Depois da morte lenta nos anos 80, do abandono e das sucessivas reabilitações falhadas nas últimas décadas, a antiga fábrica de cerâmica das Devesas vai dar lugar a museu dedicado às alterações climáticas.

O Complexo da Fábrica de Cerâmica e de Fundição das Devesas, em Vila Nova de Gaia, vai acolher um museu sobre alterações climáticas que se designará “Gaia Museu-Ambiente”. A decisão foi aprovada por unanimidade em reunião do Executivo da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia a 4 de maio. A obra, ainda sem prazos precisos, tem um custo estimado em 25 milhões de euros.

A autarquia gaiense sublinha que o “potencial” da recuperação do equipamento “vai além da mera preservação do edifício ou do seu espólio”, apontando a sua “localização no centro de Gaia”, como “estratégica e privilegiada face aos principais espaços e equipamentos urbanos”, lê-se na proposta votada pela autarquia a que o JPN teve acesso.

Citado pelo jornal “Público”, o presidente da autarquia, Eduardo Vítor Rodrigues, revelou na reunião, que decorreu à porta fechada por videoconferência, que está “expectante quanto ao que a obra pode gerar”, indicando que com o projeto a cidade de Gaia vai ter o “segundo museu do género na Europa”.

Eduardo Vítor Rodrigues referiu ainda que “devido às burocracias”, não é possível definir prazos precisos. “A expectativa é durante este ano conseguir selecionar o projeto vencedor para avançar com os projetos finais”, referiu o autarca.

Quanto ao custo, e de acordo com o valor inscrito no caderno de encargos, o município estima que sejam precisos 25 milhões de euros para cobrir a globalidade da intervenção, um valor próximo do que se prevê agora ser necessário para construir a sétima ponte sobre o Douro.

Os planos para os 13.500 metros quadrados da antiga cerâmica das Devesas, adquirida pelo município em fevereiro de 2018, passavam por transformar aquele equipamento devoluto no futuro Museu da Cidade, projeto que agora vai ser dedicado às alterações climáticas “em Gaia e no mundo”.

No novo museu vão ser integradas as duas chaminés e os dois fornos ainda existentes. Os painéis de azulejos que compõem parte dos muros das ruínas da cerâmica das Devesas, estão classificados e vão ser preservados no novo espaço, assim como as demais ruínas que possam ser alvo de preservação e reconstrução.

Foto: Paulo Sá Ferreira

Salas de exposição, restaurante e auditório

Para a Câmara de Gaia, “o risco de total degradação que corre e que poderia levar à sua destruição e desaparecimento”, torna mais premente a necessidade de “salvar este valioso património”, descreve a autarquia no caderno de encargos da requalificação.

O documento prevê que o Gaia Museu-Ambiente vá dispor de cinco salas para exposições permanentes e temporárias. Cada sala vai corresponder a um tema, com um mini laboratório interativo na Sala 1, a representação das alterações climáticas na sala 2, a história e o futuro das atividades tradicionais de Gaia na Sala 3 e as duas salas adicionais dedicadas à fotografia e ao audiovisual, com recurso a equipamentos 4D para projeção em realidade aumentada de imagens e vídeos em 360º.

O projeto contempla ainda um restaurante e cafetaria, que devem servir de apoio à população em geral mesmo quando o museu se encontrar encerrado. Está previsto também a existência de uma loja multifuncional, com livraria, sala de leitura e de vídeo. Ambos os espaços devem estar abertos para o exterior, que será ajardinado.

O novo museu vai ter ainda um auditório polivalente, com 400 lugares destinado à realização de conferências, seminários, palestras, projeção de filmes, espetáculos e atividades lúdicas diversas e um parque de estacionamento para 600 lugares, que deverá funcionar mesmo com o Museu encerrado.

A intenção da Câmara de Gaia é integrar o novo museu no circuito do patrimonio cultural da cidade, que engloba o futuro Centro de Congressos (a construir a poente da Rua de General Torres) e os outros já existentes como o Corpus Christi, os armazéns do Vinho do Porto, a Casa Barbot, ou a Casa Museu Teixeira Lopes/Galerias Diogo de Macedo.

Autarquia comprou complexo em 2018

Em 2010, no último mandato de Luís Filipe Menezes, o arquiteto Joaquim Massena tinha projetado para a antiga Cerâmica das Devesas, a construção de 137 casas, 215 lugares de estacionamento e 10 espaços comerciais, mas o projeto acabou por não se concretizar depois de o promotor ter entrado em insolvência.

Com a entrada de Eduardo Vítor Rodrigues na autarquia de Gaia, em 2013, entra também vida nova no desejo de recuperar o espaço da antiga Cerâmica das Devesas.

