúnem-se todos os dias espontaneamente para jogar às cartas e, sem saberem, perpetuam uma tradição. Lançamos a sexta de uma série de reportagens desenvolvidas pela redação do JPN, em fevereiro e março, sob o mote "comunidades".


Na mesa de José e de Manuel joga-se à sueca e às copas, mas nunca a dinheiro. A rotina dita que, todos os dias da semana, se encontrem espontaneamente junto da mesa que, para a comunidade do Marquês, já é deles. Não se fazem planos: não se trocam mensagens nem se liga a combinar. “É espontâneo, as pessoas aparecem, os primeiros quatro a chegar vão buscar as coisas e começam a jogar”, conta José Conceição ao JPN. Quando chove e, por vezes, aos fins de semana, há quem fique por casa.

José Conceição tem 62 anos e vai até ao Marquês praticamente todos os dias. Muitos ficam apenas a assistir, mas José vem para jogar à sueca: “é uma maneira de estar entretido e ao mesmo tempo conviver com amigos, rever pessoas”. José está reformado há cerca de dois anos. Trabalhava perto do Marquês, na Travessa da Senhora da Conceição, e quando passava pelo jardim ficava para assistir a um jogo ou outro. Um dia foi convidado para jogar, e ficou. “Eu trabalhei sempre no mesmo sítio. O vir para aqui já é hábito, depois de 48 anos seguidos a trabalhar aqui perto, já não sei outro caminho. São rotinas que se ganham que não são fáceis de perder”, reflete.

Já Manuel Magalhães, de 65 anos, vem apenas três a quatro dias por semana. Costuma jogar mas, por vezes, fica só a assistir. De manhã e à noite não se joga no Marquês: começa-se depois de almoço e fica-se “enquanto houver luz”. Manuel vem para se entreter e fica para conviver. “Temos aqui vários amigos, nunca jogamos com as mesmas pessoas. Conversamos, discutimos, ralhamos”, confessa. Sempre jogou às cartas e prefere a sueca. Trabalhou 45 anos numa empresa de refinaria de açúcar. Desde que se reformou, há cerca de quatro anos, que passa as tardes no Marquês.

Estima que cerca de 40 pessoas se juntam nas mesas de pedra do Marquês diariamente, para jogar ou apenas para assistir. Como conta Manuel, começar a participar é simples: “vem-se um dia, vem-se dois, diz-se boa tarde a um. Amanhã diz-se outra vez boa tarde, ganha-se confiança e pronto, entra-se assim”.

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Amigos ou conhecidos, só joga quem é sócio

Nesta mesa, onde os dois costumam estar, há um entendimento: formou-se uma “sociedade” que se rege pelas suas próprias regras. É composta por entre quinze a vinte “sócios”, sendo que cada um contribui com um euro mensalmente para comprar os baralhos de cartas, que ficam gastos de mês a mês. Com o dinheiro que sobra é organizado um almoço no Natal. “É um grupo nosso e jogamos sempre nesta mesa. A única ‘sociedade’ que existe é aqui, as outras mesas não fazem parte”, explica Manuel.

O grupo tem as suas próprias normas: quando estão a jogar quatro, se dois perderem têm de sair fora. Quando está muita gente e para dar a oportunidade a outros, quem estiver a ganhar há três rondas seguidas tem de sair para dar a vez. Além disso, para haver mais conforto, é colocado um pano em cima da mesa e quatro almofadas nos assentos. “Depois fica tudo aqui guardado neste quiosque – nós pedimos ao senhor do quiosque e ele deixa. E fazemos isto todos os dias, porque a maior parte das pessoas para ir embora deixa aí os cartões [no chão], deixam aí tudo, e nós não”, garante Manuel, que é sócio desde o início.

“Olhe, o senhor presidente está a chegar. Este senhor é que é o presidente”, diz José Conceição apontando para um homem que se aproxima da mesa. António Silveiro tem 70 anos e é o responsável pela “sociedade”. Todos os dias vai para o Marquês, mesmo em dias como este, em que a chuva ameaça. “São 365 dias por ano”, como diz. Foi nascido e criado na zona, fez a comunhão e casou na Igreja Paroquial de Nossa Senhora da Conceição – também conhecida como a Igreja do Marquês.

Enquanto não chove, António Silveiro, o presidente, aguarda a chegada de mais pessoas para se começar a jogar.

