Como vai ser o futuro do trabalho depois da pandemia da COVID-19 ter alterado a rotina laboral da maioria da população? O JPN conversou com especialistas portugueses e estrangeiros que arriscam algumas respostas.

De acordo com todos, o teletrabalho vai ganhar uma importância muito maior no futuro, as ferramentas de comunicação virtual vão tornar-se (ainda mais) essenciais nos ambientes de trabalho, e alguns empregos antes desvalorizados, presenciais, podem começar a ser mais reconhecidos pela população e pelos empregadores.

Adaptação afeta produtividade

Em Portugal e no mundo, milhões de trabalhadores não essencias foram obrigados a ficar em casa durante a pandemia de COVID-19. Em consequência, as empresas tiveram de alterar os seus modelos de funcionamento. Para algumas, as atividades tiveram de ser cessadas quase completamente, enquanto em outras o teletrabalho tornou-se o novo normal.

Como para muitas o trabalho remoto foi uma novidade, a adaptação teve implicações ao nível da produtividade. João Cerejeira, doutorado em Economia e professor auxiliar da Universidade do Minho, explicou ao JPN que houve “danos na organização do trabalho” e que “qualquer processo de reoganização e transformação leva à perda de produtividade, mesmo que temporária.”

Nuno Moutinho, professor auxiliar da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, reforça a ideia: “Setores inteiros tiveram que parar e não produzir nada. A partir do momento em que têm que parar para construir maneiras efetivas de proteção e modificar o ambiente de trabalho, há queda da produtividade”, explica o professor de economia.

Além do fator organização, esta mudança no modelo de trabalho também pode afetar a produtividade por outros motivos. A ansiedade, o stresse e a saúde mental dos trabalhadores isolados em casa acaba por afetar a forma como estes trabalham e, por consequência, a sua produtividade. No entanto, um estudo realizado pelo Global Workplace Analytics, nos Estados Unidos, descobriu que cerca de 70% dos trabalhadores inquiridos dizem ser muito produtivos em casa. A presidente da empresa de consultoria, Kate Lister, diz ao JPN que este dado acaba por ser uma surpresa, uma vez que 15% dos inquiridos nunca teve a oportunidade de previamente trabalhar em casa.

Kate Lister também fala sobre a saúde mental, que é essencial num momento como este. “As pessoas não conseguem dar o seu melhor quando não estão saudáveis mentalmente. Um dos estudos mostrou que, apesar de tanto os trabalhadores quando os empregadores estarem satisfeitos com o trabalho que fazem em casa, ambos não estavam felizes”, explica a presidente da empresa norte-americana.

O professor e diretor do Mestrado em Economia e Gestão de Recursos Humanos da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, Eduardo Oliveira, diz que “há custos que têm que ser colocados em cima da mesa”. O isolamento contínuo através do teletrabalho e a falta de interação num ambiente comum pode causar um aumento nas jornadas de trabalho, levando a “efeitos de burnout e a uma ilusão do “sentimento de pertença”. No entanto, Eduardo Oliveira acredita que “há períodos de maior foco, maior concetração”, nos quais os resultados podem ser “mais rápidos do que em jornadas normais de trabalho.”

Teletrabalho em expansão, mas com longo caminho para percorrer

Num ensaio recente, publicado no jornal Observador, foi calculado que, em Portugal, de entre os mais de 2,8 milhões de trabalhadores e 200 profissões analisados, apenas 9% destas profissões têm um potencial elevado de adaptação ao teletrabalho. Enquanto isso, 26,4% têm um potencial significativo, mas apenas parcialmente. Os valores são muito diferentes dos que foram apresentados por um estudo norte-americano do “National Bureau of Economic Research”, que descobriu que 37% dos empregos nos Estados Unidos podem ser realizados em casa. Este número de empregos representa 46% da massa salarial no país.

Apesar do valor ser alto (37%), apenas 16% de toda a força de trabalho norte-americana trabalha a partir de casa em regime de, pelo menos, part-time, de acordo com o “U.S. Bureau of Labor Statistics” (BLS). Isso representa por volta de 26 milhões de pessoas para os 160 milhões do total de empregados. Já no Reino Unido, apenas 1.7 milhões de pessoas reportaram terem trabalhado principalmente em casa. O total de trabalhadores do país é 32,6 milhões, e menos de 30% deste número (8,7 milhões) já trabalharam alguma vez em casa.