Em 2017, o “Público” revela que a compra da Fábrica das Devesas por valores “significativos, superiores a dois milhões de euros”, era uma das prioridades de Eduardo Vítor Rodrigues, com a intenção de ali criar “um grande parque público e espaço museológico”. Uma visão de “futuro” que o autarca tinha para o espaço, evitando erros do passado, como a “nova Quinta Marques Gomes em Gaia”, numa referência à propriedade junto ao Cabedelo, que foi transformada para dar lugar a construções, durante os mandatos do antecessor.

Em setembro de 2018 é anunciado o projeto de requalificação da Cerâmica das Devesas, que incluiria um parque de estacionamento subterrâneo com 600 lugares. O futuro “Museu da História de Gaia e da Cerâmica” iria albergar um auditório com capacidade para 500 pessoas, sendo 60% do espaço para fruição pública, como, espaços verdes.

Foto: Paulo Sá Ferreira

A abertura de concurso público internacional do “Gaia Museu” foi aprovada em reunião camarária a 17 de fevereiro deste ano, tenso sido retificada no passado dia 4, a alteração da tipologia do novo museu, que será agora dedicado às questões ambientais, contrariando a ideia inicial de construção de um espaço que preservasse a memória da cerâmica na cidade.

A “Fábrica do Costa”

Fundada oficialmente em 1865 por António Almeida da Costa, a fábrica localizada junto à estação de comboios das Devesas funcionaria como extensão da oficina de cantaria, enquanto se constituía uma secção de fundição no núcleo situado a Sul e se inaugurava uma dependência na Pampilhosa.

Com a chegada do caminho de ferro a Vila Nova de Gaia, a fábrica torna-se num dos complexos cerâmicos mais importantes da Península Ibérica.

Do núcleo Fabril das Devesas sai em 1863 a estátua de D. Pedro V, hoje na Praça da Batalha, no Porto, encomendada por José Joaquim Teixeira Lopes. O escultor e pintor chegou a dar aulas de desenho e modelação na Escola de Desenho Industrial de Gaia, que funcionou inicialmente numa das dependências da fábrica das Devesas, dando origem à primeira Escola Industrial de Gaia.

Ainda naquela década, é construído o bairro operário, local que ainda hoje é habitado por dezenas de pessoas, nas ruas contíguas ao complexo cerâmico.

Foto: Paulo Sá Ferreira

A importância do complexo fabril das Devesas ganhou visibilidade com a conquista da medalha de prata na Exposição Universal de Paris de 1900, ao ponto de receber a visita do último rei de Portugal, D. Manuel II, uns anos mais tarde.

A influência da Cerâmica das Devesas refletiu-se também no tecido social, com a criação em 1915 do Asilo António Almeida da Costa e da Creche D. Emília de Jesus Costa, fruto do testamento deixado pelo seu fundador e sua esposa, depois da morte de ambos – instituições que atualmente pertencem à Misericórdia de Gaia.

Foto: Paulo Sá Ferreira

Na década de 80, inicia-se o processo lento de desaparecimento da Cerâmica das Devesas. Em 1983, já com pouco trabalho, a Câmara Municipal de Gaia aprecia a viabilidade de construção de um loteamento no local.

Nesse mesmo ano é proposta pelo vereador da cultura a classificação dos painéis de azulejos do muro-mostruário como de Interesse Público, com o jornal “O Primeiro de Janeiro” a noticiar que se iria instalar um Museu de Cerâmica na fábrica, com uma escola-oficina, para preservar a atividade da mesma.

Foto: Paulo Sá Ferreira

Já em 1990, voltou a haver intenção de lotear os terrenos da fábrica da Cerâmica das Devesas, tendo sido, nesse mesmo ano, apresentado na Assembleia da República um projeto-lei para a construção de um museu de cerâmica nas instalações da Fábrica das Devesas, pela vereadora da CDU Ilda Figueiredo, que não foi aprovado.

As investigações arqueológicas levadas a cabo pela Direção Geral do Património Cultural (DGPC) em finais de 2002, identificaram um conjunto de “artes industriais”, como fornos de telha de Marselha anterior a 1840, duas chaminés e vestígios de outras quatro, enquanto, na frente do imóvel, se encontra uma exposição de azulejos.

A classificação do imóvel tem sido adiada há quase três décadas. Um despacho de abertura pelo então IPPAR (Instituto Português do Património Arquitetónico) em 15 de janeiro de 1991, caducou em 2013 e 2016, com o local a ter proteção arqueológica nível II, ao abrigo do Plano Diretor Municipal (PDM) desde 2009.

Foto: Paulo Sá Ferreira

Presentemente, depois de tantos avanços e recuos, e de muita história delapidada pelo tempo, a estória da Fábrica das Devesas parece tomar um novo destino diferente daquele que construiu nos últimos 155 anos.

Artigo editado por Filipa Silva