Já morou em Costa Cabral e agora vive perto de Damião de Góis. Ao longo dos 70 anos, nunca se afastou muito da praça. “Era miúdo, tinha seis anos e jogava futebol ali no Académico Futebol Clube, entretanto, havia uma biblioteca ali e ia para lá ler histórias, até aos dez anos. Depois, enquanto estudava e trabalhava, como me radiquei aqui na zona, vinha para o jardim nos tempos livres”, recorda com nostalgia.

A flexibilidade de horários permitia-lhe que fosse jogar cartas para o Marquês enquanto ainda trabalhava. Agora, reformado, mantém a tradição, sem precedentes na sua família e que poderá terminar com ele. Há cerca de 25 anos, António propôs que se organizassem em comunidade, por razões logísticas: “precisávamos de uma capa para pôr aqui na mesa e umas almofadas para pôr debaixo dos assentos, e tínhamos de comprar cartas. Tinha de ser algo minimamente organizado. Depois como sobrava algum dinheiro, tinha de haver uma boa gestão”.

Quem os vê de fora

O quiosque da praça, considerado de interesse municipal desde 1996, é o local onde são guardados os baralhos de cartas, o pano e as almofadas dos membros da “sociedade”. Carla Mendes é a proprietária do quiosque já há 25 anos. Desde sempre que os senhores que jogam às cartas no Marquês lhe pedem para guardar o material no seu estabelecimento, onde também compram os baralhos todos os meses. “Eles regressam todos os dias à mesma hora para virem jogar às cartas, e como são velhinhos, para não andarem todos os dias com as coisas atrás deles, deixam aqui”, explica Carla que o faz de boa vontade.

Carla Mendes não joga mas também pertence à comunidade. No Quiosque do Marquês, do qual é proprietária há 25 anos, guardam-se as cartas.

Já são clientes da casa – além das cartas, também costumam comprar tabaco, rebuçados da tosse e raspadinhas. Têm uma relação próxima com a proprietária, que diz conhecê-los bem e lamenta os que “vão desaparecendo com a idade”. Carla expressa carinho pelo grupo: “acho um mimo eles virem para aqui, alguns vêm de muito longe: da Maia, Ermesinde, Pedrouços… São rotineiros”.

E é de pequenas rotinas, de casa ao Marquês, que se fazem os dias dos jogadores. Alexandra Lopes, especialista em Sociologia do Envelhecimento, considera que a procura de uma atividade depois da reforma “acontece porque o ser humano é um ser gregário, que gosta de estar com outros e gosta de se envolver em atividades que tenham sentido. A reforma, ao afastar o indivíduo do mercado de trabalho, retira-o de um conjunto de rotinas que essencialmente ocupam o nosso tempo”.

Este tipo de atividades são uma forma de evitar o isolamento social, que segundo a socióloga da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP) está frequentemente associado a quadros depressivos e a uma deterioração física e mental. “O facto de ser jogo é muito interessante do ponto de vista cognitivo, porque o jogo é uma atividade estimulante que faz funcionar o cérebro”, esclarece.

Com ou sem trunfos, à terceira vitória dá-se lugar ao próximo. Num caderno gasto, Manuel regista os pontos de cada dupla.

Contudo, esta ocupação pode não ser bem vista aos olhos da família. Para António, o presidente da “sociedade”, o apoio não é muito. “Acham mal, porque é de má frequência. Isto é bom para mim porque eu sou homem, sou desinibido, não quero saber dessas coisas para nada. Pela minha mulher e pelos meus filhos eu não punha aqui os pés”, partilha. Já no caso de Manuel, a mulher está ocupada a trabalhar enquanto ele vai até ao Marquês. O filho, já formado e a trabalhar, aprova a sua ocupação – “às vezes, até passa aí, vem aí ter comigo”, conta com satisfação.

A origem da tradição

Como tudo começou ninguém sabe ao certo. Já muito tempo passou desde que o Marquês se tornou um ponto de encontro para as cartadas. A socióloga Alexandra Lopes oferece uma hipótese. “São espaços que ao longo dos anos ficam marcados por determinados usos coletivos que se vão perpetuando pelo tempo e que são passados de uns para os outros”, elucida.

Mitos urbanos ou não, os jogadores escrevem a história dos primórdios da tradição, que agora perpetuam todos os dias. José Conceição não sabe contar o início, diz que não é do seu tempo. Quando era miúdo já via os senhores na praça, mas nessa altura jogava-se no coreto. “Nem havia mesas nem nada, eles é que faziam do banco mesa”, relembra. Já António Silveiro, presidente da “sociedade”, calcula que a tradição se deve a um fenómeno social. “A partir do 25 de Abril, as primeiras pessoas a reformarem-se e a ocuparem os seus tempos livres começaram a vir até aqui e a jogar à sueca”. 

