Foi já no final do mês de março que Woody Allen assistiu ao lançamento da sua autobiografia. Mais cedo que o esperado e ainda assim de forma inesperada.

Inicialmente agendada para o mês de abril, a publicação do livro esteve nas mãos da Grand Central Publishing, do grupo editorial Hachette US. Porém, a polémica que há 38 anos reformulou opiniões em torno do realizador voltou, há uns meses, a marcar presença nos jornais mais conceituados dos Estados Unidos, dificultando o processo de publicação da autobiografia.

Após uma greve realizada por vários funcionários da editora, o cineasta, que foi um dos mais acarinhados do século XX, deparou-se com um entrave à publicação do seu livro, devido ao regresso da polémica de abuso sexual à sua filha adotiva. Este acontecimento levou a Grand Central Publishing a voltar atrás com a palavra, desistindo da publicação da autobiografia.

Pouco tempo depois, a editora Arcade Publishing decidiu enfrentar as críticas e avançou com a proposta de lançamento do livro de Woody Allen. A 23 de março, o cineasta de 84 anos viu (finalmente) as suas memórias publicadas nas livrarias dos Estados Unidos e de Itália.

Dias de chuva na carreira de Woody Allen

Em 1982, Dylan Farrow, filha adotiva de Woody Allen e de Mia Farrow, acusou o cineasta de abuso sexual. As alegações levaram a uma investigação criminal que não resultou em qualquer acusação em tribunal. Em 2018, no âmbito do movimento #MeToo, Mia Farrow, com quem Woody Allen teve um relacionamento de doze anos, reforçou a acusação. O realizador de “Um Dia de Chuva em Nova Iorque” negou sempre as alegações relativas a este caso.

Semanas antes da data do lançamento da autobiografia do realizador, o jornalista Ronan Farrow, filho biológico de Mia Farrow e Woody Allen, irmão de Dylan Farrow, criticou fortemente a editora, quando esta anunciou a saída do livro. Ronan Farrow publicou, em outubro do ano passado, o livro “Catch and Kill” numa das filiais da editora Hachette US. Após a notícia de que a mesma editora iria editar, também, as memórias do pai, Ronan expressou na rede social Twitter o seu descontentamento com a empresa que, segundo ele, não demonstrou compaixão pelas vítimas de abuso sexual e não teve ética ao não verificar a história da irmã. Perante estas críticas, vários colaboradores do grupo editorial Hachette US fizeram greve nos escritórios de Boston e Nova Iorque, em forma de protesto contra a publicação do livro. Estas manifestações de desagrado levaram a que, no dia 6 de março, a Hachette US recuasse na promessa de publicar o livro do “pária tóxico” escritor, como este se autointitula.

Foi então que, inesperadamente, a Arcade Publishing deu um passo em frente, tomando a decisão de publicar a autobiografia. A editora independente justificou, em comunicado, que decidiu avançar com a publicação e distribuição do livro tendo em conta a qualidade do material e em nome da liberdade de expressão.

Um livro a propósito de tudo

“A Propósito de Nada”, tradução fiel ao título original “Apropos of Nothing”, oferece uma visão abrangente e pessoal da vida atribulada de Woody Allen. Em 450 páginas, o célebre realizador, comediante, escritor e ator recorda, num tom sincero e, em certos momentos, hilariante, as memórias da infância em Brooklyn, alguns episódios inéditos da sua passagem como escritor num programa de variedades, nos primórdios da televisão, os dias difíceis como stand-up comedian e todos os capítulos da sua carreira de 60 anos no vasto mundo das artes e do entretenimento.

Ao longo da sua autobiografia, Woody Allen revela que, após a sua morte, não faz questão de ser recordado, mas que, se for, gostava que as pessoas o descrevessem como um cineasta menor (ainda que esforçado), um comediante divertido, um ator limitado e um escritor com algum talento.

Ao longo da sua autobiografia, Woody Allen revela que, após a sua morte, não faz questão de ser recordado, mas que, se for, gostava que as pessoas o descrevessem como um cineasta menor (ainda que esforçado), um comediante divertido, um ator limitado e um escritor com algum talento.

Como é incontornável a questão da acusação de que o cineasta ainda hoje é alvo, desta autobiografia pode também esperar-se “o outro lado” da história – “a verdade não pode ficar escondida para sempre”, alega o escritor. A Arcade Publishing aconselha a leitura do livro a quem tenha dúvidas e questões sobre o assunto. Woody Allen fala também das suas relações com familiares, amigos e amores da sua vida, tendo dedicado o “livro maldito” a Soon-Yi Previn, sua mulher e filha adotiva da atriz Mia Farrow e do músico André Previn.

A autobiografia de Woody Allen estava há vários anos para ser lançada e chega às livrarias portuguesas no próximo dia 23 de julho, pelas Edições 70, do grupo Almedina.

A arte de Woody Allen

Nascido a 1 de dezembro de 1935, em Brooklyn, Woody Allen, nome artístico de Allan Stewart Königsberg, tem divulgado a sua arte através de áreas como o cinema, a escrita, a música e a representação. É autor de comédias ácidas e inteligentes e vencedor de vários prémios de cinema. A sua obra é hoje matéria de estudo em todo o mundo.

Filho de um livreiro e descendente de judeus de origem alemã, Woody Allen frequentou a Universidade de Nova Iorque, mas não completou os estudos. Muito jovem, começou a vender textos de humor para comediantes de jornais e programas de rádio.

A primeira vez que Woody Allen apareceu na televisão foi em 1965, no “The Tonight Show”, apresentado por Johnny Carson. Foi nessa noite que o produtor Charles Feldman descobriu Woody Allen, convidando-o a escrever e a estrear-se como ator no filme de comédia “What’s New Pussycat?”, uma paródia ao filme de James Bond. Nessa altura, Allen já mostrava admiração pelo jazz e começou a tocar saxofone e clarinete.

“Midnight in Paris”, “Annie Hall” (1977), “Manhatan” (1979) ou “Match Point” (2005) são alguns dos seus filmes mais relevantes. Mas a lista é enorme…

Woody Allen assinou mais de 50 filmes e protagonizou muitos deles. Os primeiros filmes que o tornaram famoso foram comédias leves, como “Bananas” (1971), “Everything You Always Wanted to Know About Sex (But Were Afraid to Ask)” (1972) e “Sleeper” (1973). Os anos 80 trouxeram alguns dos seus maiores clássicos e permitiram a Allen explorar alguns dos seus temas preferidos: a cidade de Nova Iorque, a religião judaica, a psicanálise e a burguesia intelectual norte-americana.

Os filmes de Woody Allen podem dar-nos a sensação de que o cineasta é um ser intelectual, neurótico, perdedor, inquieto e inseguro. Porém, a imagem que Allen tem de si é bastante diferente da personalidade percecionada por aqueles que acompanham a sua carreira no cinema, garante o escritor.

Woody Allen foi vencedor de dois globos de ouro e quatro óscares, entre outras dezenas de prémios e nomeações. O filme “Midnight in Paris” (2012) foi merecedor do seu mais recente Óscar de Melhor Guião Original e do Globo de Ouro de Melhor Guião.

Artigo editado por Filipa Silva