Natural de A-dos-Francos, Caldas da Rainha, João Almeida partiu para a Volta à Itália, disputada numa fase mais tardia do ano devido às contingências da pandemia, como um desconhecido para a maioria dos portugueses. Volvidas três semanas, o jovem de 22 anos conquistou o coração dos fãs da modalidade, voltou a colocar o ciclismo na agenda mediática e transformou-se num herói nacional que fez muitos chegarem a acreditar na vitória final.

Não aconteceu, mas o quarto lugar na classificação geral, superando o quinto lugar de José Azevedo em 2001, foi um prémio mais que merecido para um atleta que brilhou bem alto no Giro e acumulou vários recordes. Afinal de contas, João Almeida não só foi o camisola rosa da terceira até à 17.ª etapas, como também terminou por duas vezes no segundo posto e outras duas vezes no terceiro, finalizando 11 etapas entre os dez primeiros classificados.

Uma “surpresa gigantesca”

Apesar de ter somado resultados de relevo nos escalões mais jovens – foi campeão nacional de estrada e contrarrelógio em cadetes, juniores e esperanças -, Olivier Bonamici, comentador da Eurosport, em declarações ao JPN, é perentório a afirmar que nada deixava antever um resultado deste calibre, naquela que foi a estreia do ciclista português numa grande volta e a sua primeira época no World Tour – o mais alto escalão do ciclismo internacional -, graças à aposta da Deceuninck-Quick Step. Ainda assim, João Almeida foi uma “surpresa gigantesca” numa Volta à Itália cheia de surpresas.

Ganha pelo britânico Tao Geoghegan Hart, que partiu para o contrarrelógio da última etapa com o mesmo tempo do australiano Jay Hindley (dois jovens ciclistas em quem ninguém apostava para a vitória no arranque da prova), esta edição do Giro é, na opinião do comentador, a consequência da conjugação de três fatores: uma juventude cheia de talento – Hindley, Almeida e Hart; ciclistas mais veteranos que desiludiram imenso, como Vincenzo Nibali, Domenico Pozzovivo e Rafal Majka; e os abandonos de alguns favoritos devido à COVID-19, no caso de Simon Yates e Steven Kruijswijk, ou por causa de queda, no caso de Geraint Thomas.

Para Olivier Bonamici, o que mais impressiona em João Almeida é a maturidade que apresenta, “uma maturidade que normalmente um ciclista de 22 anos não tem”, para além da tranquilidade e inteligência que demonstrou para ir buscar bonificações – apenas disponíveis para os três primeiros de cada etapa – e ganhar segundos preciosos à concorrência na classificação geral. “Ele soube gerir muito bem esta pressão de ficar com a camisola rosa vários dias e teve uma gestão da corrida muito interessante”, afirmou o comentador. 

À etapa 15, na chegada a Piancavallo, o português sofreu a bom sofrer para manter a camisola rosa. Foto: Deceuninck Quick-Step/Facebook

Depois de 15 etapas a vestir de rosa, o ciclista português acabaria por perder a liderança nos intermináveis 25 quilómetros da mítica subida do Stelvio, algo que não surpreendeu Olivier Bonamici. “Foi pena a etapa do Stelvio. Para mim não foi uma surpresa. Eu estava à espera que ele quebrasse no Stelvio. Fiquei triste, porque estava a torcer por ele, mas não foi uma surpresa para mim, porque ele não estava preparado para ganhar a Volta à Itália. Não estava programado, não estava planificado”, comenta.

Como foi confirmado pela Deceuninck-Quick Step, João Almeida não fazia parte dos planos da equipa para o Giro, mas sim para a Volta à Espanha. Contudo, a queda de Remco Evenepoel na Volta à Lombardia acabou por empurrar o português para a prova transalpina e o resto, como dizem, é história.

“Gregário de luxo” da Quick Step?

Mesmo com este resultado, o comentador da Eurosport mostra-se cauteloso no momento de traçar o futuro da carreira do jovem de 22 anos, uma vez que é preciso esperar para ver se o português vai ser capaz de repetir este desempenho, já que são vários os exemplos de ciclistas que fizeram top cinco numa grande volta e depois não voltaram a conseguir resultado semelhante.

A dúvida está agora em perceber se a Deceuninck-Quick Step acredita que João Almeida pode assumir um papel de liderança numa grande volta. Para a Volta à França, a equipa deve continuar a aposta em Julian Alaphilippe – que se sagrou campeão do mundo de estrada em setembro – e depois há ainda Evenepoel, ciclista de 20 anos apontado como o próximo grande fenómeno do desporto. 

Na opinião de Olivier Bonamici, o ciclista português pode acabar por ser “um gregário de luxo, um número dois da equipa, para ver o que é que ele vale realmente, para depois, sim, daqui a um ou dois anos, ser líder da equipa numa grande volta”.

Sobre as reais possibilidades de João Almeida vir a ganhar uma grande volta no futuro, o comentador diz que é preciso “não entrar em histerismo”. “É possível que ele ganhe, mas também não é uma certeza. Houve ciclistas, no caso de França, como o Romain Bardet, que apareceram muito jovens e nunca ganharam uma grande volta até à data. Portanto, é preciso ter calma em relação a isso também.”

Embora mostre sinais de ser já um ciclista bastante completo, a subida ao Stelvio revelou algumas limitações do português na alta montanha. No entanto, a sua idade faz com que tenha ainda uma grande margem de progressão. “Ele tem tudo para ser um grande campeão. Ele é completo. É bom no contrarrelógio”, algo fundamental para se ganhar uma grande volta no panorama atual, como ficou evidente na última etapa da Volta à Itália (e na penúltima da Volta à França também).

O português cumpriu um sonho em Itália. Foto: Deceuninck Quick-Step/Facebook

“Hoje em dia, ganhar uma grande volta e ser mau no contrarrelógio não dá. E o João é ótimo em muitas coisas. Vai ter de melhorar na alta montanha, como o Stelvio. É isso que ele vai ter de melhorar. Mas tem tudo para melhorar ainda, como é evidente”, refere Olivier Bonamici.

No que diz respeito ao impacto que os desempenhos de João Almeida e de Rúben Guerreiro, vencedor da camisola da montanha da Volta à Itália e o primeiro português a vencer uma classificação numa grande volta, podem vir a ter na popularidade da modalidade em Portugal, o comentador da Eurosport acredita que esse impacto vai depender dos resultados dos ciclistas portugueses em próximos eventos.

Num país com fraca cultura desportiva, o sucesso da modalidade está muito dependente dos sucessos dos ciclistas nacionais, uma vez que, à exceção dos órgãos de comunicação especializados, não se fazem capas de jornais ou se dá muito tempo de antena a ciclistas internacionais

“Para isso acontecer, seria preciso os ciclistas portugueses atuais manterem este nível. Se o mantiverem, eu acho que vai nascer um fenómeno ali de interesse. Agora o risco é que – e isto não é culpa deles – se não mantiverem, depois o interesse da comunicação social desce e a partir do momento em que desce, não cria hábitos. Para os hábitos se criarem é preciso haver resultados ano após ano”, explica Olivier Bonamici.

Nesta fase, o comentador é incapaz de dizer neste momento se os ciclistas nacionais serão capazes de manter o nível durante o próximo ano. Mais uma vez, é preciso esperar para ver se este ano, “um ano extraordinário”, vai ter seguimento. “Eles podem para o ano brilhar ainda mais ou igual, mas também é possível o contrário”, rematou.

Artigo editado por Filipa Silva