Como se percebe, o teletrabalho não é algo que surge com a pandemia, mas tem crescido nos últimos anos. Michael Solomon, escritor e professor de marketing na Universidade de Saint Joseph nos Estados Unidos, explica ao JPN que estas situações, como a pandemia global do novo coronavirus, acabam por “acelerar tendências que já estavam em curso”. O escritor conhecido por livros e artigos sobre o comportamento dos consumidores diz que já “estávamos a ver uma diminuição no tamanho dos escritórios e das equipas” e que com essas transformações mais recentes, “esta tendência há de continuar.”

O teletrabalho pode, então, sofrer um crescimento propulsionado pela pandemia e tornar-se o novo modelo regente de uma parte das empresas. Nas grandes tecnológicas, como o Facebook, Twitter, Google, Microsoft e Apple, isso é já uma evidência.

A empresa Twitter Inc. é um exemplo de como algumas destas companhias devem passar a agir a partir do fim da pandemia. Um porta-voz da organização confirmou ao “The Guardian” que a empresa pretende manter o teletrabalho para grande parte dos seus empregados “para sempre”. Também o CEO do Facebook, Mark Zuckerberg, assumiu recentemente o plano de passar metade da vasta equipa da empresa para trabalho remoto no espaço de 5 a 10 anos, como explicou neste vídeo aos colaboradores da empresa.

Claro que medidas como estas não são passíveis de ser aplicadas em vários setores, onde a presença do trabalhador é fundamental. Basta pensar, nesta fase de pandemia, nos hospitais, ou em serviços como a recolha de resíduos.

Isolamento vs. Flexibilidade

O teletrabalho vem com vantagens e desvantagens. Eduardo Oliveira reflete sobre uma das maiores questões quando se fala do trabalho a distância: o isolamento do resto dos trabalhadores. “O teletrabalho puro e duro oferece algumas questões. Uma delas está ligada a essa necessidade que temos de nos relacionar. A qualquer empresa diria que, mesmo pós-pandemia, a organização deve ter em linha de conta que é boa prática manter contactos regulares entre os trabalhadores”, explica o diretor do mestrado de economia.

“Antes do vírus, um dos problemas que estas pessoas que trabalhavam em casa reportavam era que sentiam-se menos envolvidos nas políticas da empresa. A sua presença não era tão proeminente e não sabiam o que estava a acontecer na organização. Isso pode ser um problema, porque grande parte do que acontece numa empresa, acontece entre reuniões e relatórios, nas conversas de corredor”, acrescenta Michael Solomon.

A corroborar a ideia, um estudo da Buffer em que questionaram 2.471 pessoas de diferentes países, mostra que 19% delas citava a solidão como uma das maiores dificuldades do teletrabalho. Mas a maior dificuldade apontada é a de “desligar do trabalho“, com 22% dos inquiridos a responderem nesse sentido. Michael Solomon diz que há formas de quebrar com a tradicional expressão “work and play”. Tradicionalmente, essa expressão refere-se à distinção entre o trabalho e a diversão, mas para o autor, no trabalho atual não há essa separação.

“As pessoas muitas vezes se divertem enquanto trabalham, fazem compras online e coisas do tipo, ou trabalham enquanto se divertem. Eles não têm mais essa fronteira, especialmente quem tem crianças em casa. As empresas perceberam que os trabalhadores não precisam estar o tempo todo focados e que trabalham bem de casa”, explica Michael Solomon.

As vantagens do trabalho remoto para o trabalhador também existem. Na sondagem da Buffer, os inquiridos nomearam a flexibilidade do horário de trabalho como o principal benefício deste modelo. “Podem ser mais flexíveis. Podem ser mais produtivos, porque estão a trabalhar em volta dos seus horários. Algumas pessoas preferem manhãs, outras não. Podem talvez basear o seu trabalho pensando nas necessidades do seu corpo. Tudo isso tem a ver com controlo, ter controlo do ambiente à sua volta. Isso pode ser bem positivo para as pessoas”, explica Michael Solomon.

