Entrámos na casa espiritual dos judeus do Porto para conhecer melhor os costumes e a história da Comunidade Israelita do Porto. Esta é última de uma série de reportagens desenvolvidas pela redação do JPN sob o mote "comunidades", entre fevereiro e março deste ano.

Com presença na Invicta desde o século XIV, a Comunidade Israelita do Porto (CIP) é uma das comunidades judaicas mais antigas do mundo. É o que descobrimos sentados nos longos bancos de madeira da Sinagoga do Porto, onde Hugo Vaz, diretor da Cultura e Investigação Histórica da CIP, conta que a comunidade é hoje composta por mais de 30 nacionalidades. “São maioritariamente sefarditas, famílias originárias de sítios diversos como a Polónia, Alemanha, Rússia ou Lituânia. Temos um pouco de tudo, o que demonstra a beleza da nossa comunidade”, sublinha.

Hugo Vaz não é filho de mãe judia. Por isso, não é judeu, nem procura a conversão. Mas a afinidade e o grau de conhecimento do judaísmo é latente nas palavras que profere sobre a “comunidade”. O mestrado realizado sobre a comunidade judaica na Universidade do Porto captou a atenção dos judeus da Invicta e foi chamado para trabalhar o arquivo da comunidade. “Acabei por ficar por aqui”, diz o atual curador do novo museu da comunidade, que se encontra em frente à Sinagoga.

A origem da comunidade remonta à Idade Média, mas a nova vida da CIP nasce com a vinda de judeus do centro e leste da Europa para o Porto entre finais do século XIX e inícios do século XX. O objetivo destes nómadas era juntar todos os judeus que residiam na região, criando um espaço onde as famílias pudessem praticar a sua religião e envolver-se ao nível cultural.

É através do capitão Artur Barros Basto, convertido ao judaísmo em Marrocos em 1920 (e o único português convertido à altura), que se dá a união no Porto de algumas famílias judaicas que viviam na cidade. Esta dimensão religiosa e cultural ganhou corpo legal em 1923.

Fotos: Paulo Sá Ferreira

Muitos séculos antes da criação do Estado de Israel, formalmente concebido e reconhecido no pós-Segunda Guerra Mundial (foi fundado em 1948), os cripto-judeus viveram em Portugal. Aliás, a presença de judeus na cidade do Porto remonta ao ano de 1386. A sinagoga usada pela comunidade na altura situava-se no local onde está atualmente no convento de São Bento da Vitória.

Situada em zona nobre da cidade do Porto, na Rua Guerra Junqueiro, na Boavista, a sinagoga Kadoorie MekorHaim (aberta em 1938) é a maior da Península Ibérica e o símbolo mais visível e icónico desta comunidade. Geralmente de portas fechadas, a entrada no templo judaico nem sempre é fácil. Longe vão os tempos do antissemitismo em Portugal, mas num mundo global, o perigo esconde-se atrás de cada esquina. A visita à sinagoga é possivel, mas deve ser previamente combinada com um responsável da comunidade.

A nova lei da nacionalidade e o sentimento de segurança

A comunidade é constituída por mais de 400 membros, sendo que hoje a maioria dos membros são judeus sefarditas, termo que deriva de Sefarad (termo bíblico para “Península Ibérica”, que o hebraico moderno considera ser sinónimo apenas de “Espanha”).

O que une os judeus nesta e noutras comunidades é, para Hugo Vaz, “o sentido de pertença a um povo, que pressupõe uma cultura própria, uma religião, uma língua própria, quer venham dos EUA, da China, Portugal ou Espanha. É um sentimento de pertença cultural, da praxis social, de uma forma de estar na vida”, descreve.

“Muitas das famílias desta comunidade vivem cá há muitas décadas. No entanto, desde que alguém prove a sua ascendência sefardita pode requerer a cidadania portuguesa, embora muitas famílias não precisem, porque provêm da União Europeia”, relembra.

É o que acontece a muitos descendentes de judeus sefarditas portugueses, que se têm naturalizado nos últimos anos, graças ao Decreto-Lei n.º 30-A que alterou a Lei da Nacionalidade. Desde 2015, foram já 51 mil os descendentes de judeus sefarditas que pediram a nacionalidade portuguesa. Destes, cerca de 17 mil já a garantiram, sendo que a maior parte dos pedidos foram apresentados por cidadãos de nacionalidade israelita, brasileira e turca, segundo Lurdes Serrano, diretora da Conservatória dos Serviços Centrais do Instituto de Registos e Notariado, em declarações à RTP.

Os descendentes de origem portuguesa conservam a matriz lusa fruto de um passado rico em ligações judaicas ao nosso país, mantendo os apelidos de famílias judaico-sefarditas, misturada com a castelhana. Além da língua portuguesa e hebraica, ainda hoje é falado entre os descendentes de judeus sefarditas portugueses o ladino, língua usada pelos sefarditas expulsos de Espanha e de Portugal no século XV, derivada do castelhano e do português e atualmente falada por cerca de 150 mil pessoas em várias comunidades do mundo.  

Fotos: Paulo Sá Ferreira

Apesar de o Estado de Israel ser oficialmente a “casa” dos Hebreus e de muitos se encontrarem espalhados pelo Mundo, existem outras razões, além da questão da nacionalidade, para que judeus de origem estrangeira escolham o Porto e Portugal para viver: a segurança e a tolerância são exemplos.

