Na sala de aula estão seis alunos. As vozes, de gente crescida, projetam-se de várias direções. Convergem na procura de uma rima, a rima perfeita para a palavra “sardinha”.

“Uma bela sardinha no prato, com uma bonita escaminha”, diz do fundo da sala Júlia Gomes, que aos 72 anos está a aprender a ler e a escrever.

O Poeta Faz-se, uma oficina de criação poética para adultos, que entre setembro e outubro decorreu em diferentes espaços de Matosinhos, é um projeto que incorpora isso mesmo: aprender a ler e a escrever, enquanto se compõe um poema.

O objetivo principal é sensibilizar os alunos para a criação poética e desconstruir a ideia de que a poesia é apenas para alguns.

São sessões de cerca de três horas, em que, como diz Albina Neiva, “dá para aprender e para se divertir”. Entre discussões acerca do número de sardinhas que, uma vez, Júlia encontrou numa lata – “eram só três” – e a dúvida entre dizer “jindungo” ou “malagueta”, o poema vai-se construindo. Verso a verso.

Maria David Castro, uma das formadoras do projeto, ressalva que todos nós temos uma relação com a poesia, mesmo que a desconheçamos. Sendo a escrita poética de todos e podendo ser sobre tudo, o uso de objetos concretos ou cenários do dia a dia dos alunos ajuda a criar, posteriormente, uma linguagem simbólica.

Albina, que trabalhou na confeção de latas de conserva durante muitos anos, fez questão de trazer algumas latas para um pequeno lanche no intervalo. Na hora da pausa, confessou que ficou reticente quando soube que ia aprender a escrever poemas. Achava não saber muito sobre poesia, ou não saber o suficiente para escrever um poema, mas rimas emparelhadas sobre aquilo que conhece melhor fizeram-na ter vontade de ir às aulas e comprometer-se a trazer latas de sardinha para todos.

Com 52 anos, Albina está a aprender a ler e a escrever, uma superação e motivo de orgulho: “Eu, que tenho dois netos, vou poder dizer-lhes que a avó com esta idade foi para a escola e aprendeu”.

Depois do intervalo, o poema faz-se sobre a mãe de Maria José e os seus dez irmãos. Uma foto da mãe da poeta em construção circula pela sala, enquanto Maria José dita o que quer escrever à professora. “Há sessenta e um anos, a minha mãe andava a vender peixe”, assim começa o poema que rapidamente se desenrola em longos versos.

Para terminar, Júlia Gomes lê um poema, um dos seus preferidos: “Frutos” de Eugénio de Andrade, e no fim distribui rebuçados que trouxe para os colegas. É a última aula de poesia que vão ter juntos.

Os poemas foram-se construindo ao longo de três semanas e envolveram perto de 40 pessoas. As rimas sobre Matosinhos, a mãe de Maria José e os seus dez irmãos e, até, sobre o “jindungo deste tamanho” que Júlia encontrou numa das latas de sardinha que comeu, estarão expostas em novembro, numa exposição que se exibirá no exterior da Biblioteca Municipal Florbela Espanca, em Matosinhos.

“O Poeta Faz-se” é um projeto produzido pelo Bairro dos Livros para a Câmara Municipal de Matosinhos, no âmbito do trabalho da Biblioteca Municipal de Matosinhos para o Plano Municipal de Leitura (PML), integrado no Programa +Literacia desenvolvido pela Associação para o Desenvolvimento Integrado de Matosinhos (ADEIMA).

Além de aprenderem a escrever, os alunos aprendem que tudo é poesia, até uma lata de sardinhas. E que todos os poetas se fazem, com uma folha de papel e caneta na mão.

Artigo editado por Filipa Silva

Este trabalho foi originalmente realizado para o jornal Espectro no âmbito da disciplina de AIJ/Rádio, Online e Imprensa – 3.º ano