Esta questão pode também levantar alguns problemas, como a dificuldade de supervisionar se os trabalhadores estão realmente a trabalhar. Porém, como Kate Lister explica, os próprios “supervisores e gerentes tiveram a oportunidade de trabalhar em casa”, o que lhes dá maior capacidade de compreender a forma de trabalho deles e dos outros trabalhadores. Eduardo Oliveira alerta, por sua vez, para o perigo do excesso de supervisão pelas empresas, que podem tornar-se um “Big Brother”, com “risco de controle absoluto”. “Pode erodir bastante a qualidade da relação entre os trabalhadores e a empresa. Se a empresa quer confiança, precisa confiar nos seus trabalhadores”, explica o diretor do Mestrado em Economia e Gestão de Recursos Humanos.

Entretanto, apesar dos pontos negativos, as vantagens parecem pesar mais. Kate Lister afirma, novamente com base nos resultado do estudo realizado pelo Global Workplace Analytics, que “76% das pessoas que estão a trabalhar em casa querem continuar a fazer isso no futuro, por pelo menos uma parte do tempo, numa média de dois dias por semana.”

Comunicação virtual também sai reforçada

Se o teletrabalho saiu reforçado da pandemia de COVID-19, o uso de ferramentas de comunicação virtual também. Diversas empresas apostaram numa melhoria da comunicação à distância, usando, além do já universal e-mail, plataformas e ferramentas como o Skype, Zoom, Microsoft Teams, o Slack ou o Whatsapp, para manterem contacto durante o período de isolamento. Estes desenvolvimentos vão ser aproveitados para o período pós-pandemia.

E o fim do vírus e do isolamento não significa a volta ao que era anteriormente. O que os diversos especialistas ouvidos pelo JPN concordam é na criação de um modelo híbrido de trabalho. Neste, que pode variar conforme as empresas, os trabalhadores teriam dias ou horários em que ficariam em casa e outros no escritório. Um modelo pode ajudar nos problemas citados pelos trabalhadores – dificuldade em desligar, solidão – e ainda dar a liberdade e foco que tanto desejam. “Espero ver uma atitude muito diferente em relação à flexibilidade e ao trabalho a distância, um modelo híbrido muito mais alargado”, afirma Kate Lister.

Este estilo híbrido pode proporcionar um maior controlo sobre o horário de trabalho e pode também – dependendo da modalidade presencial exigida – reduzir não só o tempo e os gastos de deslocação para o escritório, como também os danos no meio ambiente causados pelos carros, que tem sido um dos pontos levantados. Em alguns países e em algumas empresas, este estilo de trabalho já estava implementado mesmo antes da pandemia. As pessoas trabalham certos dias em suas casas e outros vão até à empresa, onde podem ter uma maior confraternização e discussão de interesses de trabalho.

As empresas já devem estar, a partir desta pandemia, a pensar nestas novas configurações, que também vão ser essenciais para evitar um possível contágio do novo coronavirus como de outras doenças que possam vir a surgir. One size does not fit all, cita Eduardo Oliveira como uma frase representativa de como cada empresa deve abordar essa questão. Têm que ter em “conta as especificidades de cada empresa. Se a resposta for genérica, é errada. As empresas têm que ser ágeis”, criar “hábitos e rotinas e promover o equilíbrio”, explica o professor da Universidade do Porto.

Quanto aos empregos que, por força da sua natureza, continuarem a ser presenciais – o que inclui, entre muitos outros, trabalhadores de supermercados, farmácias, hospitais até aos que entregam a comida em casa – podem vir a beneficiar de um maior reconhecimento social e de uma majoração salarial associada ao risco.

Michael Solomon explica que “a maioria dos empregos que não podem ser cumpridos a partir de casa são mal pagos. Estes vão ser provavelmente mais bem pagos no futuro. Quando voltarem ao normal, empresas devem começar a pagar salários mais altos ou bónus para quem aceitar trabalhar nessas condições. O status destes trabalhadores na sociedade também deve aumentar, porque perceberam e apreciaram o quão importante é o seu trabalho.”

“Haverá mudanças, algumas serão boas, outras serão más. Mas com certeza haverá grandes mudanças”, conclui Michael Solomon.

Artigo editado por Filipa Silva