“Portugal a nível económico tem sido um país de oportunidades. E depois tem uma coisa que muitos outros países não têm que é segurança e tolerância”, assegura Hugo Vaz. “Eles (judeus) sentem-se completamente confortáveis. Não é apenas o regresso às suas raízes, é o facto de se sentirem bem aqui”, reafirma o representante judaico.

Se “infelizmente essa não é a realidade em muitos países”, admite Hugo Vaz, o sentimento de pertença, integração e tolerância vivido pela comunidade judaica portuguesa é reafirmado pelos “protocolos de amizade e cooperação assinados entre a Comunidade Judaica do Porto e outras comunidades religiosas como a muçulmana ou até mais recentemente com a Diocese do Porto. As relações não poderiam ser melhores”, afirma.

Uma comunidade ortodoxa

Filho de mãe judia, Richard Zimler nasceu e cresceu nos EUA. A viver no Porto há já 30 anos, o escritor e ensaísta conta-nos que apesar de conhecer “alguns membros da comunidade judaica do Porto” não é “membro da comunidade”.

A Comunidade Israelita do Porto é uma comunidade ortodoxa. “Os judeus ortodoxos querem preservar a sua maneira de olhar o judaísmo, não procuram membros que sejam de outros ramos. E eu não sou judeu ortodoxo. Não é possível, por isso, eu participar ativamente na comunidade, mas apoio algumas atividades de vez em quando”, revela o também professor.

Conhecedor da “história dos sefarditas”, diz adorar a “história judaica, a sua mitologia”, mas de forma contundente afirma que não está “interessado nas regras”.

“Na Europa, as comunidades são mais herméticas. Daí ser muito difícil a alguém de fora da comunidade participar. As comunidades judaicas portuguesas são muito ativas, mas são muito pouco acessíveis em relação a quem é de fora. Não estou a culpabilizar, a criticar, estou a notar que eles são de facto herméticos, são uma comunidade à parte”, observa Richard Zimler sobre as razões do seu distanciamento sobre a Comunidade Israelita do Porto.

Cinema e um novo museu

Há 15 milhões de judeus espalhados pelo mundo. Ao nível interno, a CIP promove a comunidade também em termos culturais, por exemplo, com o apoio à produção de alguns filmes.

A longa-metragem “Sefarad”, estreada em novembro passado, conta a história da comunidade judaica do Porto desde 1496 até aos dias de hoje. Um segundo filme, disponível no próximo ano, vai retratar a fase da Inquisição com base em factos verídicos que remontam a 1618.

Elogiado pelo Papa Francisco e reconhecido pela crítica cinematográfica com mais de 20 prémios em festivais, “The Nun’s Kaddish” é outro exemplo de um filme apoiado pela Comunidade Israelita do Porto.

A presença cultural judaica da cidade do Porto está retratada também no museu da comunidade. O novo museu, que por razões de segurança ainda não está aberto ao público, com curadoria de Hugo Vaz, apresenta uma múltipla coleção de objetos e documentos relacionados com os ritos judaicos e com a presença dos judeus no Porto, atravessando o período medieval até à atualidade, com atenção redobrada à vida e obra do capitão Barros Basto, o fundador da comunidade.

Fotos: Paulo Sá Ferreira

Um hotel koscher que é único no país

Uma das várias características peculiares dos costumes judaicos tem a ver com a Kashrut, um conjunto de leis dietéticas que os judeus devem seguir, com a comida koscher (“pura” em hebraico) a dominar os hábitos alimentares dos Judeus.

Desde 2013 que a CIP e o Hotel da Música, próximo da sinagoga, são parceiros, estando o segundo totalmente preparado para um cliente judeu.

“Temos uma cozinha totalmente koscher, staff e quartos preparados para receber clientes koscher, principalmente no período do shabbat (sábado ou dia de descanso, que inicia no pôr do sol de sexta e termina no sábado), onde há mais regras que têm de ser cumpridas”, revela-nos o responsável do Hotel da Música, João Duarte.

Sendo o “único hotel [em Portugal] que tem uma cozinha certificada koscher”, João Duarte assegura que os produtos encomendados “requerem a supervisão do rabino”. As reservas são por isso feitas com, pelo menos, um dia de antecedência, de forma a que a confeção das refeições e o serviço possam ser controlados pela supervisora da sinagoga, designada pelo rabino da Comunidade Judaica do Porto.

João Duarte garante que há procura: “o cliente israelita faz parte do top 4 ou 5 de nacionalidades que procuram o nosso hotel. Temos muitos clientes judeus que vêm de França e França está no nosso Top 3”.

Ter a maior sinagoga da Península Ibérica é, na opinião do responsável pela unidade hoteleira, fator decisivo “para a escolha de um cliente judeu pelo Porto”, para além da cidade ter “vestígios do passado judaico“. “Por isso, temos operadores turísticos a fazerem tours judaicos pela cidade. Temos aproveitado isso para vender o nosso destino”, conta-nos João Duarte.

Não fosse o tempo absolutamente singular em que nos encontramos, o Porto continuaria na “moda”. Mas apesar de os caminhos estarem mais desertos, a luz de David continua a brilhar da cidade do Porto para o mundo.

Artigo editado por Filipa Silva

Este artigo foi realizado no âmbito de uma série de reportagens desenvolvidas pela redação do JPN sob o mote “comunidades”, entre fevereiro e março de 2020.