Diz que foi consequência de uma geração oprimida por uma ditadura que, quando foi libertada, saiu para as ruas, ocupou os jardins e “pôs-se assim a jogar”. Até à revolução, “toda a gente trabalhava. Era até uma vergonha se a pessoa estivesse desempregada, nem saía de casa. Portanto, não havia gente na rua para andar assim, a divertir-se”. António repara agora numa diferença social: antigamente só os reformados é que jogavam na praça, atualmente “já são reformados, desempregados e sem-abrigo”.

Por sorte ainda não chove e assim se vai passando a tarde nas mesas de pedra do Marquês. Como a tradição nasceu ninguém sabe, mas a praça continua a juntar pessoas.

Uma praça esquecida

António Silveiro fala por todos quando diz que gostava de ter melhores condições. “Ainda por cima isto é frequentado por 80 a 100 pessoas no verão. Se houvesse um espaço, haveria melhores condições para todas estas pessoas estarem sentadas. Isto assim não é nada”, queixa-se.

A antiga biblioteca do Marquês, situada na praça, já foi em tempos um espaço desejado pelos jogadores de cartas para se reunirem. Agora encontra-se encerrada. Esteve recentemente em hasta pública, mas o processo revelou-se nebuloso e a Câmara Municipal do Porto (CMP) decidiu anulá-la, anunciando a propósito que o espaço vai ser destinado a fins culturais, que deverá ter atividades rotativas.

Da mesma forma, José Conceição reflete sobre a complexidade da situação. “Nós gostávamos de ter um espaço onde não chovesse e onde não estivesse frio, mas conforme queremos nós, também querem os outros. É complicado e eu, por um lado, entendo a parte da Câmara, porque mesmo que nos queiram arranjar um espaço, isso engloba despesas. Não é nenhuma fortuna, mas tudo junto… Temos de ver os dois lados”, ressalva.

Aos poucos, o sol começa a abrir e o jardim vai ficando composto. Sem cerimónias, há quem passe e ceda à curiosidade de ver um jogo, ou até de participar.

Um espaço fechado para os jogadores pode não estar nos planos da CMP, mas a comunidade do Marquês contentava-se com o recondicionamento das casas de banho públicas que, depois de várias reclamações feitas, continuam sem condições. Como resultado, “as pessoas ou vão aos cafés, ou então, como há muita árvore, encostam-se por aí”, explica António Silveiro.

Também Carla Mendes se queixa do estado precário das casas de banho e das consequências que isso implica: “quando fazem xixi atrás do quiosque, no verão, isto é um pandemónio”. “Se eles tivessem essa facilidade, se a Câmara integrasse as casas de banho como um utensílio próprio da praça e fizesse a sua manutenção, eles próprios seriam habituados a utilizá-la”, acrescenta a proprietária do quiosque.

Questionada pelo JPN sobre o estado da casa de banho pública da praça, a CMP não esclareceu se vai reabilitar o equipamento.

Um grupo social “nas margens”

Em Portugal, uma em cada cinco pessoas tem mais de 65 anos (ver infografia). Segundo Alexandra Lopes, a oferta de atividades socioculturais para a população mais velha, reformada, está associada principalmente a centros de dia, paróquias e Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS). No entanto, “participam nessas atividades os utentes dessas instituições e serviços. Portanto, não são propriamente atividades que estão abertas a um público mais indiferenciado”, conclui.

A socióloga aponta que a oferta de atividades aberta à população em geral é escassa, sendo essa “uma das críticas que se coloca ao nível da gestão e planeamento urbano. Há algum défice de atividades pensadas para as populações mais velhas, [que] acabam por estar muito excluídas”.

A socióloga acredita que a resolução deste problema social está nas mãos dos decisores e das políticas públicas. “A população idosa, apesar de ser hoje muito numerosa, continua a estar muito nas margens. Não é a população prioritária para efeitos de um conjunto de tomadas de decisão e, portanto, a solução passa essencialmente por reconhecer espaço para esta população, para as suas caraterísticas e necessidades”, sugere.

Um convívio com uma “marca de género”

No meio das cartadas não há mulheres: nas mesas de pedra da praça do Marquês só se veem homens a jogar. José Conceição garante que “não vêm mulheres para aqui. Às vezes, aparecem raparigas novas e lá se sentam aí a jogar um bocado, mas é raro”.

Alexandra Lopes explica que as sociabilidades nos espaços públicos, como nos jardins e nos parques, normalmente “têm uma marca de género muito forte”. “A praça onde os senhores se sentam para jogar à sueca é também o mesmo espaço onde eles fazem a apreciação da ação política no país, onde tecem considerações sobre personalidades relevantes da comunidade e onde trocam também confidências de pendor mais masculino. É isso que marca aquele espaço como essencialmente masculino, não é só o jogo das cartas”, completa.

Damas só no baralho: a tradição ditou que o convívio do Marquês fosse masculino e a mesa da sociedade não é diferente.

No entanto, para a especialista em Sociologia do Envelhecimento, isto não tem necessariamente de ser interpretado como algo discriminatório: “são sociabilidades que têm uma história e que se construíram de determinada forma”. Neste caso, a divisão de género está ainda relacionada com uma questão histórica e social: “há umas décadas atrás, uma mulher não ia para o jardim, não era próprio de uma senhora recatada, de boas famílias”.

Mas hoje essa prática já não é comum: os jardins e parques são utilizados por pessoas de ambos os géneros, e as mulheres reúnem-se também nos seus próprios grupos. Ainda assim, é “pouco provável que comecem a aparecer mulheres no meio destes grupos, porque o facto de o grupo ser masculino é, em si, um traço importante da identidade daquela sociabilidade que se gera naquele espaço. Se de repente tivéssemos uma reconfiguração deste grupo em termos de género, já estaríamos a falar de uma outra sociabilidade”, explica Alexandra Lopes.

António Silveiro, presidente da “sociedade”, conta que apesar de o grupo de cartas do Marquês ser frequentado só por homens, existem locais em que há mulheres a jogar – “ali no Jardim de Arca d’Água há mulheres a jogar à sueca e, na praia, no Castelo do Queijo também há”.

O que dizem as cartas do futuro?

Ao que o JPN apurou, são vários os caminhos que levam os reformados a aderir a esta atividade, desde a proximidade geográfica e cultural à necessidade de entretenimento. Mas será assim no futuro? Serão os jogos de cartas em jardins o arquétipo do envelhecimento, ou com a mudança geracional podemos perdê-los no futuro?

Pensativo, José procura a melhor estratégia. Não sabe o que a próxima jogada lhe reserva. Também o futuro deste convívio social é incerto e dependente das mudanças geracionais.

A socióloga do envelhecimento considera que a atividade pode, de facto, mudar, mas quer acreditar que o convívio presencial não vai desaparecer. “Não estou a imaginar a geração dos meus filhos, que passam o dia agarrados aos telemóveis e aos gadgets eletrónicos, chegar aos 60, 70 anos e migrar para as cartas em papel. Não faz parte do universo de referência deles”, prevê. Alexandra Lopes explica que isso seria normal: “faz parte daquilo que é a vida coletiva, nós vamos assistindo a mudanças em todas as dimensões da nossa vida decorrentes da própria mudança que marca cada momento e cada geração”.

“Não me custava nada imaginar daqui a umas décadas essas pessoas mais velhas sentadas no Marquês, mas em vez de estarem a jogar à sueca – que os miúdos hoje nem sabem o que é -, se calhar estariam com os seus gadgets na altura, a fazerem jogos uns com os outros. Não seria disparatado pensar assim”, antevê a especialista.

Apesar de não jogarem sempre com os mesmo parceiros, António Silveiro conta que existem duplas preferidas.

No futuro, pode não haver quem continue o legado da “sociedade” da Praça do Marquês. Esta é uma “sociedade” que não tem nome, é apenas “um grupo de amigos ou conhecidos. Uns são amigos, outros conhecidos”, como esclarece o presidente. É ele quem controla as entradas para a comunidade, que diz estarem fechadas por agora, uma vez que já têm jogadores suficientes. Amigos ou conhecidos, formam-se parceiros. “Sempre gostamos de jogar mais com uns, ou então contra outros”, brinca António sobre a dinâmica do grupo que todos os dias se encontra na mesma mesa.

Artigo editado por Filipa Silva

Este artigo foi realizado no âmbito de uma série de reportagens desenvolvidas pela redação do JPN sob o mote “comunidades”, entre fevereiro e março